Sara Falcão Casaca: “Desvantagens estruturais penalizam as mulheres”
A desigualdade salarial entre géneros diminui lentamente, mas as mulheres continuam a sofrer discriminação estrutural. E as profissões com mais mulheres têm funções pouco detalhadas ou "invisíveis", o que lhes dá desvantagem, diz Sara Falcão Casaca.

Desigualdade salarial entre mulheres e homens tem diminuído, mas continua elevada

O Barómetro do Diferencial Remuneratório entre Homens e Mulheres, desenvolvido no ISEG desde 2010, indica que a disparidade salarial entre géneros desceu aos 13,2%, em 2023. Quanto tempo vai demorar até se chegar à igualdade plena?
Depende de muitos fatores. Importa é que se vá trabalhando de forma muito articulada para esse objetivo. Vou logo contestar o indicador que escolheu, dos que foram apresentados. Na verdade, o Dia Nacional da Igualdade Salarial...
Que é a 14 de novembro?
É por volta de novembro. Varia, porque depende precisamente do valor do diferencial. Pretende-se sensibilizar a opinião pública: era como se daí, até ao final do ano, as mulheres trabalhassem sem qualquer remuneração. Tenho contestado muito esse valor. Deveria ser um dia aproveitado para consciencializar parceiros sociais, entidades empregadoras e a opinião pública em geral para um problema persistente da sociedade portuguesa. Mas esse indicador não corresponde ao conceito de remuneração, porque só tem em conta a retribuição-base. Ora, o conceito de remuneração, à luz da lei, inclui todos os subsídios e prestações regulares que fazem parte da contrapartida efetiva pelo trabalho prestado. Se considerarmos não a base mas o ganho [remuneração total], não estamos a falar de 13%, mas de 16 por cento. Trabalhamos a que consideramos ser a melhor base de dados, porque desagrega a retribuição-base da remuneração global. São os dados dos quadros de pessoal. As empresas preenchem o relatório único, anualmente, e depois o Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho trata os dados. Só que, em 2024, faculta-nos os dados de 2022. Ou seja, até do ponto de vista de informar parceiros sociais e decisores políticos, há sempre um diferencial de dois anos, que pode fazer diferença.
Como fizeram a comparação?
Fomos à base de dados, com todos os homens e mulheres do setor privado, e comparámo-los. Controlámos as diferenças. Qual é o atributo mais objetivo que os homens e as mulheres podem ter? O nível de escolaridade. Depois, há a experiência laboral. A idade aproxima-nos daquilo que pode ser essa experiência. E há a antiguidade. De facto, quando estamos a comparar homens e mulheres com os mesmos atributos muito objetivos, o diferencial já não é de 13, na base, mas de 15, e no ganho já não é de 15, mas de 18,4 por cento. Não posso garantir que haja discriminação remuneratória em função do sexo, mas é um indicador de alerta. O diferencial aumenta. Consideramos que não estaríamos a calcular o Dia Nacional da Igualdade Salarial em novembro, mas em outubro. O valor a considerar deveria ser os 18 por cento. Qual é a boa notícia? É que este diferencial tem vindo a diminuir de forma contínua, desde que o calculamos, que é só desde 2018 – ainda que persista bastante elevado. Pela primeira vez, em 2018, foi aprovada a lei da igualdade remuneratória entre homens e mulheres, com medidas que obrigam as empresas à transparência remuneratória.
E a lei será suficiente?
Temos de garantir a efetividade das leis. E tem de haver fiscalização, acompanhamento. O texto tem de ser completamente isento de interpretações várias, que não foi o caso. É a primeira porta aberta para haver incumprimento. Se temos diferentes gabinetes jurídicos a procurar interpretar o que se quer dizer num determinado artigo, obviamente, isso diminui a efetividade da lei. Apesar de termos, desde a primeira Constituição, após o 25 de Abril, o princípio da igualdade salarial para trabalho de valor igual, digamos que, pela primeira vez, há uma lei e uma diretiva atenta à transparência remuneratória. Como sou otimista, quero crer que vamos continuar a conseguir reduzir o diferencial remuneratório. Mas é preciso fazer muito mais. A lei não é suficiente. Só é possível se houver também apoio. É muito complexo. O princípio da igualdade salarial não se aplica apenas a trabalho igual, mas também a trabalho de valor igual. Não é preciso que o trabalho, do ponto de vista da sua natureza, da qualidade e da quantidade, seja objetivamente idêntico. As competências, os níveis de responsabilidade, as condições de trabalho e o esforço mobilizado podem ser diferentes, mas terem um valor equiparável. Agora, se todas e todos bebemos de estereótipos de género, como é que, sem formação nesta área, sem instrumentos de apoio, podemos garantir que a avaliação de funções permite atribuir um valor igual, quando as funções que os homens e as mulheres desempenham não são necessariamente iguais? Esses instrumentos têm de ser dados.
De que forma?
Ajustando o diferencial remuneratório. As entidades empregadoras têm de conseguir fazer o ajustamento. Em 2014, uma resolução do Conselho de Ministros atribuiu à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) a responsabilidade de uma calculadora, que se inspirava noutra que já existia na Suíça e na Alemanha. Com esta calculadora, as empresas conseguem fazer o ajustamento e perceber se têm um diferencial que conseguem objetivamente explicar. Estamos em 2025 e nunca esteve operacional. A lei não é suficiente. Um dos argumentos das organizações empresariais foi que traria uma carga burocrática de trabalho que não poderiam comportar. Se os organismos oficiais para a igualdade, se os serviços públicos disponibilizarem instrumentos de apoio, diminuiremos o potencial de resistência à implementação da lei. A calculadora deveria estar disponibilizada. E não vou retirar responsabilidade às universidades e às faculdades de Gestão e Economia. Formamos as futuras gestoras e os futuros gestores. Quais são as que ensinam gestão de recursos humanos e que tratam este tema e preparam as pessoas para a avaliação, sem enviesamentos de género, com critérios objetivos, para as funções com maior predominância do sexo masculino ou feminino?
Quem é Sara Falcão Casaca?
Socióloga e professora catedrática no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG-Lisboa).
Discriminação direta e indireta

Os homens têm mais lugares de poder. Isso explica a disparidade salarial?
Parte do diferencial remuneratório tem que ver com a segregação vertical: o facto de haver mais homens em lugares de chefia, de direção, também influi na remuneração, até porque nós sabemos que depois há todo um conjunto de complementos que também está associado à função. O que parece ser possível dizer, com alguma segurança, é que a discriminação remuneratória, a existir, cada vez se deve menos a discriminação direta, mas sobretudo a processos de discriminação indireta. Não vou dizer que há uma prática deliberada de discriminar, o que estou a dizer é que existem estereótipos de género que estão impregnados nas organizações, nas suas políticas e práticas. E, se não houver uma consciência muito presente desses enviesamentos de género, e se não existirem métodos e ferramentas de apoio que nas nossas políticas e práticas nos permitam afastar deles, podemos estar a discriminar do ponto de vista remuneratório. E as mulheres e os homens bebem dos mesmos estereótipos. Ambos podem discriminar.
O barómetro só explica 29% do diferencial remuneratório. O que justifica o resto?
O que a literatura nos diz é que a componente não explicada remete para discriminação estrutural em função do sexo. Não estou a dizer que as entidades empregadoras estão a discriminar, mas sim que há discriminações estruturais. Há uma desvantagem estrutural que penaliza as mulheres. É necessário que as empresas tenham políticas transparentes, para garantirem que não há enviesamentos de género, nem discriminação. Os homens estão mais representados nas profissões cujas remunerações são mais elevadas. Se não tivéssemos segregação por setor, por ramo de atividade e por profissão, o diferencial remuneratório diminuiria 55 por cento. Se uma percentagem expressiva de mulheres fosse para as áreas das tecnologias de informação e de comunicação, e grande parte dos homens para a limpeza e para o cuidado, este ajustamento macro resolveria a questão. Mas não resolveria a questão de fundo. Porque é que as áreas mais feminizadas colhem tão pouco valor no mercado de trabalho? Porque é que as competências que as mulheres tradicionalmente sempre desempenharam no espaço doméstico, nas relações sociais, etc., não são valorizadas? Cuidar, organizar, limpar...
É um trabalho quase invisível.
A invisibilidade é muito importante. Os estudos indicam que as categorias profissionais em que as mulheres estão mais representadas estão mais vagamente descritas, enquanto as dos homens estão mais minuciosamente detalhadas. Ora, logo aí, há invisibilidade do ponto de vista da determinação salarial. Houve componentes e subcomponentes daquelas funções, e das suas exigências, que não ficaram devidamente descritas. As mulheres estão em grelhas salariais mais na base, e com menos oportunidade de progressão. Há um estudo que demonstra que o dispêndio físico da mobilização de pessoas acamadas, pelas mulheres que estão nas infraestruturas de apoio a idosos, é muito próximo de quem está na construção civil, geralmente homens. Nas profissões com maior predominância do sexo feminino, devido à menor minúcia, será que se consegue salvaguardar que não há riscos inerentes? Muitas vezes, não estão descritos. As mulheres realizam menos horas extraordinárias ou trabalham menos por turnos do que os homens, e isso influi nas remunerações. Há penalizações na assiduidade, quando, por exemplo, estão a exercer os seus direitos como mães ou como pais. Apesar de não ser legal, essa prática existe.
Numa sociedade que lamenta a quebra de natalidade.
Exato. Fizemos um estudo, em 2019, no ISEG, sobre os benefícios sociais e económicos da eliminação do diferencial remuneratório e provámos que aumentava o PIB, e também a natalidade. Temos de conseguir dar condições às mulheres e aos homens para que se realizem o mais possível no domínio profissional e familiar, e as políticas públicas integradas são essenciais. Não podemos ter uma política que quer combater o diferencial remuneratório, se não continuarmos a fazer evoluir as licenças de parentalidade, por exemplo. As responsabilidades familiares, não obstante os progressos, continuam a recair essencialmente nas mulheres, e isso retira-lhes disponibilidade para investirem na carreira profissional em pé de igualdade com os homens.
Há mais homens a partilhar a licença de parentalidade

A lei não tem sido suficiente para alterar as mentalidades?
Evidentemente que temos tido progressos assinaláveis na sociedade portuguesa. Acabámos de assinalar os 50 anos de Abril. Temos um legado de estereótipos de género e de as mulheres continuarem a ser vistas como as principais cuidadoras. Mas também há mudanças muito visíveis. Pela primeira vez, nós estamos a aproximar-nos dos 50% de homens que estão a partilhar a licença de parentalidade.
Isso tem vindo sempre a aumentar?
Sim. A geração mais jovem de homens está muito consciente dos seus direitos, enquanto pais, e de que os afetos fazem parte de si, da sua humanidade. Portanto, essa representação muito tradicional de masculinidade também os restringia, condicionava muito a sua realização enquanto seres humanos. Creio que essa pressão, até do ponto de vista das políticas organizacionais, mais atentas a quem tem responsabilidades pelo cuidado, possa vir também do facto de os homens hoje terem essa maior consciência. Desejamos que sim. Por um lado, temos progressos, mas, por outro, tivemos, há pouco tempo, o Instituto Europeu de Igualdade de Género a divulgar o Índice de Igualdade de Género, e Portugal recuou na dimensão do trabalho. E recuou porquê? Devido à segregação por profissões e à fraca qualidade do emprego. Espanto-me, porque estive no Conselho Económico e Social, embora não na Comissão Permanente de Concertação Social, que faz parte deste órgão, e o acordo de rendimentos nunca fez qualquer referência às desigualdades remuneratórias entre homens e mulheres, como se não fosse um problema no País. É preciso continuarmos a trabalhar para conseguir promover um maior equilíbrio no domínio das responsabilidades familiares. Eu acho que continuar a mexer nas licenças parentais é muito importante. Persistir nesta linha de que nós precisamos de um quadro legal que nos permita ter licenças iguais para mulheres e para homens, de duração igual, não transferíveis. É mesmo o direito de pais e é o direito das mulheres, e não só é uma questão de direitos, da realização das mães e dos pais, mas é também algo que tornará completamente indiferente para uma entidade empregadora contratar um homem.
Os homens estão mais representados nas profissões cujas remunerações são mais elevadas.
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