Filipa Martins: ginasta destaca a importância da saúde mental
Filipa Martins está a viver o sonho de participar nos terceiros Jogos Olímpicos. Com 28 anos, é a melhor ginasta portuguesa de todos os tempos, e o objetivo para Paris é chegar à final all-around. Conheça a história da atleta portuense e saiba qual é a importância da saúde mental no desporto.

Eram quase sete da tarde e Filipa Martins já tinha cumprido duas das cerca de três horas e meia de treino. Fazia sol na Maia. Sol este que, à semelhança da equipa de reportagem da DECO PROteste, quis vir contemplar uma das estrelas portuguesas que vão brilhar nos Jogos Olímpicos de Paris.
De estafas já calçadas (acessório utilizado nas mãos de forma a facilitar a pega na execução das paralelas assimétricas – um dos quatro aparelhos da ginástica artística feminina), a atleta portuense espalhou pó de magnésio branco nas mãos, para melhorar a aderência, e, de seguida, sem hesitar, saltou para mais uns exercícios naquele que é o seu aparelho de eleição – as paralelas. "É um bocadinho de arte com muita adrenalina", descreve Filipa Martins a sua modalidade.
A ginasta, que está focada nos Jogos Olímpicos, relembrou a importância da saúde mental no desporto. Há lacunas na ginástica artística em Portugal que devem ser atenuadas, segundo a atleta.
Um sonho realizado três vezes
Foi aos quatro anos, por iniciativa dos pais e da mãe de uma colega, que Filipa começou a fazer ginástica artística no Sport Club do Porto, onde treinou até 2019. Atualmente, com 28 anos, e já a treinar no Acro Club da Maia, é considerada a melhor ginasta portuguesa de todos os tempos. E, se dúvidas houvesse, a vasta coleção de medalhas e de feitos não deixa mentir: vai participar nas terceiras olimpíadas, conseguiu um honroso quinto lugar no Campeonato da Europa em paralelas (a melhor participação de sempre de uma atleta portuguesa) e, entre outras variadíssimas conquistas, tornou‑se a única ginasta nacional a introduzir um elemento com o seu nome no código de pontuação da modalidade – o Martins.
Quando questionada sobre o momento em que percebeu que a ginástica iria ter um grande impacto na sua vida, a campeã nacional realçou que tudo advém de um trabalho de equipa ao longo de vários anos: "Sempre quis ser melhor do que no dia anterior. Por isso, tentei sempre trabalhar para isso. Acho que o percurso se foi construindo, e ainda bem, da melhor forma."
No entanto, talvez tenha sido na adolescência que começou a ter mais noção das proporções que a ginástica estava a tomar na sua vida. "Quando tinha 14 anos, foi o meu primeiro Campeonato da Europa de juniores, e acho que competir com outras ginastas, e perceber que ainda tinha muito para evoluir, fez‑me meter na cabeça que gostava de ir aos Jogos Olímpicos. Acho que foi a partir daí que [a ginástica] ficou um bocado mais séria."
Garante que, apesar de, por vezes, ter de abdicar de idas ao cinema com os amigos, está de consciência tranquila por ter feito tudo o que estava ao seu alcance para chegar onde chegou. "Sou grata por nunca ter desistido e por ter conseguido ultrapassar todos esses pequenos obstáculos que foram aparecendo."
O amor à ginástica artística
De rotinas se fazem os campeões, e o dia‑a‑dia de Filipa não foge à regra. Prestes a terminar o mestrado em treino de alto rendimento, a portuense divide as 24 horas diárias entre estudos, fisioterapia – onde também faz reforço muscular – e treinos. Treina seis dias por semana, três horas e meia por dia.
Resiliência, palavra que aliás tem tatuada na pele, é um dos adjetivos que mais a define. E não hesita em revelar a receita mágica para o sucesso: "Faço ginástica desde muito pequena, então acabei por saber organizar o meu tempo quase intuitivamente. Se temos amor pelo que fazemos, acabamos por ter vontade de querer mais. Fui sempre levada pela paixão pela modalidade e pela adrenalina que fazer ginástica me causa."
Há um fator essencial ao longo da sua carreira: a dedicação e a disponibilidade dos pais, que faziam "piscinas" para a levar onde fosse preciso. "Acho que sem esse apoio não teria conseguido ser a ginasta que sou hoje", confessou.
Missão olímpica: chegar à final
Depois de uma preparação tranquila e positiva, chegou a hora de brilhar por terras parisienses. "O meu foco principal nos Jogos é tentar apurar‑me para a final all‑around [final que reúne as atletas com maior pontuação resultante da soma da nota de cada um dos quatro aparelhos – paralelas, solo, trave e saltos]", explicou a ginasta. Porém, vai também empenhada em usufruir da "incrível experiência" que vai ser participar em mais uma Olimpíada. "Nos últimos Jogos não tivemos público [devido à pandemia da covid‑19], e mesmo o contacto entre atletas foi diferente. Por isso, acho que vai ser bom", acrescentou Filipa.
Para os mais curiosos, a ginasta portuguesa garantiu que não vai levar o elemento de paralelas com o seu nome para aquela que é a maior competição desportiva do mundo. "O Martins tem um elevado grau de dificuldade e, ultimamente, não tem sido contabilizado pelos painéis de juízes. Por isso, achamos que é um elemento muito arriscado e demasiado difícil para corrermos o risco de não ser contabilizado".
O papel de João Ferreirinha e Joana Carvalho, os seus treinadores, é crucial na estratégia traçada para cada prova. "Eles percebem o que é que eu sinto (...), tentamos balancear: ter um esquema minimamente difícil e bom para conseguir atingir uma final, mas, ao mesmo tempo, sentir‑me confortável e confiante naquilo que vou fazer", evidenciou Filipa, explicando que é importante encontrar um equilíbrio, e não ir "stressada" por levar exercícios com os quais não está tão segura.
A força da mente e a traição das lesões
Decorriam os Jogos Olímpicos de Tóquio quando Simone Biles, ginasta americana que partilha os palcos com Filipa Martins e que é considerada uma das melhores ginastas da atualidade, escreveu mais uma página no livro do desporto mundial, alertando para os problemas de saúde mental com os quais os atletas têm de lidar.
Para Filipa Martins, o acompanhamento psicológico desde cedo é fundamental, no entanto, os clubes não têm capacidade para proporcionar esse acompanhamento. "Se calhar, na adolescência, também precisei", pensou Filipa, em voz alta. Relembrou, ainda, que só mais recentemente, com o caso da atleta americana, é que as pessoas ficaram mais dispertas para esta questão, passando a olhar para si mesmas e a perceber o que sentem e o que lhes faz bem e mal.
Apesar disso, a ginasta lusa considera que, inconscientemente, sempre teve uma mente forte. "Em momentos mais difíceis ou em provas que não correram tão bem, tentei sempre tirar uma aprendizagem, para conseguir ser melhor. Fui eu própria a lidar com os problemas, conseguindo superá‑los."
E prova disso foi a forma como tem lidado com as lesões. Filipa Martins já foi operada cinco vezes aos tornozelos, o que não foi suficiente para a desmoralizar: "Acho que nós, atletas, temos a noção de que as lesões fazem parte do desporto e, muitas vezes, quando nos lesionamos em épocas muito boas, somos teimosos e queremos voltar ainda melhores. Vou fazer tudo o que eu posso para mostrar que ainda consigo. E é isso que nos move". A atleta portuense garante que o "truque" é pensar no que vem depois, no processo de recuperação, e não propriamente na lesão, assumindo que, claro, há sempre dois ou três dias de "interiorização" que a "puxam" ligeiramente para baixo.
O exemplo de Dominique Moceanu
Dezenas de miniatletas invadiram, em poucas horas, o Complexo Municipal de Ginástica da Maia. Estava na hora do treino das classes mais novas. Os olhos arregalados de várias crianças admiravam os gigantes colchões e os complexos aparelhos que enchiam o ginásio. Muitas outras, já futuras promessas da modalidade, focavam‑se em mostrar as habilidades aprendidas ao longo dos treinos. Como será ser um exemplo para todos estes jovens atletas? Filipa, esboçando um sorriso envergonhado, garantiu que é um orgulho sentir o carinho das crianças e das atletas mais novas. "É sempre bom termos alguém como referência que nos possa inspirar, alguém para quem olhar e de quem queremos seguir os passos", acrescentou.
Dominique Moceanu, ex‑ginasta americana, é a grande inspiração da campeã lusa. "Foi aos Jogos de 96 [em Atlanta, Estados Unidos da América] (...), gostava muito da forma como ela fazia ginástica e como era feliz a fazê‑lo", explicou Filipa, com um brilho nos olhos. Já a referência portuguesa da atleta portuense é a ex‑internacional portuguesa Zoë Lima, com quem chegou a competir.
Quanto ao futuro, Filipa prefere não fazer grandes previsões, vivendo um dia de cada vez. "O corpo tem dias bons e dias maus. São 24 anos de carreira, com muita carga em cima. Por isso, agora é pensar nos Jogos, usufruir da experiência, acabar o mestrado, que é um dos objetivos para este ano, e depois logo se vê", afirmou, explicando que o corpo, por vezes, já pede descanso.
Há lacunas na ginástica nacional
Elegância, força, perfeição, agilidade, equilíbrio e coordenação são provavelmente os ingredientes principais que compõem um ginasta olímpico. No entanto, o sucesso não se constrói só disso. A rede de apoio é fundamental e, nesta questão, há falhas em Portugal. "Acho que falta muita coisa. Falta uma estrutura de apoio por detrás, falta eu não ter de ir de manhã, à tarde e à noite à fisioterapia por minha conta (...). Eu sei que isso [corrigir as lacunas] é muito difícil, porque o nosso mundo é bastante pequeno", esclareceu a atleta, alertando também para o facto de os treinadores e os atletas de ginástica artística não conseguirem profissionalizar‑se, em Portugal, devido à falta de investimento.
Uma consumidora consciente
Quando questionada sobre hábitos de consumo, Filipa assumiu‑se "minimamente ponderada", confessando que tem um gosto especial por comprar roupa.
Por não conseguir viver da ginástica, a atleta mora em casa da mãe, e, como tal, as compras domésticas são feitas em conjunto. "Tentamos sempre comprar coisas de que já ouvimos falar muitas vezes e que, à partida, vão ser uma boa compra", explicou a atleta, garantindo que nunca teve de pedir o livro de reclamações.
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