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Catarina Oliveira sobre rodas e com humor contra os obstáculos

Catarina Oliveira é a "Espécie rara sobre rodas" no Instagram, onde, com humor, partilha os obstáculos que enfrenta uma pessoa que se desloca de cadeira de rodas. Da passadeira sem rampas às atitudes paternalistas, há muito por desconstruir. 

Editor:
28 outubro 2024
Catarina Oliveira

Victor Machado

É num rés-do-chão, na sua casa em Matosinhos, Porto, que Catarina Oliveira recebe a equipa da DECO PROteste. Os tapetes à entrada estão recolhidos, até mesmo o do vizinho da frente. Entramos em casa e tudo está estrategicamente disposto para quem utiliza cadeira de rodas. Parece tudo muito baixo, do alto da nossa existência sem barreiras. Mas é o segredo da autonomia. Fazemos a entrevista no jardim em frente à casa. Há um pequeno degrau à entrada do prédio, que dificulta a saída e a entrada de uma cadeira de rodas. Sem ajuda, Catarina não consegue. Ficamos desconcertados. Afinal, não deveria ser este um condomínio exemplar? Mas Catarina, que lá vive há três anos e se prepara para mudar de casa, atira, pragmática: "Não me faz muita diferença, raramente saio por aqui. Normalmente, saio de carro, pela garagem." 

 

Do dia‑a‑dia para o Instagram 

Catarina tem 35 anos, vive em Matosinhos e é nutricionista, mas também formadora na área dos direitos das pessoas com deficiência. Depois de uma pós-graduação, está a fazer um mestrado em Estudos da Deficiência e dos Direitos Humanos.

"Por cada vez que pensares que o meu maior desejo é voltar a andar, constrói uma rampa." O mote da sua página no Instagram, "Espécie rara sobre rodas", descreve a forma como Catarina encarou a necessidade de se deslocar para sempre numa cadeira de rodas, após sofrer uma mielite transversa, inflamação da medula, aos 27 anos. "Não tive propriamente uma revolta ou um luto. Só quando saí do processo de reabilitação comecei a enfrentar não só as barreiras físicas, que são imensas, mas sobretudo as barreiras comportamentais. Eu estava bem, mas o mundo à minha volta não me recebia como eu achava que deveria ser recebida, como uma cidadã", lamenta. 

Desde então, "condescendência", "paternalismo" e "assistencialista" são palavras que Catarina quer abolir da vida da pessoa com deficiência em prol de uma vida autónoma e independente. No Instagram, tanto encontramos vídeos a criticar o estacionamento de carros em passeios, obrigando a circular de cadeira na estrada, como vídeos a mostrar como é que alguém de cadeira de rodas toma banhos de mar ou abastece o carro sozinho.

Começou com relatos de vivências do dia‑a‑dia: "Ou ia a sítios com o meu namorado e só se dirigiam a ele, ou chegava a ser interpelada na rua por pessoas que me diziam 'falas muito bem para quem tem deficiência'. Partilhava tudo com muito humor, e muitas pessoas começaram a identificar‑se naquele papel de quem já evitou a interação com alguém com deficiência pelo desconforto de dizer alguma coisa errada", conta Catarina. 

Depressa o Instagram se tornou mais um trabalho, a juntar às consultas de nutrição e palestras e ações em empresas, para promover a inclusão de pessoas com deficiência. Catarina fala rápido, mas demora‑se a sublinhar a importância de as marcas a escolherem, nem que seja para falar de um produto para cabelo encaracolado: "Está ali uma mulher numa cadeira de rodas a falar de caracóis e não a falar da sua deficiência. É importante as pessoas verem que uma pessoa com deficiência pode estar em todas as áreas, seja na Assembleia da República, seja numa produção de moda. Quando outras pessoas com deficiência veem alguém com deficiência em diferentes espaços, percebem que aquele espaço também pode ser para elas." 

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"Por cada vez que pensares que o meu maior desejo é voltar a andar, constrói uma rampa" é o mote da página no Instagram da "Espécie rara sobre rodas".

Planeamento para ir jantar e voar 

Atitudes têm um peso, sim, e juntam‑se aos obstáculos físicos, que não são poucos. "Se quero ter uma saída minimamente prazerosa, tenho de planear. Se vou a um restaurante, tenho de perceber se é acessível e tenho de reconfirmar. Ao telefone, dizem‑me que sim, mas no Google Maps percebo que tem cinco graus à entrada. Para eles, a acessibilidade é pegarem‑me ao colo, e isso não é acessibilidade", sublinha. 

Do Porto, a sua região, Catarina não tem muitos bons exemplos, a começar pelas ruas inclinadas da cidade, onde não há muito a fazer. Mas atira culpas também a uma legislação permissiva e à falta de fiscalização: "Vejo coisas novas a serem construídas sem a acessibilidade devida, porque não há fiscalização. Muitas vezes, o que está em projeto não se concretiza em obra. Tem de haver uma fiscalização mais apertada e mais consequente. E a consequência pode ser para as próprias pessoas. Por exemplo, a multa reverter para a construção da acessibilidade."  

Em viagens, onde o planeamento rigoroso é agora também indispensável, Catarina chama a atenção para a falta de preparação e "descaso" dos profissionais das companhias aéreas pelos produtos de apoio: "É muito comum as cadeiras de rodas serem partidas no porão. A minha cadeira custa cerca de 7 mil euros e pesa 4 quilos. Se a estragarem, provavelmente terei de andar com uma cadeira de rodas de hospital, que pesa 20 quilos." 

Acessível implica autonomia

Planear evita encontrar menos obstáculos, mas não significa não encontrar nenhum. Os alojamentos também não primam pela excelência na acessibilidade, que é um direito estabelecido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organização das Nações Unidas. Ou ainda não perceberam bem o conceito de acessibilidade. Catarina exemplifica: "Num hotel supostamente acessível, eu não conseguia aceder à zona de pequeno‑almoço. Solução: levarem ao quarto. Mas eu quero ir ao buffet e poder repetir as vezes que quiser! Portanto, devo poder aceder a todos os serviços."

Outra vez num hotel, desculparam‑se com a pouca utilização para o não-funcionamento de uma plataforma elevatória, que acusava falta de manutenção: "De repente, parecia que a culpa era minha", graceja. No geral, "falta muito entender a acessibilidade como um direito humano, o direito de livre e autónomo acesso". Deixa a dica, ao cuidado dos serviços de atendimento ao público: um balcão rebaixado não serve para decoração com vasos de plantas. Serve para atender pessoas como a Catarina.

Prestações sociais para colmatar falta de equidade no acesso

Catarina Oliveira não tem dúvidas de que a sua situação profissional, com locais adaptados à sua condição, é um privilégio que nem todos têm. Não quer que as pessoas com deficiência se inspirem apenas nela e insiste na diversidade que existe dentro da deficiência, no que a realidades familiares, económicas e de acesso diz respeito.

Contudo, não deixa de apontar o dedo a um "país reabilitador, muito à base de prestações sociais para colmatar a falta de equidade que temos no acesso". Tem a certeza de que muitas pessoas não querem depender de uma prestação social e querem ter o seu salário.

Mas sabe que, na prática, o mundo do trabalho ainda está muito vedado a quem tem uma deficiência. "Às vezes, é muito isto: 'Temos esta vaga para ti. Mas eu não gosto deste trabalho! Mas esta vaga é o que há, e já vais com sorte, porque vão‑te tirar de casa!' E há até pessoas que deixam de trabalhar, porque estão a perder dinheiro, quando gastam o ordenado no único transporte acessível que têm para ir trabalhar, que é o táxi", são relatos de testemunhos que lhe chegam.

Uma lei recente instituiu um sistema de quotas de emprego para pessoas com deficiência ou incapacidade superior a 60 por cento, que está prestes a começar a ser fiscalizado na sua implementação. Para Catarina, são primeiros passos, quando "empresas e organizações ainda acham que adaptar espaços dá muito trabalho e custa muito dinheiro, afastando desde logo a pessoa com deficiência da contratação". 

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Catarina Oliveira dá palestras e participa em ações em empresas, para promover a inclusão de pessoas com deficiência.

Presa a um degrau, nunca à cadeira

Para Catarina, os meios de comunicação social e as redes sociais têm um papel na desconstrução da imagem das pessoas com deficiência. Não esconde que gostaria de chegar (por exemplo, através da televisão) a um público que está fora das redes sociais e da sua "bolha" de contactos interessados no assunto. "Onde é que vemos as pessoas com deficiência? É a chorar num sofá às duas da tarde a falar com uma apresentadora de televisão, e esta referência é muito perpetuada pelos media", alerta Catarina.

A imagem de "condenada ou presa a uma cadeira de rodas" persiste, mas a "Espécie rara sobre rodas" insiste: "Nunca me senti presa à cadeira de rodas; sinto‑me presa a um degrau, à falta de uma rampa e de acessibilidade que vejo à minha volta, e não ao meu produto de apoio." Descrição após descrição ("em casa, sou autónoma; no Porto, não; o que mudou? o ambiente"), uma imagem diferente da pessoa de cadeira de rodas fica bem clara. Para quem enfrenta a necessidade de se deslocar de cadeira de rodas pela primeira vez, Catarina aconselha: "Lida com os teus sentimentos como tiveres de lidar, mas lembra‑te de que o problema não é teu, é das barreiras à nossa volta. Procura outras referências, outras pessoas com deficiência. Experimenta, porque vai haver coisas que consegues fazer de outra forma. Tenho uma vida perfeitamente realizada na minha cadeira de rodas!" 

 

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