Berta Valente e Joana Araújo: “O estigma do peso é social”
A obesidade ainda é um estigma que pode limitar as oportunidades de viver plenamente em sociedade. E é uma espécie de fronteira entre os que têm e os que não dispõem de rendimentos. Berta Valente e Joana Araújo estudam o fenómeno.

A obesidade tem determinantes individuais, comunitárias e ambientais

De que forma a obesidade gera desigualdade social?
Joana Araújo (JA): Vemos esse padrão socioeconómico marcado nos dados de obesidade. Há uma prevalência elevada em Portugal e em muitos países da Europa, mais visível em camadas da sociedade menos favorecidas. É o oposto do que aconteceu há várias décadas, em que a obesidade surgia nas camadas mais ricas. Mas, ao longo dos tempos, esse padrão socioeconómico na obesidade inverteu-se. Podemos ter estas duas perspetivas. Em que medida é que um padrão socioeconómico menos favorecido pode contribuir para desenvolver a obesidade?
Berta Valente (BV): A obesidade tem determinantes individuais, comunitárias e ambientais. Existe este padrão na sociedade. As camadas socioeconomicamente menos favorecidas têm uma prevalência de obesidade superior. Isso está muito relacionado com o facto de estas pessoas, por vários fatores biológicos e genéticos, pela influência das suas condições sociais, terem mais predisposição para a obesidade. Isto porque podem ter menos tempo para confecionar as refeições, menos oportunidades para atividades físicas, desportivas ou de lazer, para preparar a alimentação mais adequada. Todos os determinantes da dieta e da atividade física estão mais condicionados nestes grupos que têm menos liberdade de tempo e de escolha. As pessoas que vivem com um orçamento apertado experienciam muitas vezes um stress financeiro, económico. E o stress é também um determinante da obesidade. Estes são mecanismos que podem explicar este padrão.
Pode falar-se em perpetuação da obesidade?
BV: Se uma família com obesidade tem filhos, a perpetuação entre gerações é uma realidade. Acaba por ser um ciclo. E depois é importante perceber que a obesidade tem uma conotação simbólica muito forte. A questão da gordura, de não ser socialmente aceite uma pessoa maior. E crianças, adolescentes e adultos com um determinado estigma do peso na sociedade, isto pode também levar a que sejam economicamente menos favorecidos numa fase futura, porque experienciam estigma e menos oportunidades.
Menos oportunidade de emprego?
BV: Sim, de acesso à educação, de continuação dos estudos, de acesso ao emprego. Pode haver discriminação relativamente ao peso, mesmo que de forma não óbvia.
JA: Não só acesso a novas oportunidades, mas mesmo a questão de terem mais absentismo no trabalho. Poder ter mais complicações e isso depois também ter um impacto na manutenção do trabalho, por exemplo.
Quando fala da perpetuação da obesidade, é uma perpetuação de erros alimentares, de um estilo de vida? Não é só o fator genético?
BV: O fator genético está lá. Se uma criança nasce numa família com determinados hábitos e estilos de vida, é normal que durante a sua vida carregue consigo, mesmo que tenha oportunidades diferentes, grande parte dessa história é aprendida na infância.
JA: Os dados mostram isso. Que uma criança ou um adolescente com obesidade tem cinco vezes mais probabilidade de ser um adulto com obesidade. A criança que desenvolve na infância essa condição tem uma probabilidade bastante elevada de manter essa doença ao longo da vida. E também as crianças que são filhas de pais com obesidade têm também maior probabilidade.
A obesidade é um estigma?
BV: Há uns anos saiu um artigo, na revista Nature, que junta várias instituições, em que se refere que o estigma do peso está presente na nossa sociedade em vários setores, nos cuidados de saúde, na escola, no trabalho, na televisão, nas campanhas de saúde pública. Há um padrão normativo da magreza, muito promovido de forma mais implícita. Ou seja, automaticamente, se uma pessoa for magra, associa-se que é saudável, está dentro das normas, não está a cometer excessos. Quando não cumpre esses normativos sociais, vai sofrer estigma. Podem conotá-la com preguiça, falta de julgamento moral, etc. Imaginemos uma criança que na escola é sistematicamente confrontada pelos colegas por ter maior peso. Vai ter menos vontade de ir para a escola, e isso, provavelmente, vai afetar o seu rendimento escolar. Isso depois pode afetar a sua vontade de querer chegar a um nível de ensino superior. Muitos estudos na Inglaterra falam da questão das entrevistas de emprego, em que as pessoas mais magras são sistematicamente favorecidas. Numa situação de pleno emprego, o que acontece é que pessoas com obesidade têm muitas comorbilidades associadas e podem ter mais baixas por doença, gastos em medicação, consultas, deslocações, etc.
JA: Os estigmas estão novamente relacionados com a questão de associarmos a obesidade a uma culpa dos comportamentos do indivíduo. Tudo isso vai trazer estigma, e esse estigma até acontece muitas vezes nos nossos meios sociais com a família, com os amigos, com pessoas não conhecidas, até com profissionais de saúde. Claro, podemos classificá-las como más escolhas alimentares ou do estilo de vida, mas que não devem ser encaradas como a culpa do indivíduo. Outro aspeto que vamos também estudar de uma forma mais objetiva é esta questão da utilização da linguagem, não só pelos profissionais, mas até nos media.
Que tipo de linguagem se poderia usar? Obeso não é a terminologia correta?
JA: Atualmente existem recomendações das sociedades e instituições europeias relacionadas com a obesidade para usarmos uma linguagem mais neutra. Isto não acontece só para a obesidade, mas por exemplo para outras doenças, como a diabetes. Ou seja, em vez de dizermos obesos deveríamos dizer pessoas com obesidade ou pessoas que vivem com obesidade. Mesmo até na questão dos cuidados de saúde, deve usar-se usar uma linguagem centrada no utente, na pessoa.
Quem é Joana Araújo?
Nutricionista e especialista em Nutrição Comunitária. Doutorada em Saúde Pública, e investigadora no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto.
Quem é Berta Valente?
Nutricionista e doutoranda em Saúde Pública. Investigadora no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e de Lund (Suécia).
Fator de doença mental

Como é que este estigma se pode traduzir num problema de saúde mental?
Joana Araújo (JA): Existem estudos que mostram a relação da obesidade com doença mental, nomeadamente, por exemplo, depressão. Também temos outros espectros de perturbações de comportamento alimentar, em que temos obesidade, e em resposta, muitas vezes, poderemos cair aqui em situações de perturbações de comportamento alimentar, como bulimia, por exemplo.
Berta Valente (BV): Uma pessoa vê, por exemplo, uma notícia, com esta conotação mais negativa, ou até as imagens que se utilizam na imprensa portuguesa, em que aparecem pessoas a comer hambúrgueres… São imagens que não se fazem para pessoas magras. Todos esses sinais indiretos têm impactos negativos na vida destas pessoas.
Também dizem que as mulheres estão entre as pessoas mais vulneráveis...
BV: A investigação em Portugal tem mostrado, desde sempre, que as mulheres têm uma prevalência superior da obesidade relativamente aos homens. Isto não acontecia nos anos 90 e, no final dos anos 90 e durante os anos 2000, houve uma inversão desta tendência. E as mulheres mais pobres são as que têm a maior prevalência. No grupo dos homens, os mais pobres têm também uma maior prevalência. Mas, considerando o todo, são realmente as mulheres mais pobres que são mais afetadas pela obesidade. E isso faz-nos questionar se a obesidade, para além desta dimensão social, não tem também esta dimensão de género. Porque temos uma sociedade que ainda não é igualitária.
Porque se verifica essa maior vulnerabilidade das mulheres?
JA: O papel cuidador da mulher também lhe traz uma carga de trabalho doméstico, de organização familiar da casa, que lhe tira tempo para o seu autocuidado. O tempo para o ginásio, por exemplo… se calhar, as mulheres cuidam do que é a alimentação familiar, mas podem acabar prejudicadas no resto do seu dia-a-dia. Acho que essas desigualdades que verificamos em termos de género podem contribuir para a desigualdade em termos de obesidade. E há também o impacto do estigma. Ou seja, o estereótipo do corpo perfeito tem um peso muito maior para a mulher do que para o homem.
BV: Nós temos essa perceção de que as mulheres têm esta preocupação maior com o corpo. Mas não são todas as mulheres. Vamos pensar numa mulher com salário médio, com filhos, com trabalho e casa, que tem um emprego. E numa empregada de limpeza. Esta última tem o seu trabalho, que é muito físico, provavelmente é precário, não deve ter um contrato de trabalho, faz muitas casas e depois terá de fazer esse trabalho no seio da sua família, tratar da sua casa, tratar dos seus filhos. Esta pessoa, que está nesta situação mais vulnerável, não vai ter a mesma disponibilidade mental, de energia, de tempo, isto não vai ser uma prioridade para ela tal como será para a outra pessoa, para quem ela está a trabalhar.
Como se poderá resolver este círculo vicioso, maior pobreza, maior obesidade e vice-versa? O que propõem?
JA: A resposta vai ter de ser abrangente em termos de políticas públicas. Quando dizíamos que não podemos culpar o indivíduo, e deixar toda essa responsabilidade para as escolhas individuais, temos de ser capazes de implementar políticas que permitam tornar o ambiente menos obesogénico, tornar mais fáceis estas escolhas saudáveis em termos de estilo de vida. Ou seja, continuarmos a fazer educação alimentar, educação em saúde, a transmitir de forma clara a informação necessária. Mas, por outro lado, alterarmos o que são estes determinantes mais estruturais, conseguirmos ter alimentos saudáveis a preços que sejam justos e possíveis de serem adquiridos por todas as pessoas, termos condições dignas em termos de salários, acesso à educação...
BV: As medidas têm de ser feitas simultaneamente, em todos os níveis. Até agora, Portugal tem sido um bom exemplo ao nível europeu. Passámos de medidas muito focadas na dieta e da atividade física para taxação de bebidas açucaradas, diminuição da quantidade de sal, esta questão da oferta alimentar, do marketing... Somos investigadoras em saúde pública, queremos a melhoria da saúde da população, uma defesa pelo direito a uma vida justa. Isto é o quê? Ter um salário digno, condições de trabalho não precárias, acesso à educação e aos cuidados de saúde. O que dizemos não é algo ideológico ou partidário. Isto é o que a ciência nos diz. A partir do momento em que as pessoas têm tempo, têm dinheiro e condições de vida minimamente dignas, a sua saúde melhora, e é isto que temos de defender.
O que está por fazer ao nível de políticas públicas?
JA: O nosso Programa Nacional de Promoção da Alimentação Saudável tem feito esse trabalho nas últimas duas décadas. Estas medidas que a Berta já mencionou têm sido implementadas e estão ainda a desenvolver mais medidas. Mais recentemente, há este foco também do que é o tratamento e o acesso das pessoas com obesidade aos cuidados subprimários, a integração dos cuidados. Portanto, não pensarmos apenas nas pessoas que têm obesidade severa e que são elegíveis para uma cirurgia, por exemplo, mas trabalharmos muito também na prevenção e no tratamento precoce. Temos de continuar estes esforços.
BV: Falar sobre este assunto, produzir uma peça jornalística, também é uma forma de chegarmos a mais pessoas, tentar desafiar estes preconceitos e este conhecimento sobre a obesidade para que realmente a obesidade na população seja conhecida como ela é, que é uma doença multifatorial, para que depois as pessoas que estão no poder possam perceber que isto é realmente uma prioridade para a população, que é algo que afeta muita gente.
A propósito dos cuidados subprimários, os médicos de família estão sensibilizados para isso?
JA: O desafio é exatamente esse. Porque atualmente os nossos serviços não têm capacidade de resposta de consultas de nutrição, consultas de psicologia... Idealmente deveriam ter um profissional do exercício físico que pudesse apoiar também nessa vertente. O primeiro passo é poder fazer esse rastreio numa consulta de seguimento com o médico de família. E o que se preconiza, ou o que vai ser testado atualmente, é haver uma consulta multidisciplinar de obesidade.
Nos centros de saúde?
JA: Exatamente. Para além disso, depois também uma melhor integração entre os centros de saúde, os cuidados primários e os cuidados hospitalares. Esta visão mais integrada em que as coisas não devem estar completamente separadas entre o médico de família e o que são as especialidades, mas poder haver uma comunicação eficaz, de facto, entre os diferentes níveis de cuidados. Mas o primeiro passo é mesmo identificar os casos.
BV: Uma única consulta pode fazer a diferença. E se realmente uma pessoa vai a uma consulta e é atendida com um “ah, tem de fechar a boca” ou “não, o seu problema é perda de peso”, não sabemos qual é o estado emocional daquela pessoa e pode-se perder aí um seguimento. A pessoa pode deixar de ir às consultas. A consciencialização dos profissionais é muito importante.
“O papel cuidador da mulher também lhe traz uma carga de trabalho doméstico, de organização familiar da casa, que lhe tira tempo para o seu autocuidado. O tempo para o ginásio, por exemplo… se calhar, as mulheres cuidam do que é a alimentação familiar, mas podem acabar prejudicadas no resto do seu dia-a-dia.” [Joana Araújo]
Fast-food mais acessível

Quanto se poderia poupar com maior prevenção?
Joana Araújo (JA): Existem, de facto, essas estimativas, de quanto é que apostar na prevenção ou num tratamento precoce vai depois poupar em termos de, por exemplo, gastos em saúde, relacionados com as comorbilidades, com a obesidade. De qualquer forma, a Berta vai estimar esses valores mais especificamente para Portugal e em comparação com outros países no seu doutoramento. Depois teremos mais dados ainda.
Berta Valente (BV): O meu doutoramento é sobre as desigualdades socioeconómicas da obesidade. Vou olhar para três áreas geográficas, e fazer a comparação entre Portugal e a Europa. Num dos objetivos tenho esta dimensão da economia da saúde, em que vamos fazer uma análise de custo-efetividade de diferentes cenários, aplicando cenários hipotéticos, determinadas intervenções, vamos ver quanto é que se pouparia, tendo em conta os diferentes grupos socioeconómicos da sociedade.
JA: E vamos também estimar especificamente os custos diretos e indiretos da obesidade.
O preço dos bens alimentares está a aumentar. É uma maneira de agravar o problema da obesidade, já que as escolhas muitas vezes vão para alimentos menos saudáveis, mas mais baratos?
JA: Sim. Há aqui várias questões: por um lado, as pessoas que vão ser mais afetadas são aquelas socioeconomicamente menos favorecidas. E, portanto, já são as que estão em mais risco. E, claro, temos opções relativamente baratas de alimentos nutricionalmente desequilibrados e que não deveriam ser consumidos com regularidade. Adicionalmente, num cenário de uma família que tem pouco tempo, é mais desestruturada, esse recurso a opções rápidas, mais baratas, pode de facto acontecer. Nestes cenários de crise económica, estas desigualdades tendem a aumentar porque são esses grupos mais desfavorecidos que acabam por sentir mais estes efeitos.
Falta informação sobre alimentação saudável? O acesso das pessoas a essa informação é suficiente?
JA: Vivemos num mundo de muita informação atualmente. Claro que, neste acesso cada vez mais alargado e facilitado à informação, também há muita desinformação. Ainda teremos de continuar a trabalhar na literacia em saúde, na literacia alimentar. Apesar de haver muita informação disponível, se calhar nem toda a gente sabe usar essa informação da melhor forma, ou sabe interpretá-la, onde ir buscá-la e se é fidedigna ou não. E, se calhar, os grupos menos escolarizados terão mais dificuldade. E é interessante que, muitas vezes, quem beneficiava mais das intervenções de literacia alimentar eram as pessoas que menos necessitavam delas, porque são aquelas que já têm à partida mais literacia, já são os mais escolarizados. Tentamos agora mudar esta abordagem das intervenções, porque precisamos de saber qual é a melhor forma de chegar aos grupos que realmente necessitam e de que tipo de intervenção precisam. Se calhar, falar apenas sobre a alimentação saudável não é suficiente.
BV: Pensando em Portugal e nas diferenças regionais, provavelmente uma grande campanha de saúde pública, ao nível nacional, terá mais efeito em pessoas já despertas para esse assunto, em regiões mais urbanizadas. Enquanto em aldeias e no meio mais rural pode até passar despercebido ou pode nem ter efeito. São todas estas nuances.
O ideal de beleza tem evoluído para um corpo quase impossivelmente magro, ao ponto de algumas marcas serem instadas, por lei, em Espanha, por exemplo, a não apresentarem mulheres excessivamente trabalhadas em Photoshop como modelos para as outras....
JA: Algumas marcas, de facto, já têm tomado algumas medidas, mas ainda é algo muito recente...
BV: Imaginemos uma pessoa que até nem se importa de ter obesidade, é feliz com isso, apesar de conhecer os riscos de comorbilidades. Mas, se não conseguir ir a uma loja comprar roupa, isto é violento. Não tem espaço para se sentar num transporte público, isto é violento. Ou seja, é importante darmos espaço a toda a gente para que possa existir com dignidade, perceber que a partir de determinado ponto a gordura corporal começa a ser um problema para a pessoa em si. Porque é uma perpetuação de várias consequências ao nível de saúde, económicas, de qualidade de vida e até de esperança média de vida, mas as pessoas devem poder viver com dignidade.
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