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Saúde mental: doente muito prioritário espera até três meses por consulta de psiquiatria

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Um doente muito prioritário, adulto, pode esperar  97 dias por uma consulta de psiquiatria, e uma criança, 79 dias. Se precisar de psicologia, dificilmente a encontrará nos serviços públicos. Nos privados, o preço das consultas pode chegar aos 150 euros, e não é garantido que consiga marcar. 

19 janeiro 2023
Homem sentado com casaco laranja com capucho na cabeça, olha pensativo para as mãos - estudo sobre saúde mental

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Portugal está entre os países da Europa que têm a maior prevalência de perturbações psiquiátricas (cerca de 23%), com destaque para a ansiedade e a depressão. No grupo das doenças crónicas não-transmissíveis, estes distúrbios assumem-se como principal causa de incapacidade no nosso retângulo à beira-mar desenhado, sendo responsáveis por um terço da perda de anos de vida saudável. Para isso contribuirá o facto de 60% das pessoas diagnosticadas não terem acesso aos cuidados de saúde mental. A oferta é ainda bastante limitada no Serviço Nacional de Saúde (SNS), e está desproporcionalmente distribuída pelo território. As lacunas têm influência direta no tempo de espera pela primeira consulta hospitalar e na frequência das seguintes. A notícia menos má é que está em curso a reforma dos serviços de saúde mental, e a situação tem vindo a melhorar paulatinamente. Mas ainda há muito a fazer.

Três meses à espera de consulta muito prioritária

Pelo estigma associado às perturbações, porque os pacientes não valorizam os sintomas ou por indisponibilidade dos serviços, os que mais precisam, por norma, são os que revelam mais dificuldade em receber cuidados. A complexidade do sistema de saúde é outra possível barreira. Geralmente, começa-se por consultar o médico de família, que, caso se justifique, referencia o doente para uma consulta da especialidade. E, logo aqui, começa a espera. Primeiro, um médico do hospital tem de atribuir a prioridade, isto é, dizer se o caso é muito prioritário, prioritário ou normal, e encaminhar o processo para a respetiva fila. A lei estabelece prazos de resposta para cada nível de prioridade, o chamado tempo máximo de resposta garantida (TMRG), que varia entre 30 e 150 dias, no caso das consultas da especialidade.

A DECO PROTESTE analisou os dados relativos às consultas de psiquiatria para adultos, psiquiatria para crianças e adolescentes e psicologia clínica, que os hospitais publicam no site Tempos Médios de Espera, do Ministério da Saúde. Detetou que os prazos definidos por lei são, muitas vezes, ultrapassados. Para a consulta de psiquiatria de adultos, havia informação de 57 unidades, e 13 não cumpriram os tempos máximos de resposta garantida no período em análise (maio a julho de 2022).

No caso da consulta de psiquiatria da infância e da adolescência, destinada a crianças e jovens até aos 18 anos, apenas 35 estabelecimentos reportaram tempos de espera, fruto da menor cobertura desta especialidade. Mas, dos 35, 11 excederam os TMRG, pelo menos, numa das três prioridades. A oferta de consultas de psicologia é muito limitada. Apenas nove hospitais reportaram tempos de espera para esta especialidade e, no período em análise, todos estavam dentro dos prazos. 

No fim de julho de 2022, havia 12 415 utentes a aguardar a primeira consulta de psiquiatria para adultos, e 4465, a de psiquiatria da infância e da adolescência. Os hospitais Beatriz Ângelo, em Loures, e Dona Estefânia, em Lisboa, tinham as maiores listas de espera para consultas de psiquiatria prioritárias e muito prioritárias de adultos e crianças, respetivamente.

Profissionais insuficientes e mal distribuídos

O tempo de espera a que os consumidores estão obrigados dever-se-á, em grande parte, à insuficiência de profissionais, que parece ser um denominador comum a todas as especialidades no Serviço Nacional de Saúde. Em 2021, a Assembleia da República recomendou ao Governo que reforçasse as respostas ao nível da psicologia, tanto nos cuidados de saúde, como nos estabelecimentos de ensino. Para os primeiros, apontou a necessidade de um psicólogo por cada cinco mil habitantes, o mesmo que recomendam as organizações internacionais. No caso das escolas, foi um pouco menos generosa. Por cá, recomenda-se, pelo menos, um psicólogo para 750 alunos, enquanto, por exemplo, a norte-americana National Association of School Psychologists aconselha um profissional por cada 500 estudantes.

A avaliar pelos números disponibilizados pela Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), só o rácio escolar aconselhado pelo Parlamento português é cumprido, e apenas no ensino público obrigatório (básico e secundário), o que não significa que todas as escolas tenham os recursos. 
Ao nível da psiquiatria, segundo os últimos dados do Conselho Nacional de Saúde, referentes a 2019, o SNS fica aquém dos mínimos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (dez especialistas por cem mil habitantes), sendo o Alentejo, o Algarve e a Madeira as regiões mais carenciadas. 

A situação da psiquiatria da infância e da adolescência é ainda mais dramática: o SNS tinha apenas 120 especialistas, sendo que o rácio variava entre um e sete especialistas por cem mil crianças, respetivamente, no Algarve e na região norte. Nos Açores, havia um único especialista nos serviços públicos de saúde. Como resolver estas lacunas? A resposta de Ana Matos Pires, membro da Coordenação Nacional da Política de Saúde Mental, é categórica: “A única maneira é aumentar as vagas de formação na especialidade.” Contudo, a psiquiatra diz ser uma questão difícil, devido ao número reduzido de serviços para dar formação. “O Colégio de Psiquiatria da Infância e da Adolescência, a entidade responsável por dar idoneidade formativa aos serviços, está a rever os critérios, mas não se vai resolver rapidamente”, prevê.

O número de enfermeiros especialistas em saúde mental e psiquiátrica é um pouco superior ao de psicólogos e psiquiatras; ainda assim, não passa dos 12 por cem mil habitantes. Tal como os outros grupos profissionais, estes concentram-se sobretudo no Litoral, a norte de Lisboa e Vale do Tejo. O Algarve é, mais uma vez, a região mais sacrificada

Privado: psiquiatria mais cara e com poucas vagas 

Face às dificuldades em obter cuidados de saúde mental no SNS, muitos procuram os serviços privados, esperando um processo rápido e direto. Colaboradores da DECO PROTESTE testaram a marcação de consultas de psicologia clínica e de psiquiatria, para um adulto e um adolescente, por telefone, em mais de 600 locais ao nível nacional. Descobriu-se que o percurso não é tão simples como parece, sobretudo na psiquiatria e no agendamento de consultas da infância e da adolescência. Para psicologia, não houve grande dificuldade de marcação, embora a oferta de consultas dirigidas ao adolescente não abundasse.

No caso da psiquiatria, não foi possível fazer marcações em 40 unidades, por múltiplas razões: a agenda estava fechada, não aceitavam novos pacientes, o profissional só se deslocaria ao município (Beja, no caso) quando tivesse um determinado número de doentes ou, o mais comum, não havia vagas. As agendas pediátricas, em particular, estavam, muitas vezes, preenchidas até ao fim do ano, sendo que os contactos foram feitos em junho e julho. As zonas mais complicadas parecem ser Portalegre, Madeira, Viana do Castelo e Viseu.

Além de mais difíceis de encontrar, os cuidados de saúde mental podem sair caros. Uma primeira consulta de psiquiatria para adultos custa, em média, 79 euros, embora o valor mais comum seja de 70 euros. Por distrito, o custo médio mais elevado (107 euros) pertence a Beja, e o mais baixo, aos Açores (55 euros). No caso das consultas de psiquiatria para crianças e adolescentes, o preço médio ronda 83 euros, e o valor mais frequente é de 90 euros. Por regiões, a Madeira apresenta o valor médio mais baixo (55 euros) e Coimbra, o mais alto (92 euros).

Em psicologia clínica, os valores são um pouco mais baixos: os preço mais frequente das consultas de psicologia para crianças e adolescentes e para adultos são 50 e 60 euros, respetivamente. Na maioria dos estabelecimentos visitados, a primeira consulta é mais cara do que as restantes (entre 5 e 20 euros), seja qual for a especialidade.

Estes serviços não são claramente para todas as bolsas, até porque, por norma, os tratamentos são prolongados. O SNS tem de responder às necessidades dos portugueses.

 

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