Bifanas de Vendas Novas: e o vencedor são três
A receita misteriosa usa só dois condimentos, não tão secretos como se poderia imaginar. Mas isso não facilitou o trabalho do crítico gastronómico. Ricardo Dias Felner experimentou as melhores casas e chegou a uma conclusão (a três, na verdade).

A sandes mais famosa do Alentejo aparece envolta em segredos. No site da Câmara Municipal de Vendas Novas, diz-se que é "feita de um bife de carne de porco bem batido da melhor qualidade, frito num molho secreto servido dentro de um papo-seco mais ou menos torrado". Esclarecidos?
É pouco e é vago. O regulamento que patenteou o uso da marca Bifanas de Vendas Novas, em 2011, também nada diz sobre ingredientes e técnicas. Quem quiser usar a marca só tem de cumprir preceitos burocráticos e usar o logótipo direitinho. De resto, em nenhum livro encontrei a receita original. Procurei, por exemplo, na Cozinha Tradicional Portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto – que de alguma forma fixa o cânone da culinária nacional. Nada.
Na internet, somos levados ao engano. As pesquisas remetem para recriações à toa. Logo no topo das buscas no Google, surge uma receita com oito ingredientes, entre eles louro, cerveja, óleo e manteiga. Quatro coisas que a bifana original nunca viu.
Mas porquê tanto mistério? Será bluff? Será
Foi já depois de fazer a última ronda da prova para este artigo que deslindei o segredo. Carlos Vitorino, gerente do histórico restaurante A Chaminé, respondeu às perguntas e pôs tudo em pratos limpos – sem manhas, nem truques na manga. A bifana de Vendas Novas é composta por uma carcaça e um bife fino de lombo de porco. Isto já sabemos. E também sabemos que leva sal. Mas faltam ingredientes – os incríveis e misteriosos ingredientes.
Quais são eles, afinal? Prepare-se. Folha e papel à mão. Ou, espere, talvez não seja necessário. Ei-los:
- alho;
- margarina.
O alho era fácil. A margarina também consegui intuir, no final da refeição. No Bifanas & Companhia fiz notar o sabor do creme vegetal ao proprietário, que me respondeu, os olhos esbugalhados: "Mas margarina todas levam!"
Certo, sem surpresa, tudo bem. O que mais me espantou não foi a margarina. O que mais me espantou foi não haver mais nenhum condimento. Nem vinho branco, nem ervas, nem banha, nem louro. "A bifana de Vendas Novas leva só margarina e alho, não leva mais nada. Posso garantir-lhe", confirmou-me Carlos Vitorino, genro do fundador d'A Chaminé, Manuel Estróia.
História de proximidade
Sobre a história da receita há poucos pormenores, mas a coisa aconteceu assim, segundo diferentes fontes. A primeira bifana terá sido frita em 1968, por um emigrante que veio de França para se estabelecer em Vendas Novas. Esse homem levaria a receita para o Café Boavista, que ainda hoje funciona nos mesmos moldes, mas com uma das antigas empregadas aos comandos. O fundador do Café Boavista difundiu ele próprio "o segredo", depois, pelo A Chaminé e, por fim, pelo Café Silva, dando a receita e mostrando como se faz.
O caminho foi curto. O Boavista fica do outro lado da estrada, mesmo em frente ao A Chaminé e ao Café Silva. Em 30 segundos, saltita-se de um para o outro. A estrada é a famosa N4, que liga o Montijo ao Alentejo. Antes de haver A6 era por aqui que toda a gente transitava, incluindo muitos motoristas esfomeados.
A zona chama-se Boavista, e hoje o acesso mais fácil é saindo da autoestrada depois entrar vindo de leste, pela longa estrada que corta a cidade. À entrada, podemos ver fábricas abandonadas, a lembrar-nos de que o sítio foi um polo industrial. Já à saída da povoação, no extremo oposto, aparecem os cafés das bifanas, talvez uma dezena deles ao longo de 300 metros.
Diferenças à lupa
A minha incursão final foi facilitada pela proximidade dos estabelecimentos. Depois de fechar o trio de finalistas, com base em visitas avulsas ao longo dos anos e nas dicas de um habitante local, selecionei o Café Boavista, o A Chaminé e o Bifanas & Companhia.
A dificuldade foi conseguir ver diferenças face a uma receita tão fechada. Com apenas cinco ingredientes (contando com o sal), podemos chegar a resultados diversos. Vários fatores podem ditar o sucesso ou o desastre.
A começar no alho. Hoje em dia, a maioria das casas usa pastas de alho industriais, tão diferentes entre si. "Temos de estar sempre atentos e andar sempre a ver a qualidade da massa de alho", assevera Carlos Vitorino.
O mesmo vale para a margarina. Há marcas e marcas. Das boas e das más. Das caras e das baratas. A margarina já foi a rainha da cozinha. Nos anos 1980, quando Maria de Lourdes Modesto alternava entre apresentadora de programas de culinária na RTP e funcionária da Lever, a multinacional dona da marca Vaqueiro, a margarina era ouro em barra.
Mas depois vieram os nutricionistas e os gourmet e lançaram o bicho-papão: margarina era veneno. Sucede que era mesmo, mas temos razões para acreditar que isso mudou. A maioria das margarinas usadas comercialmente, hoje em dia, são compostas por óleo vegetal de palma ou girassol, ou ambos – e já não são hidrogenadas.
O processo de hidrogenação implica a saturação dos ácidos gordos, que na origem são insaturados, no caso da margarina ou dos cremes vegetais. Ou seja, neste momento, entre as margarinas não hidrogenadas e as manteigas, essas bombinhas deliciosas de colesterol, os nutricionistas vão pela margarina. Por isso, alivie a consciência quando comer bifanas de Vendas Novas.
Detalhes na simplicidade
Depois, há ainda o pão. E aqui é muito simples. A bifana de Vendas Novas tem de ser em carcaça, um pão leve, altamente fermentado com levedura industrial. Bifana em bola caseira, em pão saloio ou noutros espécimes de fermentação lenta não é bifana de Vendas Novas.
Outra característica: a carcaça apresenta-se espalmada, pronta a entrar na boca, não devendo ter muito miolo. A maioria das casas ainda compra na Panificadora de Vendas Novas, mas entretanto surgiram outros fornecedores com uma receita parecida.
Determinante é também o ponto da torra. O pão não deve ser torrado até a côdea ficar enegrecida ou quebradiça. É só uma torra leve, na parte de fora da carcaça, para se sentir a crocância no céu da boca.
No que respeita à carne, ao contrário do que sucede com a maioria das bifanas do resto do País (as do Porto, incluídas), aqui não se usa o corte da pá, mas apenas o lombo do porco. É por isso que o bife fica tão direito. Por isso e, claro, porque lhe batem com um martelo como se estivessem a demolir paredes.
O resto são pormenores, mas que podem fazer toda a diferença. Por exemplo, diz-se que se as bifanas não forem feitas em frigideiras de ferro fundido ficam diferentes. E que as melhores não são as que saem nas primeiras levas: à medida que vão sendo feitas, a margarina e a pasta de alho vão apurando e a gordura da carne vai-se misturando no molho, dando-lhe um sabor mais profundo. Molho muito fresco, pouco apurado, pode ter o sabor da margarina muito cru, ainda.
Talvez por isso, n'A Chaminé, tenha sentido notas a banha e a caramelo, boas notas. Mas no Bifanas & Companhia senti mais o creme vegetal cru. Ainda assim, deve-se sempre vigiar essa molhanga, sobretudo não deixando queimar demasiado a margarina e o alho.
A quantidade de molho também é importante: muito e ensopa demasiado o pão; pouco e deixa-o seco. No caso do Bifanas & Companhia, o molho tinha sido posto na parte de cima do pão, o que me pareceu uma decisão inteligente: ensopa a carne e não as mãos.
Em todo o caso, os detalhes são conhecidos de todos os bons operadores da Boavista, e talvez por isso tenha sido impossível eleger um único vencedor.
Se há margem para melhorar? Há, com certeza. Estou convencido, por exemplo, que bons alhos frescos darão melhor sabor ao molho do que as pastas. É bem verdade que alguns alhos maus podem saber pior do que algumas pastas de alho boas. Mas a maioria das pastas são ainda mais mofentas do que alhos mofentos.
Sejamos claros e transparentes. A bifana de Vendas Novas é uma bifana de alho. O alho é a sua essência e, portanto, faz sentido que se aposte na sua qualidade, faz sentido que se aposte em bons alhos frescos. Dá trabalho tirar a pele, dá trabalho selecionar os melhores, mas no final acredito que fará a diferença.
Quanto à carne, se for devidamente temperada e confitada, com tempo, também pode ficar mais suculenta. E que a carcaça pode ser mais estaladiça e saborosa, sem perder a leveza.
Empate técnico
Desta vez, fiz a prova sozinho – começando n'A Chaminé, passando pelo Bifanas & Companhia e acabando no Café Boavista. Só comi uma metade de cada bifana e guardei as restantes para levar para casa.
A minha esperança era que a família pudesse ajudar-me a desempatar, já a frio e com o estômago mais disponível. Negativo: "Não vejo diferenças", disse-me o adolescente, sendo seguido pelos outros dois comensais.
Portanto, fica à consideração do leitor que casa eleger. Em todas comerá a verdadeira bifana de Vendas Novas. A diferença será no estilo e no espaço. A simpatia do serviço prevalece em todas as três casas eleitas, tal como a rapidez (se não houver filas à porta, algo comum em horas de ponta).
Em matéria de decoração, não espere luxos. O Boavista e A Chaminé são cafés sem recauchutagem, no estilo cadeiras de plástico. O Bifanas & Companhia é um snack-bar mais moderninho, mas não espanta.
No que respeita aos extras, todos servem sopas e empadas, algumas delas caseiras. Gostei das que provei, mas seria muito belo ver aqui um paraíso de sopas portuguesas, feitas a preceito, de raiz.
No Boavista, há ainda belíssimos pastéis de nata, queijadas e bolos de amêndoa. Outra coisa boa é que por seis euros faz-se um almoço completo, com imperial, bifana, sopa e sobremesa. Agora, a escolha é sua.
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