Domingos Fernandes: "A inovação pedagógica é uma prioridade"
Acérrimo defensor do ensino público, Domingos Fernandes, presidente do Conselho Nacional de Educação, defende a inovação pedagógica nas escolas, de modo a dotar os alunos de espírito crítico e prepará-los para a incerteza.
- Editor
- Deonilde Lourenço e Fátima Ramos

Presidente do Conselho Nacional de Educação, desde junho de 2022. Foi professor do ensino básico, secundário e superior durante cerca de 40 anos. É professor catedrático no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Tem investigado o ensino e a aprendizagem da matemática, as políticas curriculares, a avaliação de programas e de políticas públicas de educação e as políticas e processos de formação de professores.
A crise que o ensino público atravessa é interpretada por muitos como sinónimo da sua falência. Concorda?
Não, não concordo. Nem pensar. Os dados credíveis e reconhecidos, nacional e internacionalmente, acerca da evolução da educação portuguesa, não indiciam nada disso. Muito pelo contrário. Há uma grande vitalidade. Temos cerca de 86% de taxa de escolarização no ensino secundário, já muito próxima da taxa média da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico].
Nos anos 80, cerca de 90% dos alunos com idade para o ensino secundário estavam fora, algures, não se sabe bem onde. A taxa de escolarização era de apenas 12%, nos anos 80; depois passou para 30% nos anos 90. Só a partir de cerca de 96 é que a taxa ultrapassa os 50%, mais de 20 anos depois do 25 de Abril. No início deste século, passou para mais de 60% e, agora, para 86 por cento. Se olharmos para as taxas de abandono precoce, tínhamos 20 a 30% de alunos do ensino básico e secundário nessa situação. Agora, os números são residuais.
Quanto aos percursos diretos de sucesso, ou seja, alunos que terminam um ciclo de escolaridade sem reprovar, no terceiro ciclo e no ensino secundário, esse valor está em cerca de 90 por cento. Quando Portugal começou a participar no PISA [Programa de Avaliação Internacional de Estudantes desenvolvido pela OCDE], em 2000, cerca de 50%, ou mais, dos alunos que faziam esse teste tinham reprovado, pelo menos, uma vez. Neste momento, 90% dos que acabam o 9.º ano fazem-no sem reprovar. Isto são exemplos que mostram claramente que o ensino português não está à beira da falência.
O sistema português é muito bom em termos internacionais. Temos é dois problemas: um de qualidade das aprendizagens e outro das desigualdades. Persistem no nosso sistema desigualdades ainda muito marcadas pela origem socioeconómica dos estudantes. E um fenómeno mais recente, que é a origem étnica dos estudantes. Temos já 90 mil imigrantes: 60 mil no básico e 30 mil no secundário. E o problema é que são esses alunos que mais reprovam.
A pergunta está relacionada com o ensino público. O privado tem ganhado relevância...
Estou a falar do ensino público. Os dados não indicam que o número de alunos tenha aumentado no ensino privado, pelo menos, de forma significativa. Portugal tem uma tradição muito forte de ensino público. A esmagadora maioria das pessoas que estão em lugares, digamos, relevantes da sociedade, em todos os setores, frequentaram o ensino público.
A questão é que se diz que está a perder qualidade.
Tenho dificuldade em perceber isso. Ou damos alguma credibilidade aos dados internacionais, ou não. Os dados do PISA, por exemplo, que avalia as competências de alunos com 15 anos em literacia da matemática, da leitura e científica, indicam que Portugal agora está acima da média da OCDE.
Quando começou, em 2000, tinha uma posição bastante modesta, para não dizer medíocre. Se isto significa alguma coisa, e significa, do meu ponto de vista, há uma evolução positiva nas aprendizagens dos alunos. Temos aquele queixume de que está sempre tudo mal…
Fiz uma investigação sobre o PISA e tínhamos de entrevistar professores, diretores e diretoras. Uma das perguntas era se os meninos e as meninas estavam a aprender ou não. A primeira reação era a de que "eles agora não sabem nada, porque não estudam, não aprendem…" A pergunta a seguir era: "Como explica, então, que Portugal esteja acima da média da OCDE nos resultados do PISA?" E o discurso mudava: "Bem, vão aprendendo alguma coisa." Isto são perceções!
O ensino público revela grande dinamismo, apesar dos muitos desafios. Temos de melhorar a qualidade da educação e da formação, sem dúvida. Mas o sistema tem evoluído. Quem não estava na escola, hoje está, e estamos a conseguir que cada vez mais meninos e meninas progridam na educação, que vão cada vez mais longe.

Mas o questionamento do ensino tomou maiores proporções, devido ao grito coletivo dos professores. O que desencadeou esta posição?
Eventualmente, há três razões. A primeira é que, infelizmente, desenvolveu-se, na sociedade portuguesa, a cultura de que os professores tinham de ter uma vida contrária àquilo que deve ser uma vida numa carreira normal. Interiorizou-se que o normal seria andar-se 18 ou 20 anos para vincular; ter de concorrer todos os anos, para ter um contrato de um ano; de esperar não sei quantos anos para subir de escalão… Os professores foram bastante penalizados ao longo de décadas, não só agora.
Outra razão tem que ver com a situação do País: no último ano, houve uma série de incidentes, indemnizações daqui e de acolá, com os quais os portugueses – nomeadamente os professores – não se sentiram, nem se sentem bem. As pessoas sentem-se injustiçadas.
A terceira questão é delicada. O Governo tomou um conjunto de decisões de política educativa bastante denso. Por exemplo, a questão da inclusão, que diz que os meninos e as meninas com problemas mais ou menos profundos devem ser integrados nas escolas públicas. Representa um salto civilizacional extraordinário, mas não é fácil. Outros exemplos têm que ver com a autonomia e a flexibilidade curricular. Há medidas, reconhecidas como muito positivas em termos internacionais, que vão exigir das escolas e dos professores outra forma de trabalhar. E isto tem de ir devagar.
Os professores queixam-se da burocracia.
É capaz de haver um excesso de burocracia, mas também penso que haja uma certa confusão com aquilo que se exige a um pedagogo: trabalhar de forma diferente. E isso não é burocracia, é pedagogia.
O relatório sobre o estado da educação cita um trabalho que refere que 85% dos empregos em 2030 ainda estão por inventar. Como é que se prepara um estudante para a incerteza?
Exatamente. Independentemente desse número, citado em relatórios internacionais e em trabalhos da UNESCO, o que me parece é que temos de preparar alunos para serem autónomos. E isto exige uma pedagogia e uma formação de professores completamente diferente. Exige que um dos principais desígnios dos sistemas educativos seja estar preparado para aprender a pensar e a aprender.
No essencial, a aprendizagem a valorizar deve ser a transferível para outros contextos. E isto coloca um problema: aprender é debitar aquilo que ouvi, ou é pensar sobre aquilo que ouvi e levantar e resolver problemas complexos? Há uma tensão entre as pessoas que acham que isto se resolve dizendo e ouvindo. Ou seja, o professor diz, o aluno ouve. E há outras pessoas que acham que por aí não vamos lá. Temos, essencialmente, de ter os alunos a resolver problemas, para pensarem, não através de um algoritmo preeexistente, mas do pensamento, da elaboração cognitiva.
A investigação empírica tem mostrado que os alunos com menos dificuldade, por exemplo, no ensino superior, são aqueles que, antes de lá chegarem, foram educados para a autonomia, para resolverem problemas. O Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória é um documento de futuro. Aponta o tipo de jovem que queremos que saia do 12.º ano. O mundo nunca foi tão incerto, nem tão inseguro e imprevisível como agora. A pandemia, a guerra, que obrigam a ajustes nas nossas vidas… As pessoas não são preparadas para lidar com problemas complexos e de forma integrada.
O que pensa dos rankings das escolas? Espelham a realidade ou é mais complexo?
Espelham uma certa realidade, mas acho que os rankings não são a melhor forma de olhar para as organizações, que são as escolas, e para as pessoas que lá trabalham, sejam professores, outros técnicos ou alunos. O que se faz é uma agregação de dados quantificáveis. Dizer que, tendencialmente, nos primeiros lugares, estão as melhores escolas, os melhores professores e os melhores alunos… Podemos utilizar muitos argumentos para deitar isso abaixo.
Os rankings têm melhorado tecnicamente. Hoje já consideram o contexto, e uma série de coisas, mas é sempre uma simplificação excessiva do que é o trabalho da educação e do ensino. Parece-me muito redutor. Assim como é redutora a ideia de que a qualidade da educação e a questão da melhoria dos sistemas educativos se resolvem por exames tout court.
Os exames têm o seu lugar nas sociedades, mas há muitas coisas que não são avaliadas através de exames. E, depois, há a tendência, muito difícil de contrariar, de ensinar e de estudar para o exame. É compreensível, mas leva ao que se chama, na gíria da educação, “estreitamento do currículo”. Tudo o que seja arte, tudo o que seja pensar noutras coisas, não se faz.
À partida, tenho as maiores reservas em relação aos rankings, para não dizer que sou manifestamente contra. Não resolvem problema nenhum, correndo o risco de haver escolas e pessoas estigmatizadas. O trabalho pedagógico tem de ser o mais inclusivo possível. Temos de pensar que pessoas queremos para o futuro: queremos crápulas sociais, que podem ter vintes e dezanoves, mas não são pessoas solidárias, empáticas com o seu semelhante? Temos de cuidar desses aspetos.

Como vê o ensino no futuro? A profissão de professor vai continuar a existir?
Não tenho dúvidas de que vai continuar a existir. As escolas e as universidades são instituições milenares que vão ficar. Agora, esta escola, tal como existe, responde com muita dificuldade aos desafios do mundo atual.
Há escolas a trabalhar de forma extraordinária e diferente. As escolas portuguesas têm uma autonomia muito significativa para gerir o currículo. Isto permite lidar com os problemas de forma completamente diferente. Já há 100 agrupamentos com planos de inovação para terem mais autonomia curricular.
Um dos problemas da nossa tradição pedagógica é haver pouca interação social. Não tenho um currículo em que pergunto: “Diz-me o que estás a pensar sobre este assunto; o que vos suscita este assunto? Formulem duas questões para resolvermos em relação a este problema.” As questões, de acordo com a investigação, são das tarefas que mais desenvolvem o intelecto. É isto que fazemos nas nossas escolas? Temos de repensar a forma como estamos a trabalhar, do ponto de vista pedagógico.
Essa vertente já é tida em conta na formação dos professores?
Sim, mas, eventualmente, precisamos de melhorar. Estou a falar na formação contínua, organizada através dos centros de formação, da associação de escolas, mas também da formação inicial. As universidades e os institutos politécnicos necessitam de pensar maduramente acerca da formação que estão a proporcionar, porque está muito longe das escolas. Aliás, há países em que a formação inicial dos professores é feita essencialmente nas escolas do ensino básico e secundário.
Está a falar de estágios durante o curso?
Não, estou a falar da formação toda, incluindo o estágio. A formação deveria ser realizada essencialmente em contexto de trabalho. Temos o exemplo dos enfermeiros: 50% ou mais da formação é feita dentro dos hospitais, dos centros de saúde... No caso dos professores, 99% da formação é feita numa universidade, com uma pessoa que, se calhar, nunca foi professor do ensino básico e secundário, a dizer como se deve fazer. Não conhece a realidade. Acabamos por formar pessoas que não estão preparadas para as dificuldades dos sistemas.
Mais de metade dos professores do ensino básico e secundário têm mais de 50 anos. E parece haver menos interesse dos alunos pelos cursos de ensino. Como é que isto se resolve?
A questão preocupa-me. Temos de ser criativos e ir buscar professores onde for possível. Se o País precisar de ir buscar licenciados para suprir dificuldades no recrutamento de professores pelas vias da formação de professores, parece-me que o que vai levantar mais problemas é garantir uma formação pedagógica adequada, que é absolutamente crucial.
Tem de haver também, da parte da sociedade, uma preocupação em conhecer como se trabalha, ensina e aprende nas escolas portuguesas. Quem são os professores, de onde vieram, como trabalham, como é que estão ao lado dos seus alunos… Sou professor há 40 e tal anos, mas era para ser engenheiro. E na família até me disseram: “Ah, julgávamos que ias ser engenheiro, afinal vais ser só professor.” Não estou arrependido de ter sido só professor. Temos de aproximar a sociedade da escola, para que saiba do que se está a falar.
Se o CNE tivesse poder executivo, o que mudava já?
O CNE, através das suas comissões permanentes, revela o que são as suas preocupações e aquilo que pensa que é necessário ser feito. E uma delas é a inovação pedagógica. Porquê? Porque precisamos de atingir um patamar que nos permita combater as desigualdades e melhorar a qualidade. Isto passa pela pedagogia, pelas qualificações pedagógicas dos professores.
Até ao final do ano, vamos entregar recomendações ao Governo, resultado do trabalho dessas comissões. A recomendação da inovação pedagógica é uma delas. Quando o Governo diz: “Se fizerem projetos de inovação pedagógica podem ter mais autonomia para desenvolver o currículo”, é muito importante que as pessoas, nas escolas, debatam e tenham acesso a materiais. O CNE vai fazer um referencial.
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