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As melhores sopas da pedra de Almeirim por Ricardo Dias Felner

As sopas mais famosas de Almeirim continuam em forma. O crítico gastronómico Ricardo Dias Felner fez um périplo por quatro das mais célebres casas ribatejanas da especialidade e saiu feliz de todas elas.

Editor:
03 outubro 2024
Grande plano de sopa da pedra de Almeirim

Ricardo Dias Felner

Primeira paragem, O Forno. Eu e a minha companheira de comezainas rejubilamos à primeira colherada: "Deliciosa." "Bem boa." "Como é que só custa 6,70 euros?!" Meia hora depois, saímos para o tórrido sol ribatejano, queimando os pés no empedrado em redor da Praça de Touros. É nesse raio que tudo acontece: em 300 metros, encontramos todos os templos sopeiros de Almeirim.

Os termómetros marcam 40 graus, mas ninguém desmobiliza. Ainda não é uma da tarde, mas já se vê fila à entrada d’O Pinheiro, uma trintena de pessoas à frente. Vinte minutos passados, e estamos sentados para a segunda prova. Mais 20 minutos, e estamos despachados. Veredicto? "Ui!" "Fantástica!" "Excelente!" 

Parece difícil ficarmos desiludidos com uma sopa da pedra de Almeirim. O prato tem hoje uma consistência notável, como voltaria a comprovar na Tertúlia da Quinta e n’O Toucinho

Encontrar um único vencedor, entre os restaurantes mais célebres, é uma tarefa árdua, que se decide em detalhes, em questões de gosto pessoal ou em acasos. Em parte, terá que ver com a certificação do prato. Desde 2022 que a sopa da pedra de Almeirim é considerada uma Especialidade Tradicional Garantida, pela União Europeia. O processo de candidatura à certificação foi promovido pela Associação de Restaurantes da Sopa da Pedra, pelo Turismo do Alentejo e Ribatejo, onde estão representados os restaurantes mais relevantes de Almeirim, e pela câmara municipal. 

Uma Especialidade Tradicional Garantida (ETG) distingue-se de outras certificações, por não estar ligada a uma área geográfica específica, como é o caso da Denominação de Origem Protegida. Mas também por dar relevo a aspetos mais ligados às tradições, à forma como o produto é fabricado ou à sua composição. Um produto registado como ETG fica protegido contra a falsificação e a utilização indevida, sendo certo que se pode certificar uma sopa da pedra de Almeirim em Leiria, Bragança, Viseu ou onde quer que seja – desde que cumpra a receita.

Os preceitos da receita da sopa da pedra de Almeirim

O importante é que se sigam os preceitos da receita licenciada pela União Europeia. Entre eles, que devem ser usados 16 ingredientes, como feijão-catarino, enchidos, chispes e/ou faceira de porco, toucinho curado, batata, cebola, alho e coentros. E que não há refogado: vai tudo para dentro de uma panela com água a ferver. 

Assim, o que distingue uma sopa de outra, nos restaurantes, mais do que tudo, é a qualidade e a quantidade dos ingredientes, a técnica de corte e o momento em que cada ingrediente é cozinhado – ou seja, os tempos de cozedura.

Cumpridos os parâmetros da receita certificada, é preciso uma análise minuciosa para encontrarmos pontos fracos. E mesmo esse exercício é falacioso: o que parece um defeito, para mim, pode não o ser para outros. Alguns exemplos. Achei que a sopa d’O Forno estava ligeiramente pesada e densa; da mesma forma, considerei excessiva a cremosidade da sopa da Tertúlia da Quinta – mas estas impressões não foram encaradas como falhas para os meus parceiros de comezainas, nas duas visitas recentes que fiz. Por outro lado, na segunda visita a O Pinheiro, desta feita ao jantar, achei a sopa ligeiramente mais líquida do que na primeira visita, mas o amigo que me acompanhou nessa jornada, ocorrida uma semana depois da primeira ronda, achou que era uma virtude, e não um problema.

O Toucinho, a batata e os enchidos

Mais evidentes e dissuasoras foram duas características d’O Toucinho, a casa onde tudo terá começado, no ano de 1960, ou, pelo menos, onde surgiu o nome de batismo – cuja morada fica numa ruela junto ao largo da Praça de Touros. 

Apesar de a sua sopa da pedra ser muito saborosa, a batata d’O Toucinho surgiu em troços disformes e grandes. "Ah, sim, foram cortados à máquina", justificou o empregado que nos serviu. No caso, o corte da batata é mais do que um pormenor. Diz a receita certificada que a batata deve ser "cortada em pequenos cubos irregulares". Isso não sucedeu n’O Toucinho, que aparentemente se orgulha do processo mecânico. 

Em matéria de batata, a Tertúlia da Quinta venceu a concorrência, com uns cubinhos pequenos, brunoise de chef, logo se seguindo a batata d’O Pinheiro, no ponto de cozedura perfeito – firme, sem estar encruada –, com as arestas ligeiramente arredondadas – limadas para que o caldo ganhe um certo aveludado. No calibre do corte, a d’O Forno era maior do que estas duas, mas, ainda assim, bem. 

Outra diferença da sopa d’O Forno foram as carnes. A terrina continha vários cortes com osso, dos chispes e do pernil – algo que não encontrei nas sopas d’O Toucinho, d’O Pinheiro e da Tertúlia da Quinta. Não me parece que o osso desclassifique a sopa, contribuindo, antes, para torná-la na mais rústica de entre as provadas.

Se a sopa d’O Forno era a mais rústica, a da Tertúlia da Quinta pareceu-nos a mais delicada – a mais gourmet, diriam alguns. Não vejo isto como um defeito, mas também julgo não ser merecedor de pontuação extra, dado que a essência do prato é popular. 

Quanto aos enchidos, todos poderiam ser de melhor qualidade, mas cumprem. Em geral, os chouriços, as morcelas e as farinheiras nas quatro sopas eram de gama média: não há enchidos de tipo artesanal, mas também não encontrará desses chouriços de gordura prensada pintada com pimentão e corante. 

Colossos da restauração

Falando de decoração, a Tertúlia da Quinta é o restaurante mais cuidado e coerente, cheio de adereços taurinos e tauromáquicos – e tem uma dimensão mais pequena e menos ruidosa, quando comparada com as d’O Forno, d’O Pinheiro ou d’O Toucinho.

Fora a Tertúlia da Quinta, em matéria de espaço, impressiona sobretudo O Forno, com 500 lugares sentados e uma cozinha aberta, pantagruélica e bem equipada, onde dezenas de pessoas tratam das comidas mais variadas – desde sardinhas assadas à tiborna de bacalhau, passando pelas mistas de carnes grelhadas ou os chocos à lagareiro.

O Pinheiro e O Toucinho também se dividem por várias salas, mas a maioria desiguais em tudo. Comum é a existência de grandes vitrinas onde repousam peixes grandes, postas de bacalhau grossas como tijolos, costeletas de bovinos, cabeças de cherne ou salmão à posta – um desvario de matéria-prima que há-de ir para as grelhas das cozinhas escancaradas à nossa frente, como num showcooking. 

Esta ideia de restaurante gigante lembra os pesos-pesados do leitão, na Mealhada, e é fascinante vê-los a funcionar de forma tão fluida, rápida e eficaz. Faz parte da experiência apreciar como se consegue servir tanta gente, e tão bem, e, em especial no caso d’O Pinheiro, com simpatia e atenção aos detalhes

Também por isso, mas sobretudo pela sopa, a taça vai para O Pinheiro. Nas contas finais, olhando só para o prato, acabou por pesar mais a harmonia dos sabores: a sopa da pedra d’O Pinheiro foi a mais equilibrada e, ao mesmo tempo, a menos monótona. Nas duas visitas, senti uma ligeira acidez (golpe de vinagre, porventura) e picância, bem contrabalançadas pela espessura do feijão e pela frescura dos coentros – aqui, particularmente perfumados. Também em matéria de caralhotas, o pão tradicional de Almeirim que acompanha a refeição, O Pinheiro destacou-se, com as suas fornadas de fabrico próprio. 

A lenda e a história

Outra característica d’O Pinheiro foi trazer uma pedra branca no fundo do prato – tal como aconteceu na Tertúlia da Quinta. Esse aspeto não foi, todavia, valorizado para efeitos da pontuação final. É hoje dado como certo que a história do frade e da pedra não tem qualquer ligação à realidade. 

Lembro a história, na versão usada pela Câmara Municipal de Almeirim para divulgar o prato regional. Certo dia, um frade chegou a uma localidade, faminto e cansado. Bateu à porta de um lavrador, mostrou-lhe uma pedra e disse-lhe que gostaria de fazer uma sopa com ela. Os donos da casa aceitaram, e o frade lavou a pedra e colocou-a dentro de uma panela. Depois, foi pedindo mais e mais condimentos, argumentando que a sopa ficaria melhor se levasse um fiozinho de azeite e um pouco de carne, enchidos, feijão, batata, coentros, etc., etc. No final, os donos da casa perguntaram: "Então e a pedra?" O frade respondeu: "A pedra lavo-a e levo-a comigo para outra vez." Esta é a história que a nação conhece, mas a verdadeira origem da sopa da pedra de Almeirim é outra, e parece estar consolidada. Na candidatura à certificação como ETG, assevera-se que a sopa da pedra existe "há vários séculos", ainda que com outro nome. Na região, plantava-se feijão e batatas, e o porco conservava-se em salgadeiras, depois da matança, ou acabava em enchidos. A sopa de feijão era muito cozinhada ali, mas também um pouco por todo o País, ainda que sem designação específica.

O nome comercial de sopa da pedra terá surgido apenas em 1960, quando o restaurante O Toucinho passou a confecioná-la e vendê-la ao público. A origem é uma comparação com a pavimentação típica de Almeirim. "Devido às suas características físicas, uma vez que se trata de um caldo grosso, castanho-avermelhado e com muitos ingredientes, alguém o comparou às pedras que formam o piso de muitas estradas que, ainda hoje, existem na zona histórica de Almeirim. Assim, ganhou o nome de 'sopa da pedra de Almeirim'", lê-se nos documentos que apoiam a certificação.

A justificação parece convincente e feliz, mas desclassifica a história do frade. Nada disso importa, contudo, até porque raramente é o storytelling que faz o sucesso de um prato – como comprova o sucesso da sopa da pedra de Almeirim. Mais de 60 anos depois de o prato ser fixado num menu, ele vive e floresce. As hordas de pessoas que continuam a desviar-se da sua rota para irem comer aos templos sopeiros de Almeirim comprovam que estamos perante uma das grandes criações da gastronomia nacional. Intemporal.

Sopa da Pedra de Almeirim (5 litros): a receita tradicional

Ingredientes

  • Feijão-catarino seco (cerca de 600 g)
  • Chouriço de carne de porco (cerca de 1 unidade pequena)
  • Morcela de sangue (cerca de 1 unidade pequena)
  • Farinheira (cerca de 1 unidade)
  • Chispes e/ou faceira de porco (2 kg)
  • Toucinho curado (100 g)
  • Batata (cerca de 2 kg)
  • Cebola (cerca de 300 g)
  • Coentros q.b. (quanto baste), antes e depois da cozedura
  • Alho q.b.
  • Louro q.b.
  • Pimenta q.b.
  • Colorau e/ou massa de pimentão q.b.
  • Azeite e/ou banha (cerca de 0,2 dl)
  • Água (a necessária para a confeção da quantidade do produto indicada)
  • Sal q.b.

Preparação

  1. Os chispes são salgados no dia anterior, sendo, depois, passados por água para retirar o excesso de sal, imediatamente antes da cozedura. Da mesma forma, o feijão-catarino seco deve ser posto de molho com antecedência ou, em alternativa, passado por água antes de deitado na panela. As cebolas e os alhos são finamente picados. As batatas são cortadas em pequenos cubos. 
  2. Passa-se, então, à cozedura. Deita-se água na panela, a que se junta o feijão, a cebola, o alho, o colorau e/ou a massa de pimentão, a pimenta, o louro e, caso assim se queira, outros temperos, como coentros, azeite ou banha (não necessariamente por esta ordem). Os ingredientes vão para a panela a frio, sem refogado. 
  3. De seguida, acrescentam-se os chispes, as faceiras e o toucinho, assim como os enchidos. 
  4. As farinheiras podem ser colocadas numa fase mais tardia, quando os chispes e o feijão-catarino estiverem quase cozidos. Há quem opte por cozer as farinheiras à parte, para não abrirem. 
  5. Depois de tudo cozido, retiram-se as carnes e os enchidos. Quando arrefecidos, procede-se ao corte, em pequenos pedaços e rodelas, respetivamente. 
  6. Ao caldo que fica na panela e que continua a cozer, adicionam-se as batatas, cortadas em pequenos cubos irregulares. Se necessário, retificam-se os temperos. Depois de a batata estar cozida, desliga-se o lume. 
  7. A sopa deve ficar a "descansar", para que o feijão produza a chamada "nata", de forma a engrossar o caldo. Também a batata deve desfazer-se quanto baste, ficando os pequenos cubos irregulares com as "arestas limadas", arredondadas, engrossando também o caldo. Assim, garante-se que todos os ingredientes ficam "ligados", tornando a sopa macia e aveludada.

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