Filipe Morato Gomes: crónicas de viagem com alma e ética
Tornou-se cronista de viagens depois de ser despedido e já fez duas voltas ao mundo. Considerado um dos pioneiros nacionais em blogues de viagem, Filipe Morato Gomes tem lutado pela ética na publicação destes conteúdos.

Calções, t-shirt e calçado desportivo. É assim que encontramos Filipe Morato Gomes no terminal de cruzeiros de Matosinhos para esta entrevista. O local de passagem de turistas não podia ser mais apropriado ao tema, as viagens, e foi sugestão dele, também apaixonado por fotografia, pelo cenário cinematográfico impressionante do edifício e da zona envolvente.
O bloguer apresenta-se minimalista, muito à semelhança do que diz ser a sua bagagem para uma viagem de volta ao mundo. "Quando tudo te pesa nas costas, levas o mínimo possível, não é?" Para o autor do "Alma de Viajante", um dos mais antigos e conceituados blogues de viagens de Portugal, é mais fácil fazer uma mala para uma volta ao mundo do que para 15 dias no Algarve.
Por isso, não duvidamos quando diz que não faz grandes compras e o justifica com uma história recente: "há dias, a minha mulher reparou que ando a dormir com uma t-shirt dos tempos da faculdade, com mais de 20 anos. Mas, se está boa, porquê trocar?", desafia.
Quem é Filipe Morato Gomes
Tem 53 anos, é de Matosinhos. Licenciou-se em Engenharia de Sistemas e Informática e trabalhou na área de multimédia. Além do blogue "Alma de Viajante", foi líder de "viagens de aventura" e fundou a Associação de Bloggers de Viagem Portugueses.
Uma volta ao mundo e uma viragem na carreira profissional
"Eu dizia muitas vezes 'qualquer dia despeço-me e vou dar uma volta ao mundo', mas nunca tive a coragem de dar esse passo por mim. Felizmente, fui despedido", recorda Filipe, agora com alguma satisfação.
Com 33 anos, o engenheiro de sistemas e informática perdeu o emprego numa empresa de multimédia, e decidiu fazer a mochila. Já gostava de escrever e fotografar as suas viagens, e até tinha publicado algumas reportagens em meios como a "Fugas", do jornal "Público".
Quando decidiu fazer a primeira volta ao mundo, o editor da "Fugas" aceitou publicar semanalmente a crónica da sua viagem, sem compromisso. Mas teve sucesso. "Começámos a rubrica com uma página e acabámos com quatro! Foi nessa altura, ao fim de 14 meses de viagem, que decidi que era aquilo que queria fazer: viver da escrita, da fotografia, do trabalho proporcionado pelas viagens."
Filipe Morato Gomes tinha partido em julho de 2004 e prometeu aos familiares voltar, no máximo, até ao Natal de 2005. Durante essa primeira volta ao mundo, nasceu o blogue "Alma de Viajante", onde Filipe publicava as crónicas do jornal, algumas semanas depois de serem divulgadas, já que a "Fugas" nem tinha site àquela data. Foi então que percebeu o "poder da internet".
E, dito isto, guia-nos por uma viagem de imaginar um passado que já parece muito distante e quase difícil de visualizar na era do imediato das redes sociais: "Vivia a experiência da viagem durante uma semana, chegava à terça-feira à tarde e decidia que crónica ia escrever. Depois, para enviar a crónica, tinha de ir a um cibercafé, ligar-me à internet, enviar as fotos e ver os e-mails e comentários no blogue. Foi aí que percebi o poder da relação que se cria com as pessoas que estão do outro lado." Filipe descreve que os comentários eram uma espécie de combustível, de ânimo que precisava para aguentar. "As viagens nem sempre são lindas e maravilhosas; custam muitas vezes, não é?", desabafa.
À vontade do pai Google
Filipe não quis mais largar essa "liberdade impagável, de poder decidir a cada momento o que fazer, onde acordar e o que fazer no dia seguinte", como define as viagens de longa duração. Fez uma segunda volta ao mundo com a mulher e a filha mais velha, quando esta tinha 5 anos, com o objetivo de registar o mundo visto por uma criança.
Numa altura em que o meio online ainda não reinava, Filipe apostou no seu "cantinho", onde não dependia de ninguém. Ou depende só de alguns. "Durante estes 20 e tal anos, já vivi fases de muito sucesso e euforia 'que fixe, está a resultar!' até fases deprimentes de 'e agora o que vou fazer, que isto deixou de resultar'. Costumo dizer que o Google é o meu pai: no online, se o Google está satisfeito com o meu trabalho, porreiro; se ele disser que o que faço não serve para nada, estou tramado", exemplifica.

Adaptar a escolha do destino à procura dos consumidores
"Há uns anos, a Ryanair lançou uma rota do Porto para Malta, e fui lá para produzir conteúdos. Recentemente, estive em Santorini, Grécia, que não era a minha prioridade, preferia ir para o Nepal ou para o Paquistão. Tento balancear o que me interessa pessoalmente e destinos que podem ter mais procura", explica Filipe.
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Para continuar, deve entrar no site ou criar uma conta .Afinal, a liberdade é impagável, mas tem um preço, e Filipe já aceitou tranquilamente que as suas viagens estão condicionadas por serem também o seu trabalho. Um exemplo? "Se for a Paris, vou tentar visitar as melhores atrações possíveis ou fazer o maior número de atividades possível, para poder selecionar e recomendar aos leitores. Não posso tirar um dia inteiro para ficar só na piscina do hotel", graceja. E admite que se só viajasse para os "Usbequistões desta vida" não conseguiria ter este estilo de vida.
O desafio é constante e, na era do "tudo pago" por uma story em hotéis ou destinos, a concorrência é feroz e é preciso ceder na hora de escolher.
Promover mais os destinos e menos as pessoas nos destinos
O trabalho de Filipe Morato Gomes chega a mais de 300 mil viajantes por mês, entre blogue, assinantes de newsletter e seguidores nas suas redes sociais. Pelo alcance, ninguém diria que nem é grande fã de Instagram ou Facebook. No Instagram, alguns dos seus posts mais recentes já têm mais de um ano.
O bloguer atribui um pouco a sua aversão às redes sociais àquilo a que assiste de negativo nas suas viagens: "Estive há pouco tempo em Florença, e é uma dor de alma andar naquelas ruas e ver o mal que os grupos (porque as pessoas comportam-se de forma diferente em grupo) e a sua dinâmica fazem nas cidades", relata. O impacto sentido pela quantidade, mas também pelos comportamentos dos viajantes, preocupa Filipe: "Isso causa transtorno não só à experiência de visitar, mas principalmente a quem lá vive."
A este fenómeno não é alheia a mudança de paradigma para a promoção de destinos, em que, cada vez mais, se paga a criadores de conteúdo e se investe menos noutro tipo de anúncios. Questionado sobre como vê este modelo, Filipe não hesita: "Não vejo mal nenhum que um destino, em vez de fazer como antigamente e gastar milhares de euros em anúncios televisivos ou de revista, chame pessoas, produtores de conteúdos no YouTube, Instagram ou outro, e pague para produzirem conteúdos sobre o destino. O que me faz confusão, principalmente com a explosão do Instagram, é deixar de ser sobre o destino e passar a ser sobre a pessoa no destino."
Desde que haja regras claras, acrescenta um dos fundadores da Associação de Bloggers de Viagem Portugueses (ABVP). O que são essas regras? "Senso comum" para ele, que sempre conviveu com jornalistas no meio familiar e de amigos e desde cedo se habituou à ética na produção de conteúdos.
Sabe, contudo, que o básico de identificar um post que foi pago por uma marca ou por um hotel como publicidade não é assim tão claro para a maioria. "Todas as semanas recebo mensagens de empresas a pedir links e artigos que querem publicar no 'Alma do Viajante', desde que não esteja indicado que é publicidade, o que é contra as regras do bom senso. Sempre tive a filosofia de que o meu compromisso é com os leitores, e os leitores não são estúpidos", alerta.
Receita para um blogue de sucesso
Na ABVP, uma organização sem fins lucrativos, Filipe explica que um dos objetivos é trazer um pouco da ética do jornalismo e profissionalismo para a área dos bloguers de viagens. Um trabalho que deve ser visto como trabalho e ser pago, a bem da transparência com leitores e possíveis parceiros ou empresas.
Para quem quer iniciar-se nesse mundo, a experiência de quem tem um projeto consolidado mas genérico alerta: "Há uma saturação de projetos, ou seja, é difícil sobressair num mercado tão pequeno como o nosso. Hoje, tentaria ser o melhor blogue sobre um destino específico, nem que fosse a minha cidade."
Paixão pelo povo iraniano
O seu blogue específico bem que podia ser sobre o Irão, tal é a paixão com que descreve o destino que mais o marcou, quando já visitou mais de 100 países. Durante dez anos, enquanto foi líder na agência de viagens de aventura "Nomad", esteve no Irão mais de duas dezenas de vezes e relata como se apaixonou pelo povo: "É emocionante a forma como se é recebido nas ruas e convidado a visitar as casas das pessoas. Dão tudo sem esperar nada em troca. Aliás, é muito difícil pagar o que quer que seja estando com um iraniano, chega até a ser incomodativo. Na altura, eu fumava e lembro-me de entrar numa mercearia e não me deixarem pagar o tabaco!", recorda.
Dificilmente se cruzará com Filipe no Irão, porque é mais provável ir a um destino novo do que repetir um conhecido. Pode ser China, país ao qual o bloguer quer muito "voltar para fazer as pazes", porque o visitou num "estado de espírito menos favorável". Pode ser em África, Patagónia, Paquistão, Nepal, Equador, todos destinos que ainda vai conhecer, afiança.
Se lhe parece muito rebuscado, o encontro pode dar-se numa aldeia recôndita de Portugal. Filipe faz parte do projeto "Rostos da Aldeia", que dá a conhecer histórias de verdadeiras lições contra o despovoamento do interior. Afinal, e como dizia a filha do bloguer, ansiosa por se estrear na escola, quando terminaram a segunda volta ao mundo, "viajar é bom, mas aprender também é importante".
