Duarte Rolo: "O trabalhador assediado não tem o apoio dos colegas"
Insultos, tarefas inúteis, ordens sem sentido – muitos trabalhadores sofrem de mobbing, o assédio no local de trabalho. O psicólogo Duarte Rolo estuda o fenómeno. A mudança está no isolamento do trabalhador, afirma, em entrevista.
O que é o mobbing? O termo, recente, designa práticas antigas de assédio no local de trabalho. A intimidação, as ameaças e uma atitude de exclusão dirigidas a trabalhadores definem, em traços largos, este fenómeno, capaz de causar grande sofrimento. Duarte Rolo, psicólogo, dedica-se ao estudo do assédio laboral, nos campos da psicodinâmica e do sofrimento no local de trabalho. Para o especialista, são as recentes formas de organização das empresas que são um verdadeiro campo de cultivo para estas atitudes dirigidas a trabalhadores: uma gestão que promove o individualismo, a precariedade e a concorrência entre colegas, que deveriam estar a trabalhar no mesmo sentido. A solução? Mudar o paradigma da gestão dos locais de trabalho.
O assédio laboral é cada vez mais falado. O que mudou?
O assédio sempre existiu. O que é mais recente é a forma como as práticas de assédio se associaram cada vez mais a problemas de saúde mental. O que é novo não é este tipo de comportamentos no local de trabalho, não é o abuso de poder. Sempre existiram chefes mais cruéis, manobras de intimidação, ameaças... O que se transformou foram as consequências, no fundo, destas práticas e o tipo de relações sociais. Se olharmos para a empresa moderna, a forma como as técnicas de gestão entram, num primeiro tempo, é essencialmente através de métodos de direção dos trabalhadores que vêm, na maior parte das vezes, do exército. São experimentadas há muito como técnicas de disciplina, de obediência.
Agora há mais noção das consequências?
Porque falamos mais de assédio? Porque há pessoas que ficam doentes. O assédio não é o quadro clínico de uma doença. É uma qualificação jurídica que tem que ver com comportamentos que podem atentar à dignidade, ter um impacto sobre as condições de trabalho, a carreira e a saúde mental. Cada vez mais, as situações de assédio aparecem associadas a quadros clínicos mais graves. A questão central é porque é que estas práticas existiam e não produziam o mesmo. Aqui entra outro aspeto, que é a forma como os meios e a organização do trabalho mudaram e a forma como mudaram as relações entre trabalhadores e a situação psicológica na qual se encontra um trabalhador face ao assédio. Aquilo que se transformou muito foi o isolamento dos trabalhadores. É completamente diferente estar face a um comportamento de assédio – práticas de intimidação, chefia que descredibiliza aquilo que fazemos – , se o enfrentarmos sozinhos, ou se contarmos com a solidariedade dos colegas.
O que é muito complicado para quem é assediado? Se enfrentamos continuadamente uma pessoa que nos diz que aquilo que fazemos não vale nada, começa-se a duvidar daquilo que se faz, e a perceção da realidade começa até potencialmente a ser alterada. Gera uma espiral de culpabilização, de desvalorização, que, muitas vezes, se associa aos primeiros sinais das patologias depressivas. A maioria dos trabalhadores, quando são assediados, não podem contar com o apoio dos colegas. Porque estão todos em concorrência, uns contra os outros, e, às vezes, até dá jeito que aquele seja assediado, porque é um rival a menos...
Não tem que ver também com precariedade laboral?
Claro que sim. Porque este cocktail entre concorrência e precariedade é completamente explosivo. Se tenho um vínculo precário e se a condição para o renovar, ou assegurar um contrato mais estável, é ter um desempenho superior ao dos meus colegas, isso pode dar azo a práticas desleais. Gera-se uma concorrência que não tem nada que ver com a elevação do nível geral do trabalho, mas com práticas individualistas de concorrência, de rivalidade, que, muitas vezes, geram conflitos.
Não houve sempre rivalidade?
Sim, mas agora é potenciada por métodos da organização do trabalho, cujo objetivo é pôr as pessoas em concorrência. E há uma conjugação de elementos muito perniciosa. Por um lado, a introdução da precariedade. O facto de as pessoas, para garantirem o vínculo laboral, terem de atingir metas ou objetivos. Não é garantido. Está condicionado a um certo desempenho. A introdução da precariedade não tem um impacto só naqueles com vínculo precário, mas em todos os outros, porque, a partir do momento em que há precários, posso passar a sê-lo. Os precários também estão em concorrência com os trabalhadores com vínculos permanentes. É uma espécie de cavalo de Troia, que faz com que toda a gente esteja insegura quanto ao futuro profissional.
A diminuição da importância dos sindicatos também contribui para essa insegurança?
Sim, em grande parte. De facto, a transformação dos meios do trabalho por via destes novos métodos faz com que a ação coletiva seja mais complicada, porque os laços de solidariedade já não se constituem de forma tão espontânea. Há outro aspeto com um forte impacto: o fenómeno da subcontratação. Ao disseminar os trabalhadores e partir as empresas em várias entidades distintas, o sentimento de pertença e a luta por direitos comuns tornam-se muito mais complicados. Embora também se possa dizer que foi precisamente por os sindicatos não terem conseguido dar a devida importância às questões do assédio e do sofrimento no trabalho que perderam adesão. Por outro lado, há, cada vez mais, uma parte da remuneração que é individualizada. Não ganhamos todos o mesmo. Ganhamos em função de metas, de avaliações, de prémios.
Acabou o tempo do “trabalho igual, salário igual”?
Sim. E até o princípio mais consagrado de progressão graças à antiguidade...
A antiguidade, aliás, é um estigma, de certa forma...
A antiguidade tornou-se um perigo, pois procura-se sobretudo trabalhadores dóceis, flexíveis, adaptáveis e facilmente exploráveis. Os trabalhadores com mais antiguidade eram também os vetores de transmissão de uma certa tradição. Transmitiam regras, conhecimento: como é que se faz certas coisas, a que princípios se obedece, o que é ou não correto nesta profissão. E essas regras são um empecilho para a gestão, de uma forma geral... O termo que os gestores usam sempre é a resistência à mudança. Quando os trabalhadores não querem adaptar-se a uma série de novas políticas, novos princípios, estão do lado do passado, dos refratários, daqueles que não querem abraçar a modernidade.

Quais são os sintomas de quem sofre assédio laboral?
Há exemplos do que se chama stresse pós-traumático, ou de neurose traumática, quadros clínicos que estavam associados a situações de catástrofes, de guerra, ou de catástrofes naturais. Graves, muitas vezes. Há situações de assédio em que temos pessoas com pesadelos, com revivescências... Em termos de gravidade, há essa equivalência. É surpreendente. Há, também, muitos quadros que são do espetro da depressão e das patologias ansiosas. O processo de assédio atinge de forma muito específica a dimensão da autoestima, do valor que damos a nós próprios, do reconhecimento.
Quais são os sinais de alerta?
É muito difícil responder. O trabalhador isolado está numa posição muito precária ou muito vulnerável para reconhecer os sinais. Muitos descrevem uma linguagem insultuosa, altamente degradante e desvalorizante, que atenta à dignidade. E também ordens ou intimações sem qualquer sentido, represálias ou momentos de coação sem função em termos produtivos ou sem relação com as tarefas e o conteúdo do trabalho.
Há algum setor onde o fenómeno seja mais crítico?
Todos os setores em que os trabalhadores estão mais dependentes são mais propícios. Onde abundam vínculos mais precários, trabalho menos qualificado… A grande distribuição é um exemplo, mas também há quadros de grandes empresas que são assediados. É difícil identificar setores muito específicos, embora, em estudos realizados com o Observatório para as Condições de Vida e do Trabalho, o número de trabalhadores que se queixam de assédio seja impressionante. Por exemplo, no setor da saúde, os enfermeiros, os professores, os maquinistas do metro e da ferrovia... Há um sentido de injustiça enorme nos locais de trabalho. Os trabalhadores sentem abuso de poder, poder discricionário, impunidade.
Os casos que chegam a tribunal, como o da funcionária da corticeira de Santa Maria da Feira, criam jurisprudência.
Sim, esse caso teve provavelmente um papel precursor. O recurso jurídico foi a principal resposta para as situações de assédio. Os representantes dos trabalhadores apoiaram-se na lei para tentar agir. Mas a via jurídica não é nem o único recurso, nem o melhor em termos de prevenção. Pode ter um papel importante para os outros trabalhadores, porque a partir do momento em que há jurisprudência, antecedentes, há impacto. O mais conhecido é o caso do julgamento da France Telecom, por assédio moral institucional. As chefias foram condenadas por terem introduzido o assédio como prática de gestão, no quadro de uma privatização. As principais chefias foram consideradas responsáveis por suicídios no trabalho.
O teletrabalho trouxe outra mudança de paradigma.
Parece-me que potencia o isolamento e a solidão. Se as pessoas já estavam sozinhas, ficam mais sozinhas. O teletrabalho tem tendência a fazer desaparecer os tempos informais, beber um café, fumar um cigarro... Nesses momentos resolvem-se uma série de problemas. Há coisas que se podem dizer nos momentos informais que não se pode dizer numa reunião, por exemplo, mas que são importantes para o trabalho.
De que modo se pode prevenir o assédio laboral?
A prevenção passa essencialmente por repensarmos os modos de organização do trabalho. Ou seja, tem de haver transformações estruturais na gestão e na organização da forma como as empresas e os locais de trabalho funcionam.
Que alterações são necessárias na organização do trabalho?
Primeiro, a insistência na precariedade e na concorrência. Segundo, a ideia de que o trabalho pode ser avaliado individual e quantitativamente. É muito importante que o trabalho seja avaliado. A maior parte dos trabalhadores anseiam por saber se estão a trabalhar bem ou não. Agora, há outras formas de avaliar o trabalho, que existem há muito e que sempre se praticaram. Por exemplo, a avaliação pelos pares, a gestão democrática nas escolas, nos hospitais... Mas este tipo de avaliação implica tempo,
presença, confiança, juntar as pessoas no mesmo sítio a conversarem francamente, o que é cada vez mais raro. Porque estes métodos entram em concorrência. A aceleração, a intensificação do trabalho, com prazos cada vez mais apertados, com precariedade, com a acumulação de vários trabalhos, porque os rendimentos não são suficientes, o clima de medo e de ameaça, de concorrência e de rivalidade. E, sobretudo, as fracas remunerações. Os baixos salários condicionam a relação entre trabalho profissional produtivo e trabalho doméstico. Se o que ganho não chega para pagar as despesas, tenho de acumular biscates.
A Agenda do Trabalho Digno deveria incidir mais nessa reorganização?
Sim. Pauta-se por uma abordagem muito formal do trabalho, muito em linha com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é a defesa das condições de trabalho digno, o que é muito nobre como intenção. É preciso não esquecer que a OIT está a braços com o trabalho infantil. Mas há um grande ausente dessa agenda, que é o conteúdo do trabalho.
Definimo-nos através do trabalho?
Muitas vezes reduzimo-lo a uma questão económica, mas, na realidade, o trabalho pode ter um papel muito importante em termos de equilíbrio psicológico, de sentido de realização, de gratificação e identitário.
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