"As patologias da voz aumentaram mais de 70 por cento"
Com a pandemia, chegaram mais patologias da voz à consulta, sobretudo de atores, cantores e professores, revela Clara Capucho, responsável pela Unidade de Voz do Hospital Egas Moniz, em Lisboa. Nesta, são observados e tratados pacientes dos quatro cantos de Portugal.
- Editor
- Deonilde Lourenço e Fátima Ramos

Clara Capucho, cirurgiã otorrinolaringologista, é pioneira no estudo da voz em Portugal e professora doutorada em voz profissional. Fundou, em 2005, a Unidade de Voz do Hospital Egas Moniz, em Lisboa, da qual continua a ser coordenadora. Com vários artigos científicos publicados, estuda a saúde vocal em Portugal, tanto em profissionais da voz, como na comunidade em geral – por exemplo, faz parte da equipa que estuda a deteção da covid-19 através da voz (COVOICE-19 Project). Promove rastreios anuais a problemas de voz e desenvolve uma intensa atividade de divulgação dos cuidados com a voz. Numa longa e atribulada conversa, devido aos muitos afazeres, deu-nos a conhecer o mundo dos sons que a apaixonam.
Qual a diferença entre a voz cantada e a falada?
Na voz falada e na voz cantada, utilizamos os mesmos músculos e nervos, mas a colocação e a maneira como a voz é projetada são diferentes. Por exemplo, a voz de peito é a produzida essencialmente ao nível da glote, das cordas vocais. A voz de cabeça é quando há uma contração do [músculo] cricotiróideo e se projeta a voz lá para cima. Quando o cantor canta, além do dom de projetar a voz, tem vibratos, uma colocação de voz, uma extensão vocal determinada, e uma classificação vocal. Ou é tenor, ou é contratenor… O que é um cantor e um ator? É alguém que consegue passar uma emoção na voz. Uma pessoa que consegue produzir emoção nos outros, a cantar ou a falar, tem um dom de voz. E fica emocionalmente gravado em nós, o que faz toda a diferença. Porquê? Quem aborda a voz cantada também tem de saber muito da área e perceber o timbre em que canta, o que está a ser desviado, se usa a voz numa extensão maior... Mas não tem ainda exercícios para isso. É o professor de canto que nos ajuda. Se tiver um cantor com um nódulo, não vou logo operar. Primeiro, vejo o que levou à etiologia daquele nódulo e como o podemos reverter, sem o cortar. Porque, se opero, o que acontece? Muda o timbre, e nunca mais é a mesma voz cantada. Tenho de perceber se aquele nódulo surgiu porque usou a voz fora do registo confortável. Aí, tenho a terapia da fala a ajudar, bem como o professor de canto. Faço a conjugação e dou uma orientação terapêutica.
Os atores também estão incluídos na voz cantada?
Não. Estão incluídos na voz de elite. Há dois grupos, segundo a classificação de Jamie Koufman [laringologista, cirurgião e fundador do Instituto da Voz de Nova Iorque]. A elite vocal, onde se incluem os atores, pertence ao grupo 1. São aqueles que, tendo uma beliscadura numa corda vocal, uma hiperemia [afluxo de sangue à zona] ou uma síndrome gripal, já não podem exercer a profissão. Ao segundo grupo, pertencem os que precisam da voz, como professores, locutores, vendedores ambulantes, administrativos… Estes, às vezes com um bocadinho de rouquidão, ainda exercem a profissão. Mas, se perderem a voz, não. Daí que seja também muito importante perceber até que ponto há seguros para a voz e até que ponto a incapacidade em termos de perda de voz, nestes profissionais, é atribuída de forma correta. A tabela de incapacidades ainda não foi revista: anda à volta dos 30 por cento. É pouco. Ora, caso um cantor tenha um cancro numa corda vocal, e embora curável, a voz perdeu-se. O seu timbre desapareceu.
Quem apresenta mais problemas de voz?
Os professores e as crianças, mas também os cantores e os atores. A barreira das máscaras fez com que a projeção da voz não se fizesse normalmente, porque batia na máscara. As pessoas começaram a criar tensão nos músculos do pescoço. Assim, quando tiravam as máscaras, usavam a voz de uma maneira disfuncional, não normal. Isto é matéria de um estudo sobre atores e cantores que estou prestes a publicar. Os cantores têm de se relembrar de como usar a voz sem máscara. Ora, para um profissional de voz, um cantor, um ator ou um professor, que quer projetar a voz, é um problema. Mal começam, já têm rouquidão, porque há uma disfonia funcional. A nossa memória está um bocadinho atrofiada, devido aos dois anos em que tivemos uma máscara como barreira. Há professores com fadiga vocal, por má colocação da voz. Além de terem usado máscara, muitos estiveram em frente ao computador, em posições musculares de contenção dos músculos, para olharem para as câmaras. Portanto, não usaram uma postura normal para projetarem a voz, e isso prejudicou-os imenso. No caso dos professores, que foram obrigados a dar as aulas através de videochamada, não houve a preocupação de pôr o computador ao nível da face, por exemplo. As posturas foram todas alteradas. Ninguém estava habituado a trabalhar assim... Às vezes, é preciso terapia da fala, para reeducar a colocação da voz.

Que consequências terão os problemas surgidos durante a pandemia, devido à máscara e à postura?
Já estamos a ver as consequências nos profissionais de voz. Por exemplo, os professores têm tido grandes problemas para manterem a profissão. Há alguns a quem estou a mandar dar as aulas com microfone. Já não têm a mesma projeção, nem a mesma postura ou capacidade respiratória. Além disso, pararam, pelo que têm de voltar a exercitar. Já viu o que é um professor a falar durante 20 anos, e agora, de repente, parar dois anos? Claro que a voz voltou para trás, desmemoriou muito do que é projetar. Teve de se habituar a outros critérios. Isso vai resultar em disfonias de tensão muscular e dores ao nível do pescoço e da coluna. Muitas destas disfonias funcionais fizeram lesões nas cordas vocais, como nódulos e edemas fusiformes, que agora têm de ser reabilitados. Não é preciso operar a maioria, mas há pequenas patologias que se agravaram.
É reversível?
Sim, é possível reverter, mas têm de ser tratados e vistos com cuidado. Não se pode deixar um professor com uma disfonia funcional, rouco, a continuar a dar aulas, porque vai desenvolver um nódulo e terá de ser operado.
Quais as doenças mais frequentes na consulta de voz?
Além das disfonias funcionais de quem começou a usar a voz profissional − às vezes, pensam que têm grandes lesões, mas é só a má colocação, que se resolve com sessões de terapia e de reabilitação −, temos muitos fumadores que ficaram roucos durante a pandemia. Não vieram à consulta, com medo de serem contaminados com covid-19 nos hospitais. Agora, detetámos cancro das cordas vocais. Temos ainda cancros da laringe e doenças sexualmente transmissíveis, como as papilomatoses laríngeas, causadas pelo HPV, o vírus do papiloma humano. Recebo crianças de outros países de língua portuguesa em estado bastante grave, que já temos operado. Depois, há as crianças que regressaram à escola e gritam muito, entusiasmadas, e ficam roucas, com traumas ou nódulos nas cordas vocais. Recuperam com terapia da fala.
Nos rastreios à voz, tem detetado problemas graves?
Sim. Paralisias das cordas vocais, cancros no início, papilomatoses, nódulos… Por isso, os rastreios são importantes. Servem para fazer um diagnóstico precoce, sobretudo em fumadores, que estão expostos a um risco cancerígeno. Vamos apanhar laringites crónicas, mas também podemos perceber se há indícios de uma lesão cancerígena. Se for o caso, operamos, tiramos e tratamos. Tratado no início, um cancro da corda vocal é curável, em 98% dos casos.
Quais os sinais de alarme que justificam uma ida ao médico?
Sempre que a voz muda e que, ao fim de duas ou três semanas, não volte ao normal. Sempre que, profissionalmente, vá usar a voz e já não consiga falar tanto tempo ou projetar a voz tão longe como dantes. Tem-se uma rouquidão por algum motivo. Portanto, devo ir a um médico ver o que se passa. Na origem da rouquidão, podem estar uma doença neurológica, reumatismal ou inflamatória, uma lesão cancerígena, uma disfonia espasmódica, uma gripe... mas também um abuso vocal − as pessoas que gritam no futebol ou num concerto − ou uma má colocação de voz.

Que cuidados devemos ter com a voz?
Temos de beber muitos líquidos, principalmente água. Temos de repousar a nossa voz, porque, como qualquer parte do corpo, esta precisa de descanso, e não a utilizar em abuso – gritar e falar demasiado, ou fora do tom, podem prejudicar a voz. Se esta der sinais de que não está bem, é melhor parar. Ao imitarmos outras pessoas, sem técnica, também podemos lesionar as cordas vocais. Depois, devemos evitar o refluxo, evitando comer antes de dormir, fumar ou beber muitas bebidas alcoólicas à noite, ou café, porque desidrata bastante. Dormir com a cabeceira baixa também não é recomendável. Devemos também cuidar da rinite alérgica, porque faz com que haja muita rinorreia posterior e folga as cordas vocais e provoca pigarreio, que traumatiza nas cordas vocais. Perante o reflexo de pigarrear, o melhor é beber um golinho de água.
Como investigadora, participa no estudo COVOICE. De que se trata?
É um estudo que está a avaliar a deteção da covid-19 através da voz. É um screening, à partida não invasivo, que pode ajudar a identificar a doença, que, depois, será confirmada pelo PCR. Isto vai utilizar a inteligência artificial, através de uma aplicação. Neste momento, já temos um site para as pessoas gravarem a voz (covoice-19.uninova.pt), de modo a continuarmos o estudo, e temos 600 doentes portugueses estudados. Mas queremos alargá-lo a outros países.
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