Luís Mendão: "Deixámos de fazer campanhas de prevenção do VIH"
Portugal é o país da Europa Ocidental e Central com o maior número de pessoas com VIH em tratamento por 100 mil habitantes. Faltam campanhas de prevenção, diz o presidente do Grupo de Ativistas em Tratamentos, Luís Mendão, ele próprio portador da doença há 30 anos.

VIH em Portugal
O VIH tem estado ausente do espaço mediático. Significa que já não há razão para nos preocuparmos com isso?
Não, não significa. É verdade que o VIH [vírus da imunodeficiência humana] não está tanto nas agendas mediáticas. No entanto, nunca houve tantas pessoas a viver com VIH como neste momento. A grande revolução foi haver tratamentos que permitem às pessoas viver mais tempo, e eu sou um exemplo. Fui diagnosticado com sida vai para 30 anos e com infeção por VIH há 35 anos. Naquele tempo, o normal era ter morrido no início dos anos 90. É um progresso extremamente assinalável na vida, na esperança de vida e na qualidade de vida das pessoas que vivem com VIH. Também é verdade que se descobriu, em 2007, que uma pessoa que está em tratamento com sucesso não transmite a infeção. Isso fez com que o número de pessoas que se infetam, ou que são diagnosticadas anualmente, tenha vindo a diminuir. E isso também é um bom resultado, embora estejamos ainda longe das metas propostas pela Organização Mundial da Saúde para 2030, dos objetivos do desenvolvimento sustentável que Portugal subscreveu. Precisaríamos de diminuir mais depressa o número de novas infeções.
Quais são essas metas?
Julgo que, em 2010, Portugal teve cerca de 1400 a 1500 diagnósticos de VIH. Em 2030, para atingir a meta [eliminar a sida], deveríamos ter menos de 24 novos diagnósticos de VIH por ano. Mas estamos muito longe: no último relatório publicado, diagnosticaram mais de 800 infeções. Portanto, de 2010 para 2022, que são os últimos resultados públicos, tivemos a descida de uns 500 casos. Estamos muito longe da descida que deveríamos ter até 2030. Teremos de ter menos 800 casos...
É esse relatório que também diz que somos o país da União Europeia com maior número de casos?
Com o maior número de casos diagnosticados, provavelmente. Portugal é o país, de toda a Europa Ocidental e Central, que tem o número mais alto de pessoas com VIH em tratamento por 100 mil habitantes. É o único país também desta grande área europeia onde a segunda despesa com medicamentos hospitalares é medicamentos para tratar o VIH. E já foi a primeira, o que não aconteceu em nenhum país da Europa. Isto deve-se, na nossa leitura, ao facto de Portugal ter conjugado as várias epidemias de grupos vulneráveis de uma maneira muito particular.
Como?
Tivemos uma epidemia de consumidores de drogas injetáveis entre meio dos anos 80 e que se repercutiu ainda até 2005, uma das piores da Europa. Em determinada altura, chegaram a ser 70% de todos os casos diagnosticados, o que resultava da partilha de material de injeção não esterilizado. Temos uma epidemia entre os homens que têm sexo com homens e as pessoas trans semelhante àquela que existe em toda a Europa. Depois, como país colonial, temos outra situação muito particular: a nossa relação com a África subsariana envolveu muito mais gente do que noutros países, como Inglaterra e mesmo França. A migração de portugueses, ou nascidos em Portugal, para a África foi muito superior. E também acolhemos, com a descolonização, muito mais pessoas, em percentagem, do que os outros países. Como a infeção é, sobretudo, de cariz sexual, não há fatores de risco específicos. É pertencer a esta população. Temos uma percentagem de mulheres que vêm, sobretudo, desse contacto com a epidemia subsariana, que, na maioria dos outros países, não vemos. E, ainda hoje, temos a enorme massa de pessoas que vão trabalhar para a África e vice-versa.
Há mais peculiaridades portuguesas?
Muitos imigrantes pobres estavam envolvidos no sexo comercial. São sobretudo mulheres, embora também haja pessoas trans e homens. Estas pessoas tinham uma prevalência de VIH superior à de outras populações que trabalham no sexo comercial. E teve um agravamento, porque muitas das pessoas que usavam drogas, rapazes e raparigas, se prostituíam para financiar [o consumo]. Entre a epidemia dos homens gays, digamos assim, entre a epidemia dos clientes heterossexuais da prostituição, do trabalho sexual, houve transmissão nos dois sentidos. É por isso que se viam [situações de infeção] como a de uma senhora, em Freixo de Espada à Cinta, só para dar um exemplo, que não fazia ideia nenhuma de que o marido, que tinha vindo a Lisboa ou ao Porto, se tinha infetado com a pessoa com quem teve relações pagas. A mulher desenvolvia um quadro de doença, mas nunca passava pela cabeça aos médicos que pudesse ser uma infeção por VIH. Julgo que foram estes fatores que fizeram com que a epidemia em Portugal tivesse uma expressão quase sem paralelo.
Temos três países europeus com a mesma população, a Hungria, a Grécia e a Bélgica. Nos nossos hospitais, há mais de 40 mil pessoas em tratamento. A seguir vêm a Bélgica, com cerca de 19 mil, a Grécia com cerca de 15 mil e, por fim, a Hungria, que tem à volta de 5 mil. E não é uma questão de diagnósticos tardios que explica isto.
Quem é Luís Mendão?
Formado em Bioquímica, é presidente do GAT – Grupo de Ativistas em Tratamentos. Representou Portugal no Fórum da Sociedade Civil sobre VIH/sida na Comissão Europeia.
Campanhas de prevenção

Desinvestiu-se na informação?
Nunca tivemos uma coisa que está na lei há 40 anos, que é a educação sexual nas escolas. Com certeza, com conteúdos rigorosos do ponto de vista do conhecimento, mas adaptados às diferentes idades e aos diferentes contextos. Deixámos de fazer as campanhas de prevenção do VIH e pensamos que é necessário não serem campanhas exclusivas para a questão do VIH, mas também para a saúde sexual de quem a inicia.
Temos dado outro exemplo. O número de mulheres a serem infetadas pelo parceiro masculino depois da menopausa cresce, por uma conjugação de fatores: a transformação hormonal, a secura vaginal [aumenta o risco de pequenas lesões] e, se usavam o preservativo como método contracetivo, deixarem de usar. E isso também não é dito o suficiente. Parece-me necessário termos de novo campanhas para a população em geral, mais dirigidas aos adolescentes, eventualmente, algumas focadas em determinados grupos que sabemos terem maior risco, e presença de DST [doenças sexualmente transmissíveis]. E que sejam avaliadas. Um dos bons sinais, ainda não implementados como deve ser, é poder haver consultas de saúde sexual ligadas à prevenção, nos cuidados primários de saúde. A nossa excelente experiência do planeamento familiar ficou-se por aí. É absolutamente necessário que, ligadas ao planeamento familiar, se compreendam também a saúde sexual, a hipótese de fazer as análises, de distribuir o material...
A sociedade deixou de discriminar os pacientes?
Não, não deixou e continua grave. Talvez tenha havido pequenos progressos.
A grande revolução foi haver tratamentos que permitem às pessoas viver mais tempo, e eu sou um exemplo. Fui diagnosticado com sida vai para 30 anos e com infeção por VIH há 35 anos. Naquele tempo, o normal era ter morrido no início dos anos 90.
Tratamento e comportamentos de risco

Temos, em Portugal, acesso às principais novidades de tratamento?
Temos. Algumas vezes, com atrasos pouco justificáveis. O Infarmed tem de aprovar a comparticipação dos medicamentos. Na nossa opinião, partem, às vezes, do pressuposto de que, se é novo, vai ser mais caro. E nem sempre é o caso. Posso dar dois exemplos. Houve um regime de comprimido único à espera de comparticipação, em Portugal, durante quatro anos. Esse medicamento seria o mais barato dos não-genéricos que estavam disponíveis. Neste caso, não entendemos este atraso, porque se trata de um medicamento que vai servir para algumas pessoas e que é a um preço inferior. Mais de 80% das pessoas tratadas em Portugal não têm regimes de tratamento completamente genéricos.
O outro é o primeiro regime de medicamentos que podem ser injetados e só tomados de dois em dois meses – o mais comum é as pessoas tomarem comprimidos todos os dias, um, dois ou três, regra geral. E, mais uma vez, este regime era menos oneroso do que a maioria dos regimes que estão a ser utilizados. Foi preciso praticamente esperar pelo último dia de vigência do anterior ministro da Saúde para que fosse aprovado.
Estamos a falar de um quadro terapêutico que evoluiu imenso, ao ponto de o problema se tornar numa doença crónica, que se vai gerindo. Essa realidade levou ao aumento de comportamentos de risco?
Pode haver esse risco. E acho que não tem sido tão minimizado como deveria. Continua a ser uma doença incurável, em que a esperança média de vida, embora tenda a aproximar-se da esperança média de vida da população restante, ainda não é a mesma. A qualidade de vida baixa significativamente. Implica gerir uma doença crónica que aumenta a fragilidade da saúde, acelera o processo de envelhecimento. Somos considerados velhos aos 50, 55 anos. E temos um conjunto de comorbilidades, desde cancros, que são muito mais prevalentes do que na população que não tem VIH, a uma maior incidência de mortalidade por risco cardiovascular, porque se considera que temos uma espécie de inflamação permanente, por causa da infeção. Isto pode ser transmitido com muito mais ênfase. Aquilo que, do meu ponto de vista, também não vale é esconder que, de facto, o VIH não é o fim. Ainda temos pessoas que acham que vão morrer nos meses a seguir ao diagnóstico...
Houve um caso, pelo menos, de remissão total da doença...
O "Paciente de Berlim". Existem cinco casos assim, e estão em estudo outros dois. Todos tiveram cancro, geralmente leucemia, e precisaram de um transplante da medula. E existe um grupo de pessoas, cerca de uma em cada 10 mil, que tem uma mutação nas suas células CD4, que são células do sistema imunológico, que faz com que o vírus não consiga infetar. Ou seja, que não haja porta de entrada para o vírus. Experimentalmente, estes doentes, cujo tratamento custa milhões, em muitos casos, fizeram um transplante a partir de um dador com essa mutação nas células CD4. Fez-se isso em 50 a 100 pessoas, e só cinco confirmaram que ficaram curadas. Este processo não é replicável, nem pelos custos, nem pelos riscos. O tratamento é muito agressivo. Mas é importante, simbolicamente, porque foram os primeiros casos a demonstrar que foi possível erradicar o vírus e considerar alguém curado.
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