Conceição Calhau: “Cozer e grelhar é lavar e secar os alimentos”
Defensora do regresso às raízes da dieta mediterrânica, Conceição Calhau nega o estatuto de mais saudável a cozidos e grelhados. E ambiciona ver a alimentação nas prioridades da saúde pública e nos programas escolares, de forma mais prática do que a atual.

Educação e marketing alimentar
Os portugueses alimentam-se mal. Com tanta informação, porque insistimos nos mesmos erros?
Se, até há muito pouco tempo, considerávamos ignorante aquele que não tinha acesso à informação, neste momento, é aquele que não consegue distinguir o certo do errado. Se existe tanta informação, porque é que as pessoas não aderem? Desde logo, não compreendem o que é essencial. Depois, não compreendem como vão mudar de atitude. Estamos a falar de comportamentos e rotinas que, na maioria, são sempre os mais difíceis de mudar. A maioria das pessoas pode saber que a dieta mediterrânica é aquela que é importante, que comer leguminosas e hortícolas todos os dias é importante, mas não o fazem. E, de forma mais ou menos consciente, também não têm noção do impacto que pode ter na saúde, a médio ou longo prazo. Estamos sempre muito mais sensibilizados para aquilo que é agudo. Ou seja, se tiver uma intoxicação alimentar, vou ter uma consequência no momento. Essa associação direta ao momento é muito mais fácil de compreender do que assumir que estes erros, excesso de sal e de açúcar e gordura saturada, e menos leguminosas e hortofrutícolas, a médio ou a longo prazo, vão ter consequências.
E em termos de políticas?
Em Portugal, temos um programa prioritário na Direção-Geral da Saúde (DGS), desde 2012. A verdade é que, se calhar, lembramo-nos da taxação do açúcar nas bebidas, mas não temos muito mais esforços. Não temos tantos nutricionistas no Serviço Nacional de Saúde como seria desejável, e não temos acesso às consultas de nutrição, sobretudo nos cuidados primários, como seria desejável. Temos mensagens globais ou de saúde pública, mas temos dificuldade de ir da regra até à sua aplicação. Desde o acesso, do ponto de vista financeiro, aos outros ministérios estarem alinhados com o Ministério da Saúde, há falhas identificadas. Todos os anos, os relatórios da Direção-Geral da Saúde dizem a mesma coisa. Todos os anos, temos previsões sobre o crescimento do excesso de peso e da obesidade. Porque é que continuamos a não priorizar a alimentação dentro da saúde? Vamos ouvindo dizer que o ministério não é da saúde, é da doença, que devemos ter um ministério da saúde, que devemos ter a prevenção da doença e a promoção da saúde... Mas não temos.
O que pensa sobre a restrição de alimentos nas escolas?
Do ponto de vista de saúde pública, a legislação é sempre importante, porque, se não houver legislação, temos mais dificuldade em atingir as metas. Qual é a consequência da medida? Os meninos vão comer fora. Se não é compreendido, não é bem aceite. Aí está um bom exemplo de uma medida política já tomada noutros países, e cujo modelo poderia funcionar. Só que todas as partes têm de estar em sintonia, e não estão. Desde logo, proibir a venda de alimentos de determinadas categorias na periferia das escolas. Isso não acontece. Os bares não vendem certos alimentos, mas não conseguiram ter opções equivalentes razoáveis. Já não se come a sandes de pasta de frango, porque tem maionese, mas, depois, fazem uma coisa seca que, obviamente, os miúdos não vão comer. Não conseguiram ter a criatividade, a formação, para perceberem o que têm de fazer, de maneira que aquela medida seja bem aceite. O programa da [disciplina] Cidadania – se calhar, é o momento de refletirmos sobre os conteúdos – seria uma oportunidade de envolver mais os miúdos no autocuidado da saúde. Na escola, dão a roda dos alimentos e a descodificação de rótulos. Isso é insuficiente, é teórico. Deveriam estar comprometidos em saber preparar refeições e comprar os alimentos, na questão da saúde no seu todo. Dar competências para saberem gerir as contas. E envolver mais os pais. Se isto tudo não está alinhado, uma medida destas fica isolada e mal-entendida.
E as prateleiras dos supermercados “exclusivas” para alimentos supostamente mais saudáveis?
Se estiverem exatamente identificados como saudáveis – muitas vezes, até temos essas pseudo-alegações –, é um risco. A oferta é feita pela procura e, obviamente, as pessoas procuram ter mais saúde, procuram mais alimentos para ter saúde. Mas, depois, aquilo é um desvio. Tem muitos adoçantes, açúcar de coco, açúcar de beterraba, sal dos Himalaias... Isso é tudo mito relativamente ao que pode ser um alimento adequado. Outro mito é o da bolacha de aveia. Basta ter lá a palavra “aveia” para ser maravilhoso. Mas, se olharmos para o descodificador de rótulos, está no vermelho, porque tem muita gordura saturada.
Quem é Conceição Calhau?
Nutricionista, professora catedrática na Nova Medical School e autora de vários livros sobre nutrição.
Alimentação saudável

Como define uma alimentação saudável?
O que é que é saudável, hoje? Nos anos [19]70, criou-se a roda dos alimentos, para mostrar o que é a alimentação saudável, e foram-se fazendo campanhas de alimentação saudável. Neste momento, tenho resistência a utilizar essa terminologia. E até já está, não só totalmente errada, como também desvalorizada ou até descredibilizada. Depois, temos esta conotação de que o caseiro é saudável. Portanto, o que é saudável? A alimentação adequada. E o que é a alimentação adequada? A dieta mediterrânica. Não temos dúvidas, cientificamente, e do ponto de vista de saúde pública, de que era o que deveríamos adotar. Há duas prioridades: comermos fibra e alimentos fermentados. Alimentos ricos em fibra, que têm fibra e muitas outras coisas, também muito necessários. Para essa quantidade de fibra, precisamos de hortícolas. E não é pondo salada no prato que consigo os 25 gramas de fibra de que preciso por dia. São os hortícolas cozinhados, os espinafres, os brócolos, o feijão-verde, as leguminosas, a fruta... Estamos a falar de duas vezes hortícolas, talvez ao almoço e ao jantar, e três peças de fruta por dia.
Coladas às refeições?
Sim. Há a mania da fruta isolada ou com a sua melhor companhia, que é a bolacha, não é? É só hidrato de carbono com hidrato de carbono. Outra prioridade para a fibra são as oleaginosas, os frutos gordos: nozes, amêndoas, caju, avelã...
Frutos secos em geral?
Sim. Temos recomendações de 30 gramas por dia, para baixar o colesterol, por exemplo. E a verdade é que não comemos nem 15 gramas de frutos secos ou gordos. Dentro da fibra, estariam cereais, hortícolas, fruta, leguminosas e oleaginosas. Conseguimos fazer esta ingestão?
E os produtos fermentados...
Podemos dizer que é o iogurte. É fonte de probióticos, ou seja, bactérias benéficas para a saúde. Sendo a microbiota intestinal um tema muito importante e que, no nosso estilo de vida, temos andado a degradar, o alimento fermentado está muito associado à saúde. E, do queijo, também fermentado, há que escolher o que tiver menos sal. Se cumprir estas duas premissas [ingerir fibras e alimentos fermentados], hidratar, beber água – que é um alimento –, e comer peixe três vezes por semana, estou a fazer a dieta mediterrânica. E a forma de preparar os alimentos não é cozer e grelhar – esse é outro mito. Cozer e grelhar é lavar e secar o alimento, é tirar a gordura. Foi uma alteração nas nossas tradições. Pensamos que o cozido e o grelhado é que são saudáveis. Não são.
Que confeção é saudável?
A culinária mediterrânica. É a caldeirada, o ensopado, o arroz de peixe, a massada de peixe, a feijoada. É comida de tacho. Obviamente, o problema das feijoadas, a existir, são os enchidos e o sal, porque, de resto, o feijão, a couve, a carne ou o peixe estão bem, e usar ervas aromáticas – e o sal o menos possível. Outro problema em Portugal é o excesso de sal. Fomos tendo 11 gramas de média de consumo por pessoa, por dia. Agora, é à volta de sete. Mesmo assim, estamos acima do máximo: 5 gramas por adulto por dia. Se é uma média, significa que há muitas pessoas a comerem 30 gramas. E isso vê-se, não por aquilo que se estima, ao perguntar às pessoas, mas na excreção urinária.
No geral, podemos dizer que a solução passa por afastar os alimentos processados, escolher alimentos simples e cozinhar em casa?
O processado não tem de ser negativo. A indústria alimentar foi extremamente importante para a segurança alimentar e para a disponibilidade de alimentos. Agora, diz-se, muitas vezes, que o caseiro é que é bom, como se o processado fosse mau. Também posso ter uma alimentação inadequada em casa. Aliás, quando se fala em consumo excessivo de sal em Portugal, os alimentos processados não são a principal fonte. É muito mais a adição na preparação das refeições. E a sopa que se come fora de casa. As principais fontes de sal, noutros países, são os processados; em Portugal, é o que se adiciona no domicílio, e, depois, é o pão e a sopa fora de casa. Não é verdade que tudo aquilo que preparo em casa é melhor. Aliás, temos algumas tendências, e essas preocupantes, relativamente à introdução de alimentos aos bebés. As papas infantis evoluíram de uma maneira segura, tenho uma triagem dos cereais, até do ponto de vista microbiológico e de algumas micotoxinas, adição de iodo, de ferro... Evoluímos tanto e, de repente, temos pessoas a fazer vídeos a preparar papas infantis em casa completamente desadequadas, até nutricionalmente não equilibradas, e que não têm estas fortificação tão necessária.
Sugere, nos seus textos, um pequeno-almoço com leguminosas, feijão, lentilhas... Isso não é demasiado ousado para os portugueses?
Já estamos ocidentalizados com a meia de leite e o pão com manteiga, ou o croissant. No fundo, o pequeno-almoço europeu é esse, mas não vejo por que não ter leguminosas. Ao pequeno-almoço, precisávamos de ingerir mais proteína, cerca de 20 gramas. E não é proteína animal, dois terços da proteína de todo o dia devia ser de origem vegetal. Portanto, é uma sugestão que ficava bastante bem equilibrada, porque, além de ter proteína, tinha fibra, hidratos de carbono de baixo índice glicémico. Se as pessoas não gostam de comer as leguminosas ao pequeno-almoço... Se calhar é uma aprendizagem. E ficam mais saciadas. As pessoas começam a comer mais ao final do dia porque estão desconsoladas, não fazem um bom pequeno-almoço.
Excesso de açúcar e gorduras
Também se ultrapassam os limites da gordura e do açúcar?
Temos um grande consumo de gordura saturada e de açúcar. Quando pensamos [que o açúcar deve representar] entre 10% e 20% do valor energético total, dentro dos hidratos de carbono, o que significa 25 gramas por dia, facilmente percebemos que o ultrapassamos. Basta comer dois iogurtes, que também são alimentos que se entendem saudáveis... Dois iogurtes, de aromas ou de pedaços, de 125 a 150 gramas, terão 15% a 19% de açúcar. Se comer dois por dia, já ultrapassei os 25 gramas.
Qual é a sua opinião sobre os alimentos com adoçante?
O adoçante, no mínimo, continua a viciar, porque a exigência do doce será, na mesma, elevada. Por outro lado, os adoçantes não calóricos estimulam os recetores do doce no organismo. É por isso que temos a sensação do doce. A ativação de um recetor tem uma sinalização do nosso metabolismo. Ou seja, mesmo não entrando o doce, acendem-se todas as campainhas no sentido de que entrou. Acionam-se vias de inflamação. Mesmo não entrando doce, há consequências. Isso é evidência científica. Aliás, é tão robusta que, no ano passado, a OMS finalmente se pronunciou face aos adoçantes não calóricos, que já se sabia há muito que tinham consequências negativas na saúde.
Então, iogurte com adoçante ou com açúcar?
Nenhum dos dois. Iogurte natural. Pode pôr fruta, canela, nozes, amêndoas, e está bom. Uma coisa é ter polpa de fruta, outra é adicionar umas colheres de açúcar. Os influencers da vida andam na Internet a traduzir alimentos em pacotes de açúcar. E, às vezes, estamos a cometer erros. Se tiver uma laranja, não vou pôr ao lado o equivalente em pacotes de açúcar. Não é a mesma coisa.
E escolher leite magro é um erro?
Pode ser, no sentido de que estou a tirar, por exemplo, vitaminas lipossolúveis. E a gordura do leite é uma gordura saturada de cadeia curta. Não está relacionada com o risco cardiovascular.
Custo dos alimentos

O que tem mais peso nas opções alimentares, o custo ou a literacia?
Isso é uma pergunta difícil. O que sabemos, das observações, é que as pessoas com menos conhecimento, e até com mais pobreza, comem pior e têm mais obesidade. E se olharmos para os carrinhos de compras, muitas vezes, vemos a adição a alguns alimentos, por uma insegurança alimentar. Ou seja, psicologicamente, vou comprar isto porque, amanhã, posso não ter. Por outro lado, é um desconhecimento do que é, de facto, essencial. Apesar das deficiências económicas, é o refrigerante, a batata frita, as refeições já prontas, a lasanha, a pizza que compõem o cabaz destas pessoas. Esta insegurança alimentar também faz com que comam em excesso hoje porque têm o receio de não ter amanhã. Isto é mais premente nas classes mais baixas, mas não significa que quem tem mais acesso ao conhecimento e mais facilidade coma melhor. Por isso, na nossa primeira edição da Summer School, tivemos crianças com carências económicas. Percebemos o quanto é importante eles saberem o que é essencial, para poderem ter uma ligação melhor com os alimentos. A verdade é que, se eu vou a um bar, isso acontece até no hospital, e tenho donuts a 45 cêntimos e iogurtes com mirtilos a 2,80 euros; tenho o croissant folhado 55 cêntimos e um pão com queijo a 1,80 euros... Isto é escandaloso. Já não basta a literacia, porque o custo não é igual. Mais, quase sou obrigada a comer aquilo, porque é o que basicamente ocupa a montra. Não é que o preço da matéria-prima seja muito diferente, mas é a forma como se vende.
Mas comer saudável não é necessariamente mais caro…
Não. Claro que o exemplo que dei do bar é mais caro. Agora, se comer arroz com feijão, não posso dizer que é mais caro do que comer o hambúrguer com a batata frita. E o arroz com feijão, nutricionalmente, é bastante equilibrado. O IVA dos alimentos era uma estratégia. Devíamos ter cabazes com isenção. Porque só dar o conhecimento não chega. As medidas políticas têm de ajudar. Se não for mais, há ali o empurrãozinho, porque as pessoas sabem que aquele cabaz tem outra taxação. O acesso aos alimentos está bastante deturpado, não é linear.
E não é pondo salada no prato que consigo os 25 gramas de fibra de que preciso por dia. São os hortícolas cozinhados, os espinafres, os brócolos, o feijão-verde, as leguminosas, a fruta...
Perda de peso
Que comentário é que lhe merece esta profusão de dietas restritivas, mágicas, vendidas como uma espécie de poção mágica para a pessoa ter uma silhueta fantástica e comer de forma saudável? Quais são as mais perigosas?
Uma má relação com a comida. Isso é mesmo muito preocupante. Tudo aquilo que é restritivo, de forma inadequada, não orientada, não adaptada ao indivíduo [é perigoso]. Claro que se falarmos nas [dietas] drásticas, quase sem hidratos de carbono, algumas têm 10 ou 15 gramas por dia, é mau, porque ninguém come hidratos de carbono, come alimentos que têm hidratos de carbono, e, depois, também são fontes de vitaminas, por exemplo. Muitas vezes, temos desorientação ou desnutrição em relação a microelementos, como é o caso das vitaminas. Mas, principalmente, as pessoas ficam tão privadas de uma fonte de energia importante, que perdem massa muscular. E muitos perdem peso, mas à custa da perda de massa muscular. E, depois, queixam-se de que o seu metabolismo está mais lento. É porque foram abusando de comportamentos erráticos e o organismo tornou-se mais lento, porque foi falhando numa via metabólica, noutra via metabólica, e, quando damos conta, já só temos prioridade a acumular gordura.
Portanto, se a pessoa quer perder peso ou manter-se em forma, o mais adequado é ter um plano individual.
É ir ao nutricionista, sem dúvida. É ir ao médico, fazer análises, saber exatamente o que é que se está a passar. É fazer uma análise das suas variáveis modificáveis. É importante perceber o que é está a elevar o peso. São esses fatores que vou corrigir. Não é uma medida igual para todos. E uma coisa é estagnar a linha, outra é mobilizar o que está armazenado. Isso unclui também exercício físico e atividade física. A maioria das vezes não se querem mexer.
Quais os ingredientes para uma vida saudável?
Temos os números mágicos, também gosto de dizer. Estou a citar aquilo que são os livros da Medicina Geral e Familiar, que é o 0, o 5, o 10, o 30 e o 150. Zero tabaco; 5, os five a day, cinco hortícolas e fruta por dia. Depois, 10, são os dez minutos de meditação. A nossa cultura não é muito de meditação, mas dá a prioridade ou sublinha a importância da gestão de stresse. O 30 referem-se a um índice de massa corporal inferior a 30, e 150 minutos de exercício físico vigoroso por semana. Estes são os números mágicos para se ter saúde.
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