Carina Freitas: “A música dá bem-estar físico, mental e social”
Ouvir música, cantá-la ou dançar ao seu som produz um bem-estar capaz de ajudar na recuperação motora e neurológica. Autismo, doenças de Alzheimer e de Parkinson e AVC beneficiam das intervenções com música, defendidas e praticadas por Carina Freitas.

A arte nos cuidados de saúde

Prefere a expressão "intervenção em saúde com música". Qual a diferença face à musicoterapia?
A intervenção da musicoterapia é realizada pelo musicoterapeuta credenciado. A música é a base da relação entre o utente e o técnico. Outra intervenção é a música-medicina, com música pré-gravada, com benefícios para a saúde do doente. Os constituintes da música, o ritmo, a melodia, a harmonia, acabam por ter efeitos fisiológicos e psicológicos por si só. Não é necessário um musicoterapeuta, pode ser realizada por vários profissionais de saúde. Outra intervenção relaciona-se com a humanização do espaço hospitalar. Pode ser realizada por profissionais de saúde e por músicos.
Humanizar o espaço hospitalar?
É quando o hospital tem programas de artes. Convida músicos, artistas, para fazer concertos, por exemplo, no átrio do hospital e nas zonas de espera de consulta. O hospital das artes em Portugal é o Hospital de São Francisco Xavier. Além de expor obras de arte nas suas paredes, tinha um órgão, que permitia fazer programas de concertos especiais, para os utentes, as famílias, os visitantes do hospital e os funcionários.
A disciplina académica das artes na saúde emergiu nos anos 80, no Reino Unido e nos Estados Unidos, com o objetivo de implementar programas nos hospitais públicos e privados. As artes acabam por trazer um bem-estar e uma satisfação aos profissionais de saúde, além de humanizarem o espaço. A Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou, em 2019, um documento sobre as evidências científicas dos benefícios das artes na saúde. E é uma bíblia, quase, porque faz a revisão de mais de três mil artigos. Existem recomendações para maior sensibilização, divulgação e implementação das artes em saúde em Portugal, o que implica que os profissionais de saúde tenham contacto com disciplinas ligadas às artes, nomeadamente nos cursos de Medicina, Psicologia e Enfermagem. No Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar [da Universidade do Porto] já existem as disciplinas de Medicina, Música e a Mente e de Introdução à Poesia. A área científica das artes na saúde é uma área emergente à qual, realmente, a OMS não podia ficar indiferente.
Quem é Carina Freitas?
Pedopsiquiatra, coordenadora da pós-graduação em Neurociências da Música (Instituto de Ciências da Saúde, da Universidade Católica) e doutorada em Ciências Médicas e Neurociências pela Universidade de Toronto.
Efeitos da música
Em que áreas tem a música benefícios?
Para cada comportamento musical existem linhas de investigação. Há a audição musical, o canto, a performance, a improvisação, a composição, a imagética (imaginar uma música). Cada um tem diferentes efeitos e benefícios. Podemos não ser músicos, no sentido de termos a capacidade de nos expressar ou produzir música, nomeadamente cantar ou tocar um instrumento, mas, se não tivermos um défice auditivo, somos todos bons ouvintes. Desde o ventre da mãe até morrermos, somos sujeitos e expostos à música dos locais onde nascemos e vivemos. Quando ouvimos música, o cérebro processa a melodia, o ritmo e a harmonia. Não existe uma área cerebral exclusiva para a música, como para a linguagem. A música e os seus componentes ativam diferentes áreas do cérebro. Áreas sensoriais auditivas, visuais, mas também motoras e pré-motoras, porque é dessa forma que nos prepara para cantar e dançar. A sincronização audiomotora pode ser desenvolvida em programas de reabilitação. No Hospital Garcia de Orta, utentes que tiveram AVC [acidente vascular cerebral] ou aneurismas cerebrais, e que ficaram com défices na marcha, uma das maneiras de a recuperarem foi através da audição musical e da dança. Uma paciente, ao voltar a dançar quizomba, conseguiu recuperar toda a área motora. A música tem também aplicações nas doenças neurológicas, como o Alzheimer e o Parkinson. E nas doenças do neurodesenvolvimento, como nos prematuros e na perturbação do espectro do autismo. Estas crianças têm dificuldades em comunicar. Muitas podem não conseguir falar, mas, está provado, conseguem cantar. O autismo é uma doença do neurodesenvolvimento em que existem dificuldades de conectividade cerebral. A música facilita essa conectividade.
Que outras áreas cerebrais são ativadas?
As áreas ligadas ao processamento das emoções. Quando gostamos muito de uma música, temos prazer, porque há a ativação dos circuitos da recompensa e motivacionais. Produz-se dopamina, que nos faz sentir muito bem. E porque é que, normalmente, se gosta de ouvir música? Porque ajuda na regulação emocional. A música acaba por colmatar uma necessidade emocional. Às vezes estamos tristes e queremos ouvir uma determinada música, porque achamos que nos faz sentir bem naquele momento.
E se gostarmos da música?
A música da nossa preferência costuma ter mais efeitos. Há uma história associada à sua audição. Ativamos zonas da memória, mas também motoras e pré-motoras. Quando ouvimos as músicas de que gostamos muito, libertamos dopamina nas zonas de recompensa do cérebro. A música ativa as zonas da recompensa, do prazer, motivacionais, tal como a alimentação, tal como outra atividade que tenhamos prazer em fazer. A atividade sexual, também. A música, de alguma maneira, não desapareceu da espécie humana, porque há vantagens biológicas em ter comportamentos musicais, quer seja para a nossa regulação emocional, quer seja, como Charles Darwin diria, para a seleção sexual. Provavelmente, as pessoas mais musicais, ou que cantam, ou que tocam um instrumento, acabam por ser sexualmente mais atrativas. Daí os ídolos na adolescência. Isso acaba por, de alguma forma, garantir a continuidade da espécie. E que possa incluir também a dança, claro, porque é música e movimento. Por isso é que a música, a meu ver, e do ponto de vista das teorias evolucionistas, mostra que, de certeza, existe uma vantagem biológica para a espécie humana em existir música.
E o canto?
Também tem benefícios físicos e emocionais, já que aumenta a capacidade respiratória e nos faz sentir bem. Daí a expressão “quem canta seus males espanta”. Quando as pessoas cantam em coro veem a parte social bastante melhorada. Proporciona um sentido de identidade, de coesão, de união num objetivo comum. Melhora o comportamento de pessoas idosas, que discutem problemas de saúde, ficam mais interessadas em resolvê-los e em irem ao médico, procurando ajuda mais precocemente do que pessoas isoladas em casa. Na Europa, existem pelo menos 37 milhões de membros de coros. Dão um sentido e um objetivo de vida a pessoas muito sozinhas. Quando são criadas bandas nas suas instituições, a música pode dar uma identidade e um papel social a jovens com problemas de neurodesenvolvimento, a crianças com deficiências e, eventualmente, com autismo. Sentir-se parte de um projeto traz bem-estar. Em 1948, a OMS definiu que a saúde não é a ausência de doença, mas o completo bem-estar físico, mental e social. E a música colmata essas áreas.
Possíveis áreas de intervenção musical

Existe uma música para um tratamento ou uma pessoa em particular?
Não, todos os tratamentos são personalizados, centrados na pessoa e nas suas necessidades. Pode ser a música a que a pessoa está habituada e de que gosta. E cada um tem o seu gosto, não podemos julgar. Temos é de pensar se essa música faz bem à pessoa. É importante fazer uma anamnese musical. Isto é, existe uma primeira sessão para descobrirmos quais são as músicas que a pessoa ouve, que são importantes, os géneros de que gosta…
A aprendizagem musical nos idosos tem benefícios? E em doentes com Alzheimer?
A aprendizagem musical estimula a neuroplasticidade. Nos pessoas idosas, aumenta a reserva cognitiva, e, de certa maneira, ajuda a evitar o declínio cognitivo precoce. Na doença de Alzheimer, em que há um declínio da memória, primeiro, a de curto prazo, e, posteriormente, a de longo prazo, os pacientes podem não se lembrar do nome dos filhos, mas lembram-se das canções. Alguns não conseguem falar, mas cantam. E isso justifica-se porque a área cerebral da memória musical é das últimas a serem afetadas.
Em certos casos, é possível recorrer apenas à musicoterapia?
O plano terapêutico tem de ter sempre em mente a definição de saúde da OMS, que não é apenas a ausência de doença, mas o completo bem-estar físico, mental e social. Nessa sequência, na abordagem terapêutica também deve ser utilizando um modelo biopsicossocial. Portanto, eventualmente, numa patologia da área da psiquiatria, a medicação é um tipo de intervenção e a musicoterapia é outra modalidade terapêutica, que pode ser utilizada de forma complementar. Já foram realizados estudos na dor do pós-operatório: a audição de música familiar, de música de preferência, trouxe um benefício para os doentes, no sentido de menor necessidade de consumo de analgésicos, e menor número de dias de hospitalização.
A musicoterapia pode ser aplicada desde o período pré-natal até aos cuidados de fim de vida, que não são só na terceira idade, mas também nos cuidados paliativos, e quando os doentes têm cancro e estão numa fase já avançada da doença. E no luto.
É utilizada no Serviço Nacional de Saúde?
No sistema público, a implementação tem sido dificultada pela falta de legislação em relação ao conhecimento e à profissão de musicoterapeuta. [Esta] não é reconhecida, nem está regulamentada em Portugal. Atualmente, são profissionais de saúde, médicos, enfermeiros, psicólogos e terapeutas inseridos no SNS que a conseguem implementar nos seus locais de trabalho como forma de proporcionar bem-estar aos seus doentes.
Algum caso a marcou?
Uma jovem com uma história traumática de abandonos pela família, abuso sexual do pai, que acompanhei como pedopsiquiatra, no internamento de psiquiatria. Usava a música como auxiliar na intervenção. Lembro-me que lhe apresentei Uma Casa Portuguesa [fado de Amália]. Gostava muito de ouvir, porque, na verdade, o seu sonho era ter uma família portuguesa, mais do que uma casa. Em cada sessão, a parte de que gostava mais era [e canta] "uma promessa de beijos, dois braços à minha espera, é uma casa portuguesa com certeza, é com certeza uma casa portuguesa". Eu ficava muito sensibilizada. Quando chegava ao internamento, ela já estava assim [abre os braços]: "Dois braços à minha espera." Isso mostra o poder enorme das letras.
No sistema público, a implementação tem sido dificultada pela falta de legislação em relação ao conhecimento e à profissão de musicoterapeuta.
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