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Tripas à moda do Porto: roteiro de restaurantes

O prato mais icónico do Porto continua em grande forma, em tascas ou restaurantes de toalha de pano. O crítico gastronómico Ricardo Dias Felner andou pelos templos nortenhos das vísceras com feijão branco e encontrou um vencedor.

  • Editor
  • Ricardo Dias Felner
03 abril 2023
  • Editor
  • Ricardo Dias Felner
Tacho com tripas à moda do Porto numa mesa do restaurante

Ricardo Dias Felner

Desta vez, ia precisar de ajuda. Liguei à minha amiga Joana, mulher do Norte, portadora de um estômago sem fundo. “Queres vir testar tripas?” A Joana rejubilou. “Quero, pois”. O convite obrigava a uma condição. “Temos de experimentar três restaurantes, ao almoço, de seguida”, disse-lhe. Fazer as provas derradeiras para a eleição dos pratos vencedores, escolhidos nesta rubrica, foi uma condição a que me obriguei. Foi assim com a escolha do melhor frango da Guia, seria assim com as tripas. O entusiasmo da Joana esvaneceu-se. “Ui, isso vai ser complicado”, atirou. Seguiu-se um breve silêncio. “Vai, sim”, admiti.

A Joana não é pessoa de desistir. Muito menos perante umas tripas. “Onde é que nos encontramos?”, rematou. A seleção dos finalistas da prova foi desafiante. Continuam a abundar restaurantes a fazer tripas à moda do Porto com qualidade, mesmo sendo a receita secular. E os portuenses são de uma exigência extraordinária com o prato e mantêm o ritual semanal de as ingerir.

O trio selecionado tem provas dadas. Todos seguem os preceitos tradicionais, ainda que com pequenas diferenças. Depois de várias provas, inquéritos aos residentes e algumas leituras, a escolha recaiu sobre três clássicos reconhecidos. A saber. O Gaveto, em Matosinhos, casa de peixes e mariscos de excelência, mas que, aos sábados, tem nas tripas um motivo de peregrinação; o restaurante A Cozinha do Manel, na cidade do Porto, onde permanece a mítica cozinheira “Dona Maria de Lurdes”; e o Líder, também no Porto, porventura o nome mais ouvido durante as minhas auscultações, cujo proprietário é o fundador e atual presidente da Confraria das Tripas à Moda do Porto.

Em comum, todos têm o nome próprio do fundador: Manuel Pinheiro, do Gaveto; Manuel Moura, do Líder; e Manuel Mendes, de A Cozinha do Manel, sendo que, neste último, oficia o genro, José António. Os critérios de avaliação basearam-se na conformidade com as receitas originais, plasmadas na Carta Gastronómica do Norte de Portugal, que contou com a colaboração de membros da Confraria, e no canónico livro “Cozinha Tradicional Portuguesa”, de Maria de Lourdes Modesto. Em todo o caso, em última análise, foram as minhas sensações, sempre subjetivas e independentes, registadas durante as provas, que ditaram o vencedor. 

A lenda e a história das tripas

A responsabilidade era grande. Não sou tripeiro, mas sei do seu temperamento gastronómico. E sei de onde vem a palavra tripeiro. A origem é disputada, como seria de esperar. Mas a lenda tem muita força. Segundo diz Joel Cleto, historiador do Porto, no artigo “Lendas do Porto: A Origem dos Tripeiros”, tudo remonta a 1415, aquando da expedição militar comandada pelo rei D. João I, em direção a Ceuta, que arrancou com o processo da expansão marítima e colonial.

“Segundo a tradição, o Porto, além de todo o trabalho na construção dos navios, forneceu tudo o que tinha para os mantimentos da frota. Nomeadamente carne.” Sobraram as miudezas e foi com elas que o espírito inventivo dos locais haveria de criar o prato das tripas à moda do Porto. Esta é a versão lendária e heróica. Mas há depois outra, menos romântica e nacionalista. 

É falso que as tripas seja uma originalidade portuguesa. Tenho encontrado pratos de tripas por todo o lado, da China à França. Na verdade, basta passar a fronteira para encontrarmos os maravilhosos callos espanhóis, muito parecidos com as tripas nortenhas, sobretudo na versão asturiana.  Daqui resulta a segunda tese de Joel Cleto sobre a origem da receita e faz muito sentido. Os seus responsáveis teriam sido, afinal, os suevos, povo bárbaro germânico, que se terá estabelecido na região no século V. Os suevos eram danados para comer tripas e por todo o lado onde passaram existe, ainda hoje, essa marca.

Uma receita imensa nas tripas à moda do Porto

A empreitada da escolha do restaurante que serve as melhores tripas à moda do Porto teve ainda uma etapa prévia, em que cozinhei as tripas em casa, seguindo os trâmites. Foi muito útil. A primeira coisa que percebi, logo à partida, é que a lista de compras é imensa. Não é só feijão com tripas. Longe disso. A versão de base inclui feijão branco, cenoura, cebola, banha de porco, salsa, folha de louro, sal, pimenta e cominhos, mão de vitela, orelheira, toucinho entremeado ou presunto (ou ambos), chouriço de carne, salpicão (facultativo), carne da cabeça de porco, frango ou galinha e, claro, tripas de vitela. A estrela da companhia são elas, as tripas, na verdade retalhos do estômago bovino. Para os experts, todavia, o assunto deve ser escalpelizado. É que as tripas compreendem três tipos diferentes da peça: os favos (que, como o nome indica, tem o formato de favos de mel); a touca (a peça mais lisa); e os folhos (da minha eleição entre todos, feitos de finos folhos sobrepostos). 

Tão ou mais importante do que ter esta diversidade no prato, é a limpeza das vísceras. A tarefa é hercúlea. É certo que as tripas já vêm relativamente limpas do talho. Mas é essencial continuar esse processo, como sabe qualquer pessoa que tenha o olfato em condições. Primeiro passo: lavar e esfregar com sal e limão. Segundo passo: deixar uma noite em limão e gelo (há quem junte vinagre). Terceiro passo: dar uma primeira fervura e descartar a água. Quarto passo: cozer durante duas horas ou mais. 

Um dos problemas com algumas tripas que provei em tascas foi, precisamente, sentir ainda um certo odor desagradável. Nos casos analisados aqui, as tripas estavam todas absolutamente impecáveis, como aliás foi de alto nível o prato servido nos três restaurantes.

A diferença está nos detalhes

Às 11h40m apanhei a Joana e seguimos para O Gaveto. Tínhamos mesa para as 12h e fomos pontualíssimos. Pedimos meia dose para os dois e um copo de vinho, sentámo-nos ao balcão, e, em menos de nada, estávamos aviados. N’A Cozinha do Manel, em Campanhã, a reserva era para as 13 horas. Cinco minutos antes, entrávamos pela porta, o restaurante ainda meio vazio, mas cheio de caras de famosos nas paredes, com fotos do primeiro-ministro António Costa, artistas da praça e craques do Futebol Clube do Porto. Tudo correu como planeado e, 50 minutos depois, já estávamos no Líder, onde pudemos comer mais tranquilamente e mais. 

Tentei fazer a gestão do estômago, do meu próprio, ciente de que o apetite poderia influenciar a avaliação. Mas, no final, foi evidente o vencedor.

A vitória da simplicidade do restaurante A Cozinha do Manel

Cada um dos restaurantes mostrou pontos fortes. N’O Gaveto, foi a orelheira fumada e a galinha, com os fios bem isolados. É também o restaurante mais bem preparado para receber pessoas com mobilidade reduzida, tendo feito obras no sentido de facilitar o acesso e a utilização das casas de banho.

O Líder, por sua vez, destacou-se pela abundância de tripas, os três tipos de corte presentes e incrivelmente limpos, em particular os folhos, da minha predileção. 

Somando tudo, todavia, ganhou A Cozinha do Manel. Parte do segredo do sucesso estará no osso de presunto usado no caldo, a perfumar tudo; a outra parte na atenção dada aos pontos de cozedura de cada ingrediente. Mesmo a cenoura, que frequentemente se esbardalha no tacho, apareceu aqui em rodelas bem desenhadas. 

Também, não por acaso, foi n’A Cozinha do Manel que encontrámos mais mão de vitela no tacho, essencial para a viscosidade do molho, cheio de gelatina e seda. E também foi aqui que notámos uma chouriça de carácter artesanal, que se destacou entre as congéneres. Quer O Gaveto, quer o Líder tinham mais variedade de enchidos, mas sem que isso fizesse muito pelo prato.

Bem apurado, ainda assim, o molho do Líder, de entre todos o mais intenso de cominhos, sendo certo que podem ser sempre acrescentados à mesa nas outras casas. Mais insosso estava o d’O Gaveto, prejudicado pela falta de apuro e sal. Ainda assim, foi o único a servir orelheira fumada no tacho (o Líder serviu-a numa primeira visita, mas não na segunda). 

Tudo dado e baralhado, o meu voto vai para A Cozinha do Manel, tal como aliás o fez a minha amiga Joana. Mas à parte detalhes de crítico gastronómico caprichoso, podemos dizer com certeza uma coisa: ganhou o Manel!

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