Filipe Froes: “Futuras pandemias são inevitáveis”
O fim da pandemia de covid-19 foi declarado há um ano, pela Organização Mundial da Saúde. O vírus instalou-se e "convivemos" com ele. Mas outros vírus podem surgir e atingir-nos no futuro. Estaremos preparados? Filipe Froes sente-se otimista.

Covid-19 no presente
Comecemos pelas 200 pessoas que morreram no primeiro trimestre do ano de covid-19. São preocupantes os números?
É preocupante, porque a vida de cada um de nós é um valor sagrado e único. Infelizmente, morreram por uma doença que não era conhecida [até há poucos anos], e, provavelmente, algumas delas terão perdido a vida por falta de prevenção, de diagnóstico precoce, e da devida valorização do quadro clínico. Isto é uma das heranças da pandemia. É um vírus novo, o SARS-CoV-2, que veio para ficar, e ficou mesmo. Temos uma nova doença com uma forma aguda associada a morbilidade e a mortalidade. Temos uma nova causa de descompensação de doenças crónicas já existentes, e um novo vírus que vai estar associado ao aparecimento de complicações, sequelas, nomeadamente a covid longa. E provavelmente [ao agravamento] de todo um conjunto de doenças, como a diabetes, as cardiovasculares e as oncológicas. Portanto, é esta a herança da pandemia. Tivemos 1151 dias de pandemia.
Isso significa que é necessário voltar aos cuidados que tivemos nos primeiros meses de confinamento?
De maneira nenhuma. Temos de adaptar o nível de cuidados à gravidade e à atividade da circulação viral. Temos de monitorizar a atividade e adaptar os nossos comportamentos, em termos de prevenção e controlo. Devemos passar a incluir, no nosso armamentário, a vacinação contra o SARS-CoV-2 todos os anos. E passar a fazer o diagnóstico deste novo microrganismo nas pessoas com queixas respiratórias, e [sobretudo] naquelas com maior risco de progressão para doença grave.
A vacina deveria ser para toda a população?
Infelizmente, em Portugal não temos possibilidade de dar a vacina a todos, e, provavelmente, haverá grupos etários em que o benefício pode ser reduzido. De qualquer maneira, nesta fase de atividade, a administração da vacina de acordo com os critérios em vigor é uma boa opção.
Neste momento, está a acontecer?
Os dados que temos de vacinação refletem outro problema pós-pandemia, que é a fadiga pandémica. Na população com mais de 60 anos, ronda os 56%, o que significa que um em cada dois não está vacinado. E a partir dos 80 anos, que são as pessoas com maior risco, cerca de 66% estão vacinados, o que significa que, em três, um não está vacinado. É extremamente perigoso para essa pessoa. A fadiga pandémica tem de se ultrapassar com melhor comunicação e uma melhor explicação das vantagens da vacina. O que esta faz é diminuir a duração da doença, e progressão para formas graves. Portanto, vai ter um impacto muito grande no número de casos graves. E mesmo na transmissão. Quando há menos transmissão na comunidade, todos ficamos mais protegidos. Há menos disrupção na área da saúde, e muito menos disrupção social e económica, porque estas pessoas continuam a trabalhar e a ser produtivas para si, para as suas famílias e para o País.
Noutra entrevista, disse que o rastreio viral na água residual é importante para que não dependamos do voluntarismo das pessoas. O que significa?
É fundamental. Na pandemia, aprendemos que as pessoas doentes excretam o vírus pelas secreções respiratórias, mas também pela urina, pelas fezes, pela lavagem da boca... A água é coletada, muitas vezes, nos esgotos e, através dela, podemos detetar vírus. Países como os EUA e o Reino Unido já incorporaram, nas suas vigilâncias, a monitorização de vários vírus nas águas residuais. É importante porque, como já não há a obrigação de declarar o vírus, nem de fazer testes, não temos uma imagem fidedigna da circulação do vírus na comunidade. Através [daquele] sistema, que não obriga à participação ativa das pessoas, podemos ter essa informação.
E a falta de dados da China, é preocupante?
A falta de dados da China é preocupante, mas é expectável. Ao longo das últimas décadas, temos assistido a um défice de informação na área da saúde, na área da ciência, proveniente da China. Portanto, o que temos de fazer, e acho que foi uma das decisões tomadas pela União Europeia, é depender cada vez menos de dados de outros países, e ser cada vez mais autónomos. Isto é uma das lições da pandemia, temos de ser o mais autónomos possível. Até na fabricação de vacinas, medicamentos, de ventiladores… E em termos de vigilância de novos microrganismos e de ameaças potencialmente pandémicas.
Quem é Filipe Froes?
Especialista em Medicina Interna e doutorado em Saúde Pública e coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos Médico-Cirúrgicos Respiratórios do Hospital Pulido Valente, em Lisboa. Foi responsável pelo Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19.
O fim da pandemia e a covid longa

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o fim da pandemia há um ano. Terá sido cedo demais?
Foi a 5 de maio de 2023. Não foi demasiado cedo, de maneira nenhuma. A OMS tem de ter uma visão global. Haverá países [em que] provavelmente foi tardia, noutros, precoce. Mas, se estamos à espera das condições ideais, elas nunca existem. Foi uma decisão devidamente ponderada, que provavelmente em Portugal poderia ter sido tomada mais cedo.
Quanto à covid longa, a situação está estudada?
Não, não está suficientemente estudada. Já agora, a maior parte das pessoas não sabe de onde veio a [designação] “covid longa”. Foi de um hashtag do Twitter. Uma arqueóloga chamada Elisa Perego, que tinha tido a infeção já há várias semanas e mantinha queixas, escreveu-o [na rede social] com hashtag long covid [covid longa]. O termo médico mais correto é condição pós-covid-19. É uma nova realidade. A OMS estima que cerca de 6% das pessoas que tiveram infeção sintomática vão manter queixas durante mais de três meses. Estamos a verificar que há pessoas que vão manter queixas durante mais um ou dois anos; ainda não temos tempo suficiente para valorizar isto. Aqui no hospital, tivemos uma consulta de covid longa, sobretudo, dedicada às manifestações pulmonares. Agora, estamos a verificar que a persistência dos sinais e sintomas está associada a manifestações, sobretudo, do foro mental, como a chamada névoa mental, ou brain fog. É uma incapacidade de concentração, que se traduz, por exemplo, em a pessoa ser incapaz de ler um livro ou de acompanhar as legendas de um filme durante muito tempo. Esquece-se com frequência daquilo que estava a dizer, apresenta quadros de ansiedade, depressão, perturbação do sono, dificuldade em adormecer e, muitas vezes, deterioração cognitiva. Numa outra vertente, estamos a encontrar casos englobados naquilo que se chama encefalomielite miálgica, ou a síndrome de fadiga crónica. Isto significa que vamos ter muitas centenas de milhares de pessoas, ao nível mundial, com incapacidade nas atividades da vida diária, na sua relação com as outras pessoas e na sua produção e envolvimento comunitário.
Já se sabe se é crónico, se as pessoas ficam com isso permanentemente?
Crónica é, de certeza. Se é permanente? Algumas destas manifestações poderão ser, o que significa que teremos, do ponto de vista social, uma maior necessidade de estudar estas pessoas e, provavelmente, tentar compensá-las.
Ameaça de novas pandemias

Ouvimos falar com frequência de pandemias futuras. Como temos tanta certeza de que irão ocorrer?
As futuras pandemias são inevitáveis. Temos de nos preparar, aprendendo as devidas lições das anteriores. E são-no pela conjugação de vários fatores. Partilhamos esta casa comum com muitos outros microrganismos. O que estamos a fazer, numa tentativa de domínio planetário, é a destruição de habitats naturais, a acelerar alterações climáticas. E isso vai potenciar duas coisas: a emergência de microrganismos que até agora estavam escondidos, ou adormecidos, e provavelmente um maior contacto entre humanos com espécies que estavam protegidas nos seus habitats. Isso vai facilitar a transmissão de microrganismos de outras espécies para a humana.
O SARS-CoV-2, um microrganismo que provavelmente deriva de outro coronavírus que existia nos morcegos, atravessou a barreira das espécies, passando para a humana através de um hospedeiro intermediário – até à data, pensa-se que pode ter sido um pangolim.
Outro fator importante é que o mundo é uma ervilha. A facilidade de circulação, uma vantagem incrível, também serve para a transmissão de microrganismos. Por exemplo, Wuhan tinha voos diários para três cidades europeias, Milão, Paris e Londres, além de vários voos para Nova Iorque. Em 24 horas, um microrganismo dá a volta ao mundo. Por outro lado, em pleno século XXI, temos tendência a desvalorizar estas ameaças. E, quando desvalorizamos, fragilizamos e diminuímos a preparação. Por exemplo, depois da pandemia da gripe A de 2009, a administração americana reduziu alguns sistemas de vigilância, porque entendeu que não necessitava de tanta sofisticação. A pandemia de 2009 foi muito ligeira, muito benigna, e criou a falsa sensação de que temos capacidade de resolver tudo. Aliviámos a segurança e a vigilância e tivemos uma nova pandemia, mais cedo do que seria previsível.
Com esses fatores todos, estamos preparados para a próxima?
Diria que, à escala global, há esforços de muitas entidades para estarmos mais bem preparados. É preciso que quer os países quer as pessoas incorporem esta necessidade de estarmos preparados. No entanto, futurologia, na área das pandemias, é difícil. Houve uma reunião de peritos da OMS para identificar microrganismos com potencial pandémico, e foram identificados cerca de 200. Todos tinham em comum a transmissão por via aérea [através da respiração], a que facilita a disseminação na comunidade.
Há algum que mereça mais atenção?
Um dos microrganismos identificados com maior potencial pandémico – não quer dizer que seja este a ocorrer, mas terá de ser devidamente monitorizado – é uma estirpe de vírus influenza, do tipo A, subtipo H5, que atinge sobretudo as aves migratórias. Já há casos em animais domésticos, nomeadamente em vacas. Isto significa que poderá estar a fazer caminho para a passagem da barreira das espécies.
Há um outro risco, que é a transmissão do ébola. Como é que países como o Congo, que não têm meios, conseguem controlar a situação, e nós, no Ocidente, não conseguimos fazer o mesmo com a pandemia?
A via de transmissão do ébola e do SARS-CoV-2 é completamente diferente, atenção, não é comparável, sequer. E, no caso do Congo, o controlo da situação deve-se à intervenção de agências internacionais, dos chamados países desenvolvidos. E o ébola é mais grave, mas muito mais fácil de controlar, porque não se transmite por via aérea. Foi feito pelas mesmas agências que estiveram empenhadas no controlo da pandemia. O SARS-CoV-2 é um vírus novo, que requer muito envolvimento das pessoas. Requer muita comunicação para as pessoas perceberem o que têm de fazer, e [que] aquilo que fazem tem impacto individual e coletivo.
E os vírus contidos em laboratório para estudo, são uma ameaça?
Só se houver má vontade de algumas pessoas em recolocá-los em circulação. A possibilidade de fugas acidentais, com os níveis de segurança que existem, é praticamente impossível.
O consumidor pode ter algum papel na prevenção, na preparação, de novas pandemias?
Na pandemia, aprendemos que o envolvimento da população, nesta vertente do consumidor, é determinante. Podemos ter as melhores medidas do mundo; se ninguém as implementar, não servem para nada. É fundamental ter um bom plano de comunicação e de fundamentação das medidas. Se as pessoas perceberem, como até agora, que as medidas são para o seu bem, não tenho a menor dúvida de que a generalidade adotará comportamentos que previnem as consequências no próprio e nos outros. Estamos todos no mesmo barco.
O envolvimento da população, nesta vertente do consumidor, é determinante. Podemos ter as melhores medidas do mundo; se ninguém as implementar, não servem para nada.
O conteúdo deste artigo pode ser reproduzido para fins não-comerciais com o consentimento expresso da DECO PROTeste, com indicação da fonte e ligação para esta página. Ver Termos e Condições. |