SNS: que futuro?

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Publicado a 03 abril 2025

João Eurico Cabral da Fonseca e Luís Velez Lapão fazem o retrato do Serviço Nacional de Saúde e indicam caminhos possíveis para a sua sustentabilidade.

Luís Filipe Catarino/4See João Eurico Fonseca e Luís Lapão

Como se pode atrair mais médicos, enfermeiros e auxiliares para o Serviço Nacional de Saúde?

João Cabral da Fonseca: Essa é, de facto, uma pergunta muito desafiante. Penso que os profissionais de saúde, em particular os médicos e os enfermeiros, baixaram os níveis de motivação, de cooperação, com o Serviço Nacional de Saúde por duas razões principais. Uma é monetária. Após o período da troika, os vencimentos, particularmente dos médicos, não foram corrigidos. Isso só foi reparado recentemente, e causou, sem dúvida, incómodo. Mas isso é só parte do problema. Acho que as pessoas estão disponíveis para ganhar um pouco menos se tiverem condições de trabalho que compensem e que o ambiente seja motivador, as perspetivas de carreira sejam excitantes, a capacidade de fazer uma medicina de grande qualidade seja uma realidade e as pessoas se sintam bem-vindas pela estrutura do Serviço Nacional de Saúde. E, infelizmente, nada disso se verificou.

Luís Lapão: Essa situação de as pessoas irem embora não é só na saúde, é transversal a toda a sociedade. É um problema estrutural do País, um problema organizacional. Sou um grande admirador do infante D. Henrique. Ele não foi comandar naus, ele foi responsável pela estratégia e depois arranjou pessoas para a concretizar. Foi buscar cérebros, italianos, espanhóis e outros, para ajudar a criar aqui uma escola para os melhores navegadores. A gestão moderna tem de ser feita com base em dados, em informação. Isto não acontece, é muito raro acontecer. A literatura dos recursos humanos diz, claramente, que não é o salário o argumento fundamental; são as condições de trabalho, é a carreira, é o respeito... Portanto, primeiro fogem para o setor privado, porque aí a organização é um bocadinho diferente, mais profissional, diria. Embora, em outros aspetos, por exemplo, na área da investigação, eu consigo trabalhar melhor com o público. Os públicos são mais abertos à investigação do que os hospitais privados. Portanto, é preciso criar condições, é preciso ter estrategas. Só que, muitas vezes, nós temos pessoas que não sabem o que estão a gerir e que não sabem o que estão a fazer.

Quem é João Eurico Cabral da Fonseca?

Professor catedrático e diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa – Centro Académico de Medicina de Lisboa.

O Estado gastou 600 milhões de euros em horas extra e tarefeiros, em 2023. É mais compensador contratar profissionais externos?

Luís Lapão
“A maior parte dos hospitais, das organizações de saúde, não tem conhecimento dos custos. Devíamos tê-los quase em tempo real”, diz Luís Velez Lapão.

João Cabral da Fonseca: Contratar profissionais externos pode ser, a curto prazo, mais fácil. Mas essa solução contém vários elementos de perigo. Primeiro, esses profissionais não estão dentro da instituição, estão a resolver problemas, mas não estão a contribuir para a instituição. Segundo, não são profissionais, habitualmente, com um perfil de diferenciação e de investimento na carreira que é pretendido. E há ainda a possibilidade, que é preciso demonstrar do ponto de vista financeiro, de o gasto total ser igual ou até menor, se esses vencimentos fossem guardados para novos contratos, adequadamente remunerados e bem combinados com os profissionais. Portanto, não sei se há qualquer elemento de poupança aí associado. Provavelmente, está relacionado apenas com graves faltas de profissionais que é preciso urgentemente resolver. Mas, de facto, a longo prazo, não me parece que isso seja desejável.

Luís Lapão: Sou da área de gestão, não sou da área financeira. Para mim, há outros problemas relacionados com isso. Fizemos um estudo sobre custos recentemente. A maior parte dos hospitais, das organizações de saúde, não tem conhecimento dos custos. Devíamos tê-los quase em tempo real. Portanto, as pessoas não têm dados para saber o que está a acontecer. Há muitas limitações legais, não se percebe a forma como contratamos as pessoas muitas vezes, o subemprego não se percebe, o que se passa com os enfermeiros... Fui Presidente do Conselho Geral da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa. Os enfermeiros têm um papel muito importante na saúde e também lhes deviam dar condições de trabalho... É um problema sistémico.

Quem é Luís Velez Lapão?

Investigador e docente de Saúde Pública Internacional, no Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa (IHMT/UNL). É também presidente da ONG AGO – Associação de Cooperação e Desenvolvimento Garcia de Orta.

As ULS são a forma certa de gestão? A aposta do Governo nas USF de modelo C será adequada?

João Eurico Fonseca
“Contratar profissionais externos pode ser, a curto prazo, mais fácil. Mas essa solução contém vários elementos de perigo”, alerta João Cabral da Fonseca.

João Cabral da Fonseca: Acho que há uma certa dificuldade em entender o funcionamento real das USF em termos de impacto na sociedade. As de modelo B, sem dúvida, têm sido preferidas pelos profissionais de saúde. Tenho visitado algumas e tenho tido contacto com várias equipas jovens e muito motivadas que me impressionaram imenso. O modelo C é um conceito desafiante e que está a aparecer também por uma necessidade prática, que é não estarmos a conseguir dar médicos de família a milhares de portugueses. E isso é quase uma doença infantil do nosso Serviço Nacional de Saúde. Ao não conseguirmos dar esta primeira ajuda, vamos criar uma população menos capaz de decidir sobre a sua saúde, porque não tem acesso a um médico especialista em medicina geral e familiar, e, potencialmente, vai ter doenças que deveriam ter sido detetadas precocemente. Estamos a falar, por exemplo, de hipertensão, de diabetes… E também de problemas como o tabagismo e a obesidade. O médico de família é muito importante como primeira linha de confronto e de alerta. Mas, depois, outras situações, como o rastreio de alguns cancros básicos, como o da mama, do colo de útero, da próstata, do cólon, etc. E este tipo de rastreio fica dependente, dentro da lógica do nosso Serviço Nacional de Saúde, da especialidade de Medicina Geral e Familiar e da existência de centros de saúde a funcionar. Não havendo esta estrutura, é urgente resolver. E esta proposta [das USF modelo C] vem nesse sentido. As USF modelo C também abrem outras hipóteses, que são a organização experimental das faculdades [de medicina] e de parceiros dos municípios em USF, baseadas em associações destas duas entidades. A Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa tem uma parceria com a Câmara Municipal de Torres Vedras para atrair não só o investimento do município, como também a capacidade de recrutamento humano da faculdade. E isso pode ser interessante. Estamos a adicionar novidade ao sistema. Pode ser também que algumas estruturas privadas forneçam, desta forma, aquilo que precisamos: mais estruturas de medicina geral e familiar com acessibilidade para todos.

Luís Lapão: Sim, as ULS são o futuro. Precisamos de integrar cuidados. E as farmácias também têm um papel importante aqui. E devíamos estar a educar melhor as pessoas. Aliás, senti que nós, na universidade, falhámos. Devíamos ter educado melhor as pessoas para a covid-19, para as emergências. Não estamos a fazer nada disso. Quando falamos de ULS e de comunidade, é preciso começarmos a ligar estas coisas umas às outras.

A OCDE diz que países com um orçamento menor do que o nosso têm melhor desempenho na área de saúde. São modelos a seguir?

João Cabral da Fonseca: É complexa. Uma das questões que são colocadas [no estudo] está relacionada com a perceção das pessoas que vão contactar os serviços de saúde. Há também outra observação interessante, que a satisfação está relacionada também com o número de profissionais. A satisfação é maior quando há mais um profissional. E eu interrogo-me se não há aqui uma certa confusão. Estamos a fazer um grande investimento no Serviço Nacional de Saúde, com outcomes [resultados] claros do ponto de vista numérico, como a mortalidade infantil e a esperança média de vida. Estes aspetos globais de grande impacto continuam a er de grande qualidade, superior a muitos países que investem muito mais dinheiro no serviço nacional de saúde. Mas nós temos um problema de falta de profissionais, que gera stress no ar. E esse stress leva a grandes níveis de insatisfação global, quer dos doentes, quer dos profissionais.

Luís Lapão: A falta de articulação dos serviços tem, sobretudo, que ver com a burocracia. Não confiamos nos outros. Tenho dinheiro e tenho de pedir autorização a 34 pessoas para conseguir usar o meu dinheiro. Isto é um exemplo da área que eu trabalho. Na saúde é igual. Temos uma burocracia tão grande, tudo isto é desperdício. Nos hospitais, para um doente ter alta, o médico dá a alta clínica, depois é o enfermeiro que tem de dar alta, para que o doente possa sair. Mas, depois, ainda é preciso uma alta administrativa, às vezes leva uma hora, outras vezes leva um dia. Porquê? Porque complicamos? Estamos sempre a controlar-nos uns aos outros. Temos de mudar muito a lógica de funcionar. Na área digital, tudo é muito mais rápido e ágil, tem de haver confiança.

O financiamento do SNS aumenta, mas as pessoas têm a sensação de que os serviços não melhoram. É essa a sua perceção também?

João Cabral da Fonseca: Isso é verdade em todo o mundo: os custos da saúde aumentam, têm aumentado sempre. Porquê? Porque há mais complexidade nos atos médicos, há mais tecnologia, e a inovação terapêutica sai muito cara. Havendo mais inovação terapêutica, há mais dispêndio e, havendo mais complexidade tecnológica e mais possibilidades de intervenções cirúrgicas complexas, os custos aumentam. E a tecnologia, em muitas áreas económicas, corresponde a maior eficiência económica. Mas isso não é verdade na saúde, porque o aumento da complexidade tecnológica é habitualmente acompanhado pela necessidade de um maior número de recursos humanos. Porque passa a haver uma série de técnicos a trabalhar com os médicos, para pôr as máquinas a funcionar, mais os engenheiros, que precisam de manter tudo a funcionar. Portanto, a complexidade é acompanhada por um aumento dos custos, e isto é um mal internacional. Depois, ficamos com algumas limitações práticas, porque o Orçamento Geral do Estado tem uma parte percentual para a saúde que calculo que esteja no limite. Nós, evidentemente, não estamos interessados em aumentar a nossa dívida pública e não estamos, com certeza, interessados em aumentar os impostos. O que é que sobra? Aumentar o pagamento privado, que já atingiu o limite... Portanto, estamos perante uma situação complexa que é ao mesmo tempo paradoxal. Temos de repensar a organização e tentar fazer o melhor com o que temos, embora noutros países, nomeadamente americanos, continuem a achar que o que se produz em Portugal, do ponto de vista de resultados em saúde, para o investimento que é feito, é uma espécie de milagre anual.

Luís Lapão: Os serviços de saúde são muito ineficientes. Num estudo, quando estamos a olhar para hospitais, farmácias, centros de saúde, conseguimos identificar à volta de 15% de desperdício organizacional, de produtividade. Por exemplo, o facto de eu ter de ir buscar uma folha à impressora, estou a perder tempo. Não se trata de as pessoas estarem sem fazer nada, é o facto de a organização do trabalho não permitir fazer com que o tempo seja mais eficiente, mais aproveitado. É preciso que as pessoas saibam e tenham tempo. E tenham equipa para fazer isso. Porque eu posso estar a agir num hospital, querer fazer isso e não tenho recursos. O grande problema é a organização do trabalho. O setor da saúde é dos mais ineficientes que há, é das indústrias mais ineficientes. Isto é internacional.

A situação de as pessoas irem embora não é só na saúde, é transversal a toda a sociedade. É um problema estrutural do País, um problema organizacional. [Luís Velez Lapão]

A aposta nas linhas de atendimento vai resolver os problemas de acesso? Será a melhor solução?

João Cabral da Fonseca: Tenho muita experiência de serviço de urgência, da altura da minha prática médica. Durante esse período, era evidente que, na ausência de sistemas de referenciação, o número de pessoas que recorriam ao serviço por não conseguirem decidir se o que tinham era para ir a um serviço de urgência ou não era muito elevado. Se conseguirmos ter uma estrutura que dê uma informação mínima, pode ser bastante útil não só para evitar a sobrecarga do serviço de urgência, mas para a proteção de todos nós, para evitar deslocações inadequadas e exposição a um ambiente que é sempre difícil. Em qualquer parte do mundo, as urgências são locais difíceis de se estar.

Luís Lapão: A questão de utilizar o SNS 24 para as urgências: porquê só agora? Porque é que levou 20 ou 30 anos a fazer? Conheci e trabalhei num desses projetos das ULS com uma psiquiatra, que tinha criado, ela própria, um telefone específico para apoiar doentes com risco de suicídio. É muito melhor ter o Estado ou ter o Ministério da Saúde a pensar nas grávidas, focado, com mensagens concretas, com pessoas que saibam...

Após o período da troika, os vencimentos, particularmente os dos médicos, não foram corrigidos. Isso só foi reparado recentemente e causou, sem dúvida, incómodo. Mas isso é só parte do problema [João Eurico Cabral da Fonseca]

O SNS tem futuro?

João Cabral da Fonseca: Claro que sim.

Luís Lapão: Sim, tem futuro. Quando comecei a estudar, a trabalhar estas áreas, o privado era muito pequeno, e, talvez nos últimos 20 anos, as coisas mudaram muito. Mas a questão é que o futuro da saúde tem a ver com a integração de cuidados. Por isso, acho que o caminho das ULS é o certo. Mas tem de ser bem feito. Temos de exigir gestão de qualidade. Outro aspeto fundamental para o futuro é, de facto, os sistemas de informação. Precisamos de uma saúde digital, como existe nas outras áreas. Temos de ter, de facto, prevenção. Temos de comunicar melhor, ajudar. E isso é uma questão societal. Se a pessoa cuidar de si própria, se fizer exercício com regularidade, se comer conforme o modelo da dieta mediterrânica, que estamos a desaprender. Estamos a falar de coisas fundamentais e que vão poupar imenso na saúde.

 

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