Insónias: suplementos com melatonina envolvem riscos para a saúde
A DECO PROTESTE analisou a rotulagem de 15 suplementos alimentares com melatonina, e encontrou níveis desta substância idênticos aos presentes em medicamentos. Os últimos são sujeitos a controlo do Infarmed e vendidos com receita. Os suplementos, não. Falta legislação clara, que ponha ordem na venda de melatonina.
- Especialista
- Susana Santos
- Editor
- Inês Lourinho

Palavras, ideias e flashes do que se passou durante o dia regressam para chilrear à volta do cérebro, que se mantém aceso, mercê deste passarinhar ininterrupto. O coração acelera e começa a bater nos ouvidos e noutras partes do corpo, ao ritmo de uma percussão que estremece todo o ser. A cabeça parece esmagada. O corpo e a alma estão exaustos, mas não desligam e, mesmo nos momentos em que cedem, nada impede que a noite seja de novo retalhada... e o ciclo recomece. Assim é a insónia, depois de se instalar no hospedeiro que é o ser humano. Considera-se crónica quando as noites mal dormidas somam, pelo menos, três à semana, durante um mínimo de um mês. Quem a conhece sabe que recensear carneiros não resulta, por maiores que sejam os rebanhos.
Esta, que é a mais frequente das perturbações do sono, seja aguda, seja crónica, tem uma prevalência de 12% a 20% na população em geral e, uma vez alojada, é difícil dar-lhe ordem de despejo. As estatísticas mostram que, quando é crónica, 86% dos pacientes continuam a mostrar sintomas após um ano. Cinco anos passados sobre o diagnóstico, os valores caem para 59%, mas, ainda assim, são bastante elevados.
Baixa da produtividade, aumento do absentismo ao trabalho, risco acrescido de acidentes e, claro está, problemas de saúde são algumas das consequências diretas. Entre os efeitos negativos para a saúde, contabilizam-se os distúrbios do foro mental, como depressão, ansiedade e abuso do álcool, a que se somam síndrome metabólica, doenças cardíacas e hipertensão, que encolhem a qualidade de vida e expandem o risco de morte. Conclusão: descartado o apuramento de carneiros como solução, quem sofre de insónia precisa de ajuda.
Não admira, por isso, que o mercado se mobilize para oferecer opções destinadas a desligar durante a noite. Sob a forma de medicamentos de venda livre, podem recorrer à planta valeriana e a princípios ativos como a difenidramina e a doxilamina, que são anti-histamínicos com efeito sedativo. Já a melatonina, uma hormona cuja missão é regular o ciclo circadiano do organismo, ou seja, a natural alternância entre sono e vigília, está disponível em medicamentos sujeitos a receita e em suplementos alimentares.
A DECO PROTESTE analisou a rotulagem de 15 suplementos alimentares com melatonina, à venda em farmácias, parafarmácias e lojas de produtos naturais, e descobriu neles teores desta substância idênticos aos presentes em medicamentos. Mas, enquanto os fármacos são controlados pelo Infarmed e exigem prescrição, os suplementos, não. Que lógica tem?
Lei não estipula limites máximos de melatonina em suplementos
Não existe legislação que regule os teores máximos de melatonina admissíveis em suplementos alimentares, há que começar por dizê-lo. Perante este vazio, resta-nos o entendimento do Infarmed, que regula os medicamentos, e da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), que supervisiona os suplementos alimentares.
Num parecer de 2016 a envolver ambas as entidades, que pode ser lido no site do Infarmed, figura a seguinte passagem: “A DGAV só aceitará notificações de suplementos alimentares contendo melatonina, com teores que correspondam a tomas diárias iguais ou inferiores a 1 mg e não se destinem a crianças.” Esta visão conservadora está apoiada, no próprio parecer, em estudos que avaliam os efeitos secundários da melatonina no sistema nervoso central e no sistema endócrino, a longo prazo. A lista é longa, e inclui, a título de exemplo, nervosismo, irritabilidade, insónia, enxaqueca, letargia, tonturas e erupções cutâneas.
Ora, face aos teores encontrados nos 15 produtos, muito próximos dos dois miligramas, a DECO PROTESTE confrontou a DGAV. Que começou por afirmar que o parecer publicado pelo Infarmed está desatualizado e que o retirou do seu site, depois de analisar documentação fornecida pela indústria dos suplementos alimentares e de levar em conta a posição de vários Estados-membros da União Europeia. E acrescentou: “Os suplementos alimentares com melatonina notificados à DGAV são avaliados caso a caso, tendo em conta o estabelecido no parecer sobre Produtos Fronteira entre Suplementos Alimentares e Medicamentos. De acordo com essa avaliação, podem ser colocados no mercado suplementos alimentares contendo um teor de melatonina inferior a 2 mg/toma diária.” Ou seja, a DGAV quase duplica os teores anteriormente acordados com o Infarmed, tornando admissíveis os valores encontrados nos 15 produtos analisados pela DECO PROTESTE. O parecer invocado pela DGAV refere ainda que a classificação como suplemento alimentar depende de dois critérios, entre os quais a “natureza do efeito”, que não pode ser terapêutica.
Acontece que, em Portugal, os medicamentos com melatonina, cujas concentrações variam entre um e cinco miligramas, são sujeitos a receita médica. Ou seja, a lei entende que podem envolver riscos diretos ou indiretos, caso sejam usados sem vigilância médica, mesmo que tomados respeitando o fim a que se destinam.
Um teor de dois miligramas de melatonina não pode ser considerado seguro num medicamento de venda livre e tomado sem vigilância médica. Mas como pode sê-lo numa concentração de 1,95 miligramas? Mais: qual a diferença terapêutica entre um produto com 1,95 miligramas de melatonina e outro com dois miligramas? Porque pode o primeiro ser considerado suplemento alimentar, quando há medicamentos com teores de melatonina mais baixos?
Na prática, o que a DECO PROTESTE questiona é a fronteira entre suplemento alimentar e medicamento, e a definição que se impõe não transcorre da resposta da DGAV. Como tal, voltou a interpelar a entidade, que, em tempo útil, não respondeu.
"Gotinhas" para crianças podem prejudicar a saúde
Ainda assim, a DGAV considerou que, na falta de legislação que regule o consumo de suplementos alimentares com melatonina por crianças pequenas e lactentes, os produtos que se anunciam para tais faixas etárias não reúnem condições de segurança.
Não está bem estudado o impacto da melatonina nas crianças a longo prazo. Mas sabe-se que, no imediato, pode induzir dores de cabeça, náuseas e sonolência diurna.
Portanto, as “gotinhas”, que, por vezes, são até anunciadas em canais infantis, podem oferecer aos pais uma noite descansada, mas têm potencial para deixar sequelas nas crianças.
Dicas para regrar o sono
Quando a insónia se instala, há que procurar a chamada higiene do sono. Comece por manter um horário regular de sono, mesmo ao fim de semana. O exercício físico também ajuda, mas evite praticá-lo na última hora antes de se deitar, se for demasiado vigoroso.
Outra regra conhecida é evitar bebidas com cafeína, sobretudo nas seis horas prévias ao sono. O mesmo vale para o tabaco. Os excessos são igualmente de recusar: álcool, alimentos doces, gordos ou picantes, refeições pesadas. Mas os estômagos vazios tão-pouco ajudam. Tente comer, pelo menos, três horas antes de dormir. O sono continua longe? Chame-o com atividades relaxantes, como ler ou ouvir música tranquila. E, já sabe, nada de televisores ou outros ecrãs no quarto.
Quando procurar o médico?
A insónia persiste, mesmo depois de implementar estas medidas? Não tome medicamentos, nem suplementos alimentares, sem acompanhamento. Procure o médico. A insónia pode ser aguda, de curta duração, mas, quando ocorre em, pelo menos, três noites por semana, durante um mês ou mais, é considerada crónica. Se o sono deixar de ser repousante, e sentir cansaço e muita sonolência ao acordar e ao longo do dia, marque uma consulta.
Faça-o também se ressona e tem o dia-a-dia afetado. Neste caso, a qualidade do sono é perturbada, e o dia ressente-se devido a sonolência, cansaço, falhas de concentração e de memória ou irritabilidade.
Uma doença cardiovascular é outro bom motivo para procurar o profissional de saúde. A insónia está associada a oscilações da pressão arterial e da frequência cardíaca, mas também ao aumento do risco de doença coronária, incluindo de enfarte agudo do miocárdio.
Não ignore tão-pouco a apneia do sono. Por vezes, a roncopatia é sinal da síndrome de apneia obstrutiva do sono (SAOS), caracterizada pelo breve, mas frequente, bloqueio das vias respiratórias, que provoca interrupções da respiração totais (apneias) ou parciais (hipopneias) durante o sono. Ressonar é um sintoma. Mas há outros, como despertares recorrentes e súbitos, com engasgos ou sensação de sufoco. Necessidade de urinar de noite, sono agitado, cefaleias matinais, sensação de sono não reparador e sonolência diurna excessiva, irritabilidade e falta de atenção, memória ou concentração são outros sinais que se juntam à lista.
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