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i3S, uma casa de ciência sempre à procura de financiamento

No i3S, como noutros centros de investigação, lida-se com limitações de financiamento. Mas os investigadores, como Carla Oliveira, Salomé Pinho, Joana Caldeira e Diogo Castro não desistem. Saiba o que fazem na área do cancro, doenças autoimunes e neurológicas e conheça as críticas de Cláudio Sunkel, diretor do centro, à forma de financiar a ciência.

Centro de Investigação i3S

4See/António Pedrosa

Não deseja o Prémio Nobel. Prefere perseguir “coisas pequenas com impacto gigantesco na vida das pessoas”. Falamos de Cláudio Sunkel, um homem da ciência a quem foi confiada a gestão de um porta-aviões: o i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, da Universidade do Porto. Preza “as várias dezenas de coisas que, somando, vão tendo um impacto significativo na vida das pessoas e dos doentes”. Palavras que assentam como uma luva aos 74 grupos de investigação residentes, cada um gerindo um ou mais projetos, nacionais ou internacionais, no edifício cinzento de arquitetura arrojada. Debaixo desse teto amplo, traçado na Cidade Invicta, muito perto do Hospital de São João, brotam ideias exploratórias, visionárias, transformadoras. A conduzi-las a bom porto, com tenacidade, cientistas de áreas multifacetadas.

Carla Oliveira, Salomé Pinho, Joana Caldeira e Diogo Castro são o rosto mais visível de investigações prolongadas no tempo. Maria Silva, a finalizar o mestrado, representa a esperança de uma geração que quer elevar a ciência na consideração da sociedade. Uns procuram o funcionamento das coisas, outros, soluções de aplicação clínica a mais curto prazo. Mas todos perseguem uma luz capaz de encurtar o túnel do sofrimento: a cura ou a melhoria das condições de sobrevivência a doenças cancerígenas, autoimunes e degenerativas, a solução para males da coluna vertebral ou ainda fórmulas de aliviar o processo de envelhecimento. 

Falta financiamento para investigar

Mais de mil pessoas, entre as quais 450 investigadores e 320 alunos de doutoramento, povoam o i3S. “Gerimos um bolo orçamental que envolve mais de 20 milhões de euros por ano. Não podemos ficar parados”, afirma Cláudio Sunkel, biólogo com reconhecido percurso na área molecular. 

Há mentes brilhantes a morar no i3S, mas, neste instituto, a vida acontece também na  luta para sobreviver e conseguir financiamento, ano após ano. O sítio no qual se procura um melhor futuro para os pacientes vê-se a braços com dificuldades financeiras e a instabilidade dos investigadores, a quem, muitas vezes, “falta dinheiro para reagentes”. Entre apoios privados e estatais, o malabarismo é constante.

O biólogo chileno que emigrou para Londres, fugindo ao golpe militar, nos anos 1970, e que veio para Portugal em 1987, não poupa críticas ao Executivo. “Surpreende-me que o Governo português não tenha um Plano Nacional de Ciência e Tecnologia. Não sabe para onde vai. Fazemos parte de um grande barco que está a ser navegado à vista e pode sempre surgir um icebergue”, afirma.

Em seu entender, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) deveria estar a receber como base 800 milhões de euros, mais 30% do que atualmente. Este financiamento permitir-lhe-ia cumprir as obrigações - concurso de bolsas, concurso de financiamento de investigadores, concurso de financiamento de projetos e participação em organizações internacionais -, sem andar sempre aflita. “A quantidade de projetos que são chumbados em Portugal... A classificação vai de 0 a 9 e são chumbados com 8,75. São classificados com excelente, mas não têm financiamento”, lamenta Sunkel. Sintomático do desinvestimento na investigação, segundo este responsável, é não haver uma única menção à palavra “ciência” no documento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). “Vêm milhões, mas a ciência não recebe um cêntimo”, denuncia.

 

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Cláudio Sunkel, biólogo de formação, segura o leme do i3S, desde 2020.

 

Formação científica é de topo

E não é por falta de cérebros que o barco não roda o leme. “A nossa formação científica é de topo. Os centros de investigação em França, na Suíça, na Alemanha e em Inglaterra estão cheios de portugueses, nos melhores lugares. Conseguimos colocar um doutorado em qualquer lugar do mundo, desde o MIT [Massachusetts Institute of Technology] até Harvard”, garante Cláudio Sunkel.

Segundo este este responsável, o sistema nunca poderia absorver todos os investigadores que pretendem fazer vida da ciência, maas também nunca houve uma verdadeira vontade política de marcar a rota. Os homens e as mulheres da ciência vivem a prazo, com a certeza de que pelo menos uma vez por ano são obrigados a dar à luz uma “ideia-eureka”, capaz de captar financiamento. Se houver concurso...

“Noutros países, uma instituição como a nossa teria um financiamento a dez ou vinte anos, renovável, de 10 milhões por ano. Permitiria pensar a estratégia”, diz o diretor do i3S. E acrescenta: “Nos países onde a ciência tem tradição, existem dois tipos de projetos. Um é a ideia - ‘hoje, acordei e tive uma ideia brilhante’. O outro é um grupo com uma linha de investigação ao longo dos anos, que trabalha, por exemplo, na doença de Alzheimer, seguindo um percurso. Essa equipa leva muito tempo a ser montada. Há que formar as pessoas. E essa diferença também não existe.”

De três institutos pretende-se fazer um

Foi no início de 2020, pouco antes de a pandemia mudar o curso das vidas, que Cláudio Sunkel assumiu o comando do i3S. A ordem era fundir três instituições, que Mariano Gago preconizara 11 anos antes, enquanto ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior: o Instituto de Biologia Molecular e Celular, o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto e o Instituto Nacional de Engenharia Biomédica.

Em 2016, e com 18 milhões de fundos europeus e três milhões da Universidade do Porto, o edifício é inaugurado. “O espaço foi ocupado por programas científicos, e não por instituições. Dentro de cada programa, há grupos que vêm de instituições diferentes, porque a ideia era que, lentamente, fossem desaparecendo os institutos e aparecendo o i3S”, explica Sunkel. Está a acontecer, mas não se fazem mudanças sem dor. 

Carla Oliveira: "fascina-me a interface com a clínica"

“Gostava que médicos e investigadores se entendessem melhor, para fazer chegar os resultados da investigação mais rapidamente à clínica e mudar as vidas das pessoas.” É o desejo da investigadora que estuda o cancro hereditário há mais de 20 anos e está envolvida nesta área desde a elaboração das primeiras orientações para vigilância e tratamento da doença, em 1998.

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Carla Oliveira lidera uma equipa do i3S que estuda o cancro hereditário do estômago e da mama, acompanhando famílias de todo o mundo.

Pertence à Rede Europeia de Referência, e o seu laboratório funciona como “uma espécie de hub de disseminação de conhecimento”. Com a equipa, procura novas mutações que expliquem cancros que não encaixam nos critérios. E conhecem os doentes? Sim, conhecem. Seguem 12 famílias, e Carla diz com orgulho que, desde que as têm sob vigilância, ainda ninguém morreu.“Só morrem aqueles que ainda não descobrimos”, garante.

Do seguimento das famílias surgiu a ideia de perceber o custo de tratar uma pessoa que chega ao hospital já doente, com cancro do estômago, e quanto tempo de vida terá. E comparar com os custos de descobrir (e acompanhar) quem tem mutações, através das ligações familiares. Concluíram que tratar é dez vezes mais caro do que seguir as estratégias de prevenção. Estão a fazer a mesma investigação para o cancro da mama, em conjunto com o Hospital de São João e o Instituto Português de Oncologia de Lisboa.

Além disso, têm um projeto que visa fazer o mesmo para oito cancros muito raros. Contam com financiamento da Comissão Europeia e a colaboração de 15 parceiros nacionais e internacionais.

Diogo Castro: "O objetivo é criar neurónios onde se perderam"

Os modelos ainda são animais, mas quer-se abrir caminho para a reprogramação neural nos cérebros de pacientes com epilepsia, doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer ou o Parkinson, ou que tenham sofrido um acidente vascular cerebral. Nestes cérebros, perdem-se neurónios e não há forma de os recuperar.

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Diogo Castro encabeça um projeto financiado por um consórcio internacional de 24 laboratórios. A equipa portuguesa receberá 750 mil euros. O grande objetivo é realizar a reprogramação neural diretamente no cérebro dos pacientes.

A reprogramação preconizada neste projeto, que começou em março e que está pensado para seis anos, consiste em transformar um tipo de células noutro. O investigador Diogo Castro sintetiza: ”Vamos fazer algo que não acontece na natureza. Vamos reprogramar. O objetivo é fazer neurónios onde se perderam. A ideia seminal é converter os astrócitos [primos dos neurónios], que se multiplicam facilmente, em neurónios.”

Solução de Joana Caldeira para a dor lombar

 “A expectativa é entrar no mercado veterinário em 2025 e [ter o produto] para humanos em 2027”, revela Joana Caldeira, a líder do projeto que visa encontrar uma solução de longo prazo, menos invasiva e mais barata, para a dor lombar causada pela degeneração dos discos, uma espécie de amortecedores entre as vértebras da coluna, que permitem a mobilidade sem sofrimento.

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Joana Caldeira, investigadora do i3S, fundou, com três colegas, uma startup que está a testar biomaterial no tratamento da dor lombar.

Atualmente, os tratamentos passam por fisioterapia, anti-inflamatórios e cirurgia. Joana e a sua equipa propõem a injeção de material biológico retirado da cauda fetal de bovino – resíduos de matadouros, que iriam para a incineração.

O sistema já foi testado em ovos de galinha e também com células humanas dentro dos ovos, em ambos os casos com bons resultados. O passo seguinte será o teste num animal completo (rato) e, depois, passá-lo ao uso veterinário – o cão também é frequentemente afetado por este problema.

A entrada do produto no mercado veterinário, além de garantir algum financiamento para o projeto, permitirá aumentar os conhecimentos sobre o seu funcionamento, enquanto se fazem ensaios clínicos em humanos.

Reprogramar para sossegar o sistema imunitário, por Salomé Pinho

O Lupus Research Alliance financia, com 280 mil euros, um projeto de três anos do grupo do i3S, que identificou um biomarcador ligado a um maior risco de doença renal crónica. “Nos doentes com nefrite lúpica, à superfície das células do rim, identificámos uma expressão anómala e invulgar destes glicanos, comparativamente com um rim normal. O caráter pioneiro da investigação é que estes glicanos inesperados pareciam confundir o sistema imunitário. A análise predizia o desenvolvimento de doença renal crónica”, explica Salomé Pinho. Solução? Reprogramar os glicanos. Como? “Vamos cobrir a superfície destas células com os glicanos expectáveis, que o sistema imune reconhece como próprios. Verificámos que a suplementação com o açúcar, que visa reparar a composição anómala, inibia a resposta inflamatória.

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Salomé Pinho e os 15 investigadores que coordena no i3S centram-se no estudo de doenças inflamatórias crónicas e autoimunes, como o lúpus. Estão a testar a reprogramação dos açúcares à superfície dos rins, para controlar a resposta do sistema imunitário.

Após solidificar as evidências in vitroex vivo e nos modelos animais, estão reunidos os princípios para avançarmos, por exemplo, para um ensaio clínico em doentes com lúpus. O objetivo é dar uma nova estratégia terapêutica aos doentes, por via oral”, afirma a investigadora.

Além disso, pretende identificar um biomarcador não invasivo para os doentes de lúpus, como a colheita de sangue ou urina, evitando a biópsia ao rim. O estudo está a ser feito com a Unidade de Imunologia Clínica do Hospital de Santo António, no Porto, e com o Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, entre outros. A investigação já foi publicada na revista Science Translation Medicine.

Maria Silva investiga formas de envelhecer melhor

Como é que a marca epigenética se altera no envelhecimento? Esta é a questão à qual Maria Silva pretende responder. “É uma marca que ajuda na organização do ADN, no núcleo, e muito ligada à identidade celular. Com o envelhecimento, as células param de se dividir. De que modo é que a marca epigenética pode ser importante?”

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A terminar o mestrado em biologia molecular e celular, na área do envelhecimento, Maria Silva pretende melhorar o envelhecimento para diminuir as doenças associadas. Em simultâneo, deseja encontrar terapias eficientes para o envelhecimento precoce das crianças. 

Recorrendo a duas terapias antienvelhecimento, em laboratório, tenta perceber se a tal marca pode ser corrigida. “Estamos a procurar como envelhecer melhor, se calhar, aumentar o período de vida saudável e, depois, no futuro, pensar em aumentar uns aninhos à esperança de vida. A nossa população é envelhecida, com muitas patologias associadas. O cancro e as doenças cardiovasculares estão relacionados com o envelhecimento. Estamos habituados a medicar e a tratar doenças específicas, quando talvez o fundo disso esteja no envelhecimento.

Se tratarmos melhor a forma como envelhecemos, é possível que essas doenças não estejam tão predominantes na nossa população”, explica a jovem investigadora. Ao mesmo tempo que trabalha a questão do envelhecimento natural, Maria Silva dedica-se à progeria, síndrome causada por uma mutação que dá um aspeto envelhecido às crianças e leva a que morram muito novas: “Estamos a abrir portas para que as terapias ajudem no contexto da progeria”, afirma, esperançosa.

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