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Choco frito em Setúbal: os melhores restaurantes para Ricardo Dias Felner

O prato está em boa parte dos restaurantes de Setúbal. E todos os dias há filas à porta dos maiores templos da cidade. O crítico gastronómico Ricardo Dias Felner foi lá testá-los e comeu-os com prazer. Mas não provou um único choco pescado no Sado. A meia dose custa 13 euros.

Editor:
28 fevereiro 2025
prato de choco frito

Ricardo Dias Felner

Faltavam dez minutos para a uma da tarde, e já havia fila à porta da Casa Santiago, em Setúbal, de frente para o estuário do Sado. Era uma segunda-feira, dia tempestuoso com as águas enfurecidas, e o meu amigo protestou com a escolha do timing. "Segunda-feira não é dia de peixe, ainda por cima, com esta tempestade", atirou.

Em breve, a empregada do restaurante havia de o tranquilizar. "O choco que usamos é congelado. Vem de Marrocos." A afirmação caiu como uma bomba, mas já só poderia surpreender lisboetas ingénuos. Há décadas que é assim, pelo menos, desde que o negócio se tornou um fenómeno de massas, precisamente neste restaurante, pelas mãos de Virgílio Santiago.

Foi ele que, na década de 1990, se lembrou de abrir uma casa onde se fritasse o choco com farinha, inspirado nos calamares espanhóis. A moda pegou rápido, tão rápido que o prato se tornou uma bandeira da cidade, competindo com o peixe assado na grelha – esse, sim, apanhado em águas nacionais (pelo menos, parte dele).

A história do roaz e da gaivota

Virgílio Santiago inventou o choco que hoje se come, mas não o choco frito. A história do choco frito começou com outra receita e outro choco. E, na origem, estão os golfinhos e os roazes do Sado.

João Valente, dono do famoso restaurante Batareo, testemunhou tudo, nas pescarias com o pai: "No mar, quando víamos as gaivotas juntas, já sabíamos que ali estavam chocos sem cabeça a boiar. Tinham sido vítimas dos roazes." 

O roaz é uma espécie de golfinho – encantadora para turistas e crianças, mas pouco apreciada por pescadores. Os roazes só comiam as cabeças dos chocos, porque o resto estava protegido pelo osso interno. Descabeçados, os chocos vinham à superfície e tornavam-se alvos fáceis para as gaivotas, que os bicavam. 

O choco ficava furado, impróprio para ser comercializado no mercado, mas excelente para ser comido nas tabernas dos bairros das Fontainhas e de Santos Nicolau. "O que fazíamos era cortá-los em tiras, para evitar os buracos" – lembra João – "e depois fritávamos e enfiávamos o choco dentro de um pão." 

A técnica das tiras perdurou até hoje, mas o resto da confeção alterou-se. "Há mais de 40 anos", esse choco picado era frito em azeite, sem farinha nem mais nada. Algumas pessoas, como o pai de João, faziam só uma salmoura breve, para os amaciar, e depois secavam-nos ao sol, em cima de uma tábua. A secagem era importante, para evitar que o choco "espirrasse" quando fosse imergido no azeite quente. 

Hoje, muitas casas não fazem qualquer salmoura nem marinada, outras sim. Os dois grandes bastiões do choco frito, o Leo do Petisco e a Casa Santiago, têm procedimentos parecidos. Na Casa Santiago, a versão oficial é que o choco vem de Marrocos, choco grande, congelado – e que é descongelado de véspera, cortado às tiras, e passado em farinha, antes de ir a fritar. A condimentar, só um pouco de paprica. 

Na prova, a qualidade do choco do Santiago pareceu ligeiramente melhor do que a do seu concorrente direto. A textura foi a diferença mais relevante, com o do Leo mais rijo e mais castanho, e o do Santiago mais macio e dourado. Quanto a tempero, o do Leo revelou-se mais picante do que o do Santiago.

De resto, no Leo do Petisco é praticamente tudo igual, até porque estamos a falar de família, com o choco muito atulhado em frigideiras enormes, de abas largas como os woks chineses. O restaurante foi fundado por um irmão de Virgílio Santiago, sendo que outras casas famosas de choco, em Setúbal, como sejam o Cais 56 e a Adega do Zé, foram abertas pelos seus filhos. 

Os chocos modernos

Por vezes, os fundadores são ultrapassados pelos sucessores. Por toda a Avenida Luísa Todi e arredores, o choco frito tornou-se o prato principal, em tascas e em restaurantes de toalha de pano. A maioria copia a receita da família Santiago, mas há quem não fique atrás do original, e introduza pequenas inovações. 

Na verdade, hoje, faz pouco sentido os consumidores estarem horas à espera para comer choco frito, sobretudo ao fim-de-semana, quando outras casas, por preço igual ou semelhante (as meias doses andam na casa dos 13 euros), cozinham tão bem ou melhor. É o caso de dois restaurantes que me foram recomendados por locais.

Um deles, o Pinga Amor, fica de costas para o Sado, numa zona residencial, longe das turbas que invadem a Avenida Luísa Todi. É uma marisqueira luminosa, com ares de modernidade sóbria, mas tem sempre choco. À entrada, uma vitrina com camarão, santola, peixe fresco do dia; na sala das traseiras, uma cozinha semiaberta, onde vemos cozinheiras jovens e outras já com muitos anos a fritar fitas de choco.

A proprietária do Pinga Amor contou que o choco é temperado antes, mas a receita é um segredo da mãe. Na prova, foi, contudo, evidente uma picância boa, acima da média, e um compromisso agradável entre a relativa maciez do molusco e a crocância do polme. 

Algo que as novas casas de choco frito acrescentam, por regra, são as maioneses, servidas à parte, frequentemente de natureza industrial, mas por si transformadas, como pareceu ser o caso no Pinga Amor. 

Encontrámos maionese também no Peixoco, a três minutos do Leo, um sítio tranquilo mesmo de frente para a doca, com o Sado revolto à frente, sito na avenida que leva o nome de um filho da terra, prodígio do futebol, José Mourinho. 

No Peixoco, temos outro tipo de polme – temos mão de chef. O choco é preparado numa salmoura, para amaciar, e depois passado por um polme líquido, onde entram "água com gás e dois tipos de farinha", antes de ir à fritadeira elétrica, relatou a empregada que nos serviu. O resultado é uma capa estaladiça, mais grossa e homogénea do que as feitas só à base de farinha e paprica. 

A questão é até que ponto estamos disponíveis para experimentar a coisa nova. E se será já tempo para depor o rei – o Rei do Choco. Talvez não.

Os acompanhantes: batata e salada

A diferença entre os dois monstros do choco frito de Setúbal, o Leo do Petisco e a Casa Santiago, está nos pormenores. A salada da Casa Santiago – que leva, muito justamente, o cognome de "Rei do Choco" – é fresca e saborosa, com a alface cortada em juliana, enquanto a do Leo é à base de folhas de alfaces de hidroponia, mais aguadas. 

No comparativo da batata frita, a Casa Santiago também levou a melhor, mostrando uma fritura mais limpa. Falando dos dois outsiders, a batata do Pinga Amor revelou-se também da fresca, frita com casca, mas pareceu cortada à máquina, o que não a desmereceu. 

Já a do Peixoco, também com casca, surgiu mais mole, mas gostosa. No capítulo das saladas, vitória para o Pinga Amor, com a dita a vir completa, reforçada com couve-roxa e ripas de cenoura, a juntarem-se às costumeiras alface e cebola, e o tempero a ser feito à medida do freguês.

Receita original do choco frito

No final do roteiro, a investigação não estava completa. Queria encontrar um sítio onde usassem o choco de Setúbal, pescado ali. A tradição é antiga, e estávamos em plena época, altura em que vem desovar ao rio e está mais saboroso e mais barato. Chefs e pescadores disseram-me para desistir. "Isso já não existe", garantiu João Valente. "Servi no restaurante, mas acabei com isso. Já não faço choco frito, só na grelha."

Aparentemente, as novas gerações já não têm dentes para o choco fresco de Setúbal, que, segundo João Valente, requer mais mastigação do que os exemplares gigantes vindos de águas mais quentes – "cheguei a vê-los com nove quilos, vindos da Índia" –, alguns macerados por muitos meses de congelação. "As pessoas queixavam-se de que o choco era rijo. Já não estava para ouvir aquilo", conclui o dono do Batareo. Outra casa que até há pouco tempo terá usado choco local terá sido a mítica Casa de Pasto Orlando, junto ao Mercado do Livramento, mas já não encontrei o prato no menu. "Há muito tempo que abandonámos esse prato", disse a empregada. 

Fiz a receita em casa. Comprei choco grande no mercado. Pedi para tirar a pele e cortar em fitas. Deixei-o numa salmoura, durante uma hora, e pu-lo a repousar numa tábua de madeira de corte, junto à janela da cozinha, aberta. Depois, passei um polme de farinha com um pouco de malagueta em pó, de produção caseira. Aqueci o azeite na frigideira, lume médio, e fritei o choco até ficar dourado. Deixei repousar em papel de cozinha durante três minutos. Mastigou-se muito bem.

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