Via verde só para utentes sem médico de família
Quando precisavam de consulta, cerca de 37 mil utentes do concelho do Seixal, como tantos outros pelo País, eram obrigados a tentar a sorte de madrugada. Agora, marcam de véspera, por telefone, e aparecem à hora. Não têm médico de família, mas via verde para uma equipa. Conheça o projeto.
- Editor
- Fátima Ramos

“O senhor doutor vai ser o meu médico de família? Da próxima vez, posso pedir para marcar para si?” São as perguntas que Diogo Miragaia, médico no último ano da especialidade em medicina geral e familiar, mais ouve. E a resposta é sempre a mesma, e negativa, porque, neste serviço, não há listas de utentes por médico, mas uma equipa de médicos, enfermeiros e assistentes para cerca de 37 mil utentes sem médico de família atribuído. Como diz Olívia Matos, coordenadora da equipa de enfermagem da Via Verde Saúde – Concelho do Seixal, “este é um projeto de recurso, não existe vínculo. As pessoas são atendidas no que precisarem, mas não, em continuidade, pelo mesmo médico”.
A marcação de consulta é feita exclusivamente por telefone, de um dia para o outro − ou para o próprio dia, se for urgente −, para o médico que tiver agenda livre. Sempre que possível, no horário pretendido pelo utente. “Tentamos organizar-nos em função das necessidades das pessoas. Temos muitas consultas e vacinações pós-laborais”, refere Olívia Matos. Esta questão é particularmente importante, porque há muita gente com relações de trabalho frágeis, e as pessoas têm medo de perder o emprego, explica. E porquê só de véspera? “É a maneira mais eficiente de evitar faltas às consultas”, garante Alexandra Fernandes, coordenadora da equipa médica. Há dados a indicar que as consultas pré-marcadas têm 20% de absentismo, em todas as unidades.

Projeto proposto por equipa de profissionais
O projeto nasceu da vontade de um grupo de profissionais inconformados com o baixo nível de cuidados prestados aos utentes sem médico de família, sobretudo ao nível da acessibilidade. “Com este sistema, passámos a ter uma resposta mais qualificada e equipas dedicadas a esta população, que tem características particulares, dinâmicas culturais próprias, e outra forma de aceder aos serviços de saúde”, evidencia Alexandre Tomás, diretor executivo do ACES Almada-Seixal. Para a coordenadora da equipa médica, Alexandra Fernandes, trata-se de “devolver a dignidade a estas pessoas, porque ‘sem’ médico é como ‘sem’ casa ou ‘sem’ abrigo”. O que significa isto? “Quando iam ao serviço de saúde, estes utentes eram sempre quem estava a mais. Os profissionais, além dos seus doentes, tinham de ver os ‘sem’ médico. Este nosso serviço é exclusivo para eles. São utentes da equipa”, atira a coordenadora. E ficarão aqui apenas até haver vaga na USF. Porque todos têm direito a equipa de família.
Organização inovadora
Com a falta de médicos de família, a equipa teve de ser criativa. Além de integrar médicos internos, em estágios de cinco meses, recorre a profissionais reformados que queiram “fazer umas horas”, e dá mais protagonismo aos enfermeiros especialistas, sobretudo em saúde materna e infantil. São estes que se encarregam da programação, do agendamento e da organização das consultas de vigilância das grávidas e crianças, libertando o médico para situações como o diagnóstico clínico, a investigação e o tratamento de patologias. “Na organização habitual do Serviço Nacional de Saúde, as consultas estão na agenda do médico, e o enfermeiro aparece como subsidiário. Aqui, fazemos ao contrário: o médico está na retaguarda e só intervém quando é necessário”, refere a responsável pela equipa de enfermagem.

Há médicos e enfermeiros, mas falta espaço
A falta de espaço é o principal problema do serviço, garante Vanessa Brunido, que lidera a equipa administrativa. Os utentes queixam-se de que não conseguem ligar, porque o serviço tem poucas linhas telefónicas e estão sempre ocupadas. Mas, se essas linhas existissem, não conseguiriam dar resposta, por falta de espaço físico. Vanessa admite que, “neste momento, não há falta de pessoal; há falta gabinetes”.
Para terem uma capacidade de resposta mínima, precisavam de duplicar as instalações, contabiliza Alexandra Fernandes. Atualmente, o serviço dispõe apenas de dois gabinetes médicos e de outros tantos de enfermagem. A sala de reuniões é também cozinha e refeitório, e a “central” telefónica, um corredor estreito, onde as cadeiras se atropelam e as vozes se confundem.
Esta Via Verde Saúde está instalada num cinzento equipamento modular, cedido pela câmara municipal. Vive lado a lado com o Pavilhão Carla Sacramento, na Cruz de Pau, concelho do Seixal, e longe da zona habitacional. Construído para atender doentes respiratórios durante a pandemia, é um espaço de fácil acesso para quem tem viatura própria, mas não chegam lá transportes públicos. Os utentes que vão de autocarro têm de andar quase um quilómetro a pé. A coordenação do serviço reconhece a dificuldade, e já pediu ao município um transporte regular, a partir de certas zonas. A resposta não veio ainda, mas o serviço é novo − abriu a 18 de janeiro de 2022 −, pelo que é preciso alguma paciência. Continuam confiantes.
Serviço público e bom ambiente
A insuficiência e a frieza das instalações estão longe de quebrar o entusiasmo das equipas, que têm por lema tratar bem os utentes e tratarem-se bem uns aos outros. O bom ambiente é o único trunfo que têm para fixar profissionais. O ordenado, diz a coordenadora dos médicos, é metade do que ganham os profissionais das unidades de saúde familiares de modelo B, que recebem incentivos consoante o desempenho. E fala com conhecimento de causa, porque saiu de uma destas unidades para abraçar o projeto. “Aqui, ganho cerca de mil euros a menos.” Lamenta a falta de reconhecimento, mas não se arrepende da mudança e admite ficar neste género de projetos durante os dez anos que a separam da reforma.

Já para os médicos em formação, a experiência é muito enriquecedora, porque encontram doentes mais fragilizados e patologias mal controladas ou que nunca tiveram tratamento. E é precisamente esta vivência que prende Diogo Miragaia. O jovem médico, de 28 anos, não hesitou um segundo em aceitar o convite de Alexandra Fernandes para integrar a equipa. “O trabalho com utentes sem médico dá-me experiência e conhecimento relativamente a casos mais raros. Dá-me oportunidade de fazer uma primeira consulta a um doente que nunca foi seguido, de começar um processo, de fazer uma história clínica pormenorizada.” Os utentes com médico de família, por regra, são mais vigiados e não apresentam necessidades deste género. Quando terminar a especialidade, Diogo quer permanecer no Serviço Nacional de Saúde e, de preferência, a servir estas populações.
A enfermeira Olívia ainda está em “fase de encantamento”, nenhum obstáculo lhe parece inultrapassável. Vanessa Brunido diz-se muito satisfeita: o ambiente é dos melhores em que já trabalhou, até porque as marcações por telefone dão menos azo a confronto com os doentes. Quem também estará muito agradado com o bem-estar da equipa é o diretor do ACES, que defende a necessidade de experimentar, no Serviço Nacional de Saúde, diferentes formas de responder às necessidades da população.
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