Sofia Gomes: “O sono precisa de ser cuidado e mimado”

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Publicado a 26 fevereiro 2025

Devemos passar, pelo menos, um terço dos nossos dias a dormir. Dito assim, parece desperdício de vida, mas não é, bem pelo contrário. Sofia Gomes faz o diagnóstico do sono dos portugueses e deixa recomendações para maior descanso.

José Carlos Mona/4See Entrevista Sofia Gomes

O sono e a noite tardia dos portugueses

“Passamos cada vez menos tempo ao ar livre, o que tem impacto no ritmo sono-vigília. O nosso fuso horário está desfasado do nosso fuso biológico, e isto torna-se ainda mais complicado quando há mudança de horário.”
Entrevista Sofia Gomes
“Não faz sentido tomar medicação, se tudo o resto não estiver acautelado. Temos de avaliar os hábitos. As pessoas querem respostas rápidas, mas é fundamental começar pelas medidas de higiene do sono.”

Qual o seu diagnóstico em relação ao sono dos portugueses? Há diferenças face ao resto dos europeus?

Sabemos que a população portuguesa tem problemas com o sono. Um estudo feito pela Sociedade Portuguesa de Pneumologia, publicado em março de 2023, que se baseou num inquérito online, com uma amostra de cerca de 2100 participantes, mostrou que metade raramente dormia bem. E 75% diziam dormir menos de sete horas, sendo que um adulto deverá fazê-lo, em média, durante sete a nove horas. Em relação à insónia, 28% apresentam problemas, havendo também risco de esta se tornar crónica. Noutros países europeus, os valores rondam 10 por cento.

Que fatores indicaram para não dormir bem?

Nesse estudo, isso não foi avaliado. Mas há outros sobre a população portuguesa que mostram que o sono acaba por ser um pouco preterido em relação a outras atividades. Muitas vezes, trabalhamos até tarde, não temos a melhor higiene do sono e não nos preparamos para dormir. Também passamos cada vez menos tempo ao ar livre, o que tem impacto no ritmo sono-vigília. Outro dado interessante é que o nosso fuso horário está desfasado do nosso fuso biológico, e isto torna-se ainda mais complicado quando há mudança de horário, nomeadamente para o horário de verão, em que às nove horas ainda é de dia. A esta hora, seria expetável que fosse mais escuro, que estivéssemos a preparar-nos para reduzir as atividades e para dormir.

A que horas seria desejável que a noite começasse?

Talvez às sete. No inverno, temos uma maior aproximação ao nosso fuso horário biológico. Por isso, quando há a discussão entre o horário de verão e de inverno, biologicamente, seria mais satisfatório estarmos no de inverno. É claro que isso também não agrada aos portugueses. Gostamos dos dias longos, com mais sol, mas, depois, temos mais dificuldade em adormecer e em nos levantar.

Essa constatação aplica-se também às pessoas mais notívagas? O ritmo biológico não varia de pessoa para pessoa?

Existe, sem dúvida, essa variabilidade, a que chamamos de cronótipos. É uma característica pessoal que propicia estarmos mais ativos organicamente, até cognitivamente, numa fase do dia. Há pessoas mais matutinas, ou cotovias, e pessoas mais vespertinas [mochos]. Estas, por elas, adormeceriam mais tarde e acordariam também mais tarde. O contrário acontece com as pessoas mais matutinas. Mas o impacto do horário acaba por afetar todos os cronótipos, sendo os vespertinos mais afetados. Estes terão ainda mais dificuldade em adormecer e, depois, em responder às exigências sociais. Se pudéssemos respeitar os cronótipos das pessoas, não teríamos de entrar todos no trabalho às oito e meia ou às nove. Se formos para os cronótipos, [os horários] são ainda mais impactantes, por exemplo, para os adolescentes. É fisiológico. Estes tenderão a ter um cronótipo mais vespertino, a ter dificuldade em adormecer mais cedo. Não é só uma perrice de não quererem ir para a cama. E também têm mais dificuldade em acordar mais cedo. Mas as aulas continuam a ser às oito ou às oito e meia, muitas vezes, com disciplinas bastante exigentes, que os apanham quando o seu organismo ainda não está bem desperto.

Quem é Sofia Gomes?

Médica psiquiatra na ULS Alto Ave – Guimarães. Autora do livro O Sono dos Portugueses, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, e coordenadora de A ciência do sono, publicado pela Parsifal.

Higiene do sono

“A primeira medida é termos tempo para dormir. Fazem parte destas regras manter os horários para ir para a cama e para acordar e irmos diminuindo a atividade, por exemplo, ao final do dia.”
Entrevista Sofia Gomes
"Só devemos ir para a cama para dormir, não devemos levar o computador, o telemóvel... até o hábito de ler pode ser contraproducente."

O que é uma boa higiene do sono?

Tal como cuidamos do nosso corpo, o sono precisa de ser cuidado e mimado. Muitos de nós gostaríamos de ir para a cama, desligar a luz e adormecer, mas o processo é um pouco mais elaborado para alguns. Basicamente, a higiene do sono é um conjunto de regras que nos levam a adormecer melhor. A primeira medida é termos tempo para dormir. Fazem parte destas regras manter os horários para ir para a cama e para acordar, irmos diminuindo a atividade, por exemplo, ao final do dia. Para adormecermos bem, é fundamental não estarmos demasiado ativados. Por isso, não deve ser realizado exercício intenso, nem devemos fazer refeições pesadas. É importante termos um ambiente que propicie um sono de maior qualidade. A luz deverá ser mais amarela, e não luz azul, porque isso também interfere com a libertação de determinadas hormonas. É o caso da melatonina, que se liberta quando anoitece e nos ajuda a adormecer. Também a temperatura e o ambiente do quarto. Muitas vezes, as pessoas dormem em quartos atafulhados de gadgets, que acabam por ser dificultadores do sono. Questões como as almofadas, os lençóis e o próprio colchão podem ter um impacto importante. Depois, só devemos ir para a cama para dormir, não devemos levar o computador, o telemóvel... até o hábito de ler pode ser contraproducente. Por isso, se não tivermos sono, mais vale sairmos da cama. Para regularizar o sono, é importante associar a cama a dormir. Ir para a cama e ficar a contar carneirinhos é a pior coisa que se pode fazer. Para termos sono à hora em que queremos adormecer, mais do que deitar cedo, devemos determinar uma hora para acordar e cumpri-la sempre. Por vezes, usamos os fins de semana para compensar o que não dormimos durante a semana e, isso, acaba também por desregular, sem que consigamos compensar totalmente as horas não dormidas.

"Deitar cedo e cedo erguer dá saúde..."?

Claro. Muitas das vezes, ao deitarmo-nos mais tarde, cortamos a organização do sono, perdemos uma fase importante, a fase não-REM [sono profundo] que é mais de restabelecimento de energia. O organismo produz hormonas, como a de crescimento e cortisol [tem propriedade anti-inflamatórias], neurotransmissores... há uma série de mecanismos que ocorrem durante o sono.

Há pessoas que dormem pouco e aparentemente não têm problemas.

É uma pequena percentagem da população. Muito pequena. As pessoas que biologicamente precisam de dormir pouco conseguem satisfazer as necessidades do organismo nesse curto período. A maior parte das pessoas que dorme quatro ou cinco horas e diz que está muito bem, na verdade, nem percebe que está cansada, porque o corpo vai-se adaptando e passa a ser o hábito. E depois utilizamos uma série de estratégias, como a toma de substâncias psicoativas, que nos diminuem a sonolência. É o caso do café, entre outras. Mas os impactos no organismo existem. E onde se verificam? Nas queixas de memória, em maior irritabilidade e, até, na coordenação motora. Continuamos a conseguir trabalhar e fazer as nossas coisas, mas, na verdade, isto tem impacto grande em todas as nossas atividades. Por exemplo, a sonolência é um dos fatores que mais contribuem para os acidentes de viação, uma situação que acaba por nos pôr a todos em risco. É interessante percebermos se estamos a dormir as horas que necessitamos. Por exemplo, se realmente durante a semana estivermos a dormir as horas necessárias, ao fim de semana não teríamos necessidade de as compensar. Ou, então, nas férias. É uma boa forma de percebermos quais são os horários ideais e os cronótipos. Se a pessoa não tiver compromissos e estiver descontraída, como é que é o seu horário de sono? Quantas horas dorme? Qual é a hora ideal para adormecer e para acordar? Conseguimos ter um registo mais fidedigno e percebemos que muitos não estão a cumprir, de todo, as horas necessárias de sono.

E a longo prazo, há consequências?

A médio e longo prazo, um número insuficiente de horas de sono tem um impacto enorme na nossa saúde. Por exemplo, a hipertensão idiopática, aquela que não sabemos a origem, muitas vezes, deve-se a poucas horas de sono. Estas também contribuem para a obesidade. Quando dormimos pouco e mal durante muito tempo, temos mais apetência para comer alimentos hipercalóricos e temos mais dificuldade em controlar a impulsividade alimentar. Também ficamos mais vulneráveis a infeções, porque o sono é importante para o equilíbrio do sistema imunológico. E, inevitavelmente, enquanto psiquiatra, tenho de falar das doenças mentais. É verdade que um dos sintomas da doença mental primária pode traduzir-se em alterações do sono. Mas estas podiam já ser preexistentes, e isso aumenta o risco, por exemplo, de perturbações depressivas, de ansiedade e, a longo prazo, até podem aumentar o risco de desenvolvimento de demências.

O trabalho por turnos também é problemático.

O trabalho por turnos é um mal da nossa sociedade. Não é propriamente algo para que estejamos preparados. O ideal é ser o menor número de anos possível. É também importante que os turnos não sejam demasiado rotativos, isto é: fazer tarde; no dia a seguir, uma manhã; e, depois, noite; e, na seguir, descanso... O ideal é, muitas vezes, fazer um período maior, uma semana ou duas, num determinado horário. Depois, ao fazer a rotação, que seja no sentido de manhã, tarde, noite. Há um estudo com enfermeiros que mostra que estes trabalhadores acabavam por ter mais riscos, nomeadamente, de doenças cardiovasculares, associados mesmo às alterações do sono. Muitas vezes, estas pessoas, quando deixam de trabalhar por turnos, têm dificuldade em consolidar o sono num horário mais normativo. No que diz respeito aos trabalhadores da restauração e bares, além das longas horas de trabalho, as pessoas não dormem as horas necessárias, para poderem ter atividades sociais e com a família. Nestes profissionais, é também frequente haver consumo de substâncias, seja tabaco, cafeína, álcool. E é mais difícil manter a abstinência quando dormimos mal.

Medicamentos e insónias

“A medicação é uma aliada, e deve ser utilizada quando for realmente necessária, isto se tudo o resto estiver acautelado. Mas a primeira linha continua a ser a terapêutica não farmacológica.”
Entrevista Sofia Gomes
"Uma das estratégias é escrever o que nos preocupa. É como se tirássemos os problemas da mente e os colocássemos num local para os resolvermos no dia seguinte."

Para pessoas que dormem mal, recomenda-se a toma de medicamentos? Os que alegam ser naturais, como a valeriana, são recomendáveis?

Não faz sentido começar a tomar medicação se tudo o resto não estiver acautelado. Temos de avaliar os hábitos. É horrível ter noites mal dormidas. As pessoas querem respostas rápidas, mas é fundamental começar pelas medidas de higiene do sono. Muitas alterações relacionam-se com isto. Depois, também temos de perceber o que a pessoa reconhece como dormir mal. À medida que vamos envelhecendo, o sono vai-se transformando. Não é expectável que alguém com 65 anos durma dez horas, como uma criança de dez anos. Não é compatível com as necessidades naquela faixa etária. A monitorização diária do sono é essencial para perceber se, realmente, há alguma perturbação. A insónia só é considerada se nos dermos oportunidade de dormir. Se trabalharmos intensamente, formos para a cama às duas da manhã e não conseguirmos adormecer, isso não é propriamente uma insónia. Por vezes, vamos para a cama com muitos problemas na cabeça. Aqui, uma das estratégias é escrever o que nos preocupa. É como se o tirássemos da nossa mente e o colocássemos num local para resolver no dia seguinte.

No entanto, muitas vezes, estas estratégias não são suficientes. A medicação é uma aliada, e deve ser utilizada quando for realmente necessária, isto se tudo o resto estiver acautelado. Mas a primeira linha continua a ser a terapêutica não farmacológica. Há terapias que sabemos serem eficazes, como a cognitiva comportamental dirigida à insónia. Além de medidas de higiene do sono e da educação para dormir melhor, usa outras estratégias, nomeadamente, a reformulação do modo como a pessoa se relaciona com o sono. Se ao anoitecer a pessoa diz "vou ter de dormir e sei que não vou conseguir", isso é ansiogénico. É um dos motivos por que não devemos manter-nos na cama sem dormir. Ficamos ainda mais angustiados, a olhar para o relógio, que é coisa que não se deve fazer.

Também deve ser averiguada a medicação que a pessoa faz. Por exemplo, alguns medicamentos para a hipertensão podem prejudicar o sono. Em relação à medicação para dormir, quando necessária, deve ser implementada na menor dose e durante o menor tempo possível. Sobre a valeriana, no que respeita ao sono, os estudos não são muito favoráveis. Pode ter algum benefício na questão ansiosa, e, muitas vezes, o que dificulta o adormecer é uma ansiedade antecipatória.

O que é um sono de qualidade?

O sono divide-se, mais ou menos, em quatro a seis ciclos, compostos por sono não-REM [sigla inglesa de movimento rápido dos olhos], seguido de uma fase REM. É necessário que esses ciclos ocorram adequadamente, com um sono profundo, depois uma fase em que temos sonhos mais vívidos, mais de teor emocional. Estas fases são importantes para a consolidação de memórias, para uma série de funções essenciais ao nosso equilíbrio. Isso é um sono saudável. Se alguma destas fases estiver alterada, pode indicar um problema. Por exemplo, o ressonar não é normal. É necessário determinar o motivo por que se ressona. Pode ser devido a vários fatores, mas é necessário descartar, por exemplo, uma síndrome de apneia obstrutiva do sono, porque pode ser uma doença silenciosa, que tem um forte impacto na saúde. E prejudica enormemente o sono, não só do próprio como da pessoa com quem partilha o quarto. Ressonar de forma constante é mais preocupante, mas ressonar nunca é normal. [Quando acontece] há uma obstrução da via aérea superior. Claro que, quando estamos constipados e temos o nariz entupido, isso vai dificultar.

Tem relação com a posição em que se dorme?

Sim. Estar de barriga para cima aumenta o risco de ressonar, porque há um maior relaxamento dos músculos. É algo que se verifica mais em pessoas com peso a mais ou obesidade.

Que recomendação deixaria, para terminar?

É importante destinarmos tempo do dia para dormirmos. Tal como sabemos quais são as horas para fazer refeições, para entrar no trabalho, para fazer determinada atividade, é importante destinar tempo para nos prepararmos para dormir, e dormirmos as horas necessárias. Sem isso, tudo o resto acaba por ficar impossibilitado.

Para regularizar o sono, é importante associar a cama a dormir. Para termos sono à hora em que queremos adormecer, mais do que deitar cedo, devemos determinar uma hora para acordar e cumpri-la sempre.

 

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