Filipa Novais: “Redes sociais criam sensação de solidão”
Os riscos extravasam os benefícios. As redes sociais são um fator de desequilíbrio mental, sobretudo entre os adolescentes. Filipa Novais traça o risco do uso problemático, com reflexos negativos na dieta, no sono, na autoimagem e na depressão.

Exposição das crianças aos ecrãs e a saúde mental
A Declaração dos Direitos das Criança, da Organização das Nações Unidas, incluiu a necessidade de desenvolver a literacia digital, para que as crianças utilizem a tecnologia de forma segura. Parece-lhe pertinente esta atualização?
Sem dúvida. As crianças não usam tanto as redes sociais - TikTok, Instagram e Facebook - mas são expostas a ecrãs e a conteúdos digitais, alguns escolhidos por elas ou pelos pais, outros perfeitamente aleatórios. Sobre a exposição das crianças aos ecrãs já temos alguns dados, e a grande maioria aponta para efeitos potencialmente negativos, sobretudo quando há exposição a conteúdos violentos, não vigiada pelos pais. Até a televisão que é colocada de fundo, um hábito em algumas famílias, e o tempo que os pais passam em frente ao ecrã parecem ter efeitos nocivos no desenvolvimento cognitivo das crianças. Não sabemos muito bem porquê. Foram avançadas algumas explicações, que tem que ver, muitas vezes, com o facto de haver menos conversa na família, menos interação. Outro estudo mostra que quando as crianças são expostas a conteúdos educativos, juntamente com os pais, têm melhor desempenho.
Mas as crianças usam as redes sociais cada vez mais precocemente, nomeadamente o TikTok…
Não temos ainda muitos estudos sobre o impacto específico do uso das redes sociais versus a exposição global a ecrãs e a conteúdos digitais. Nos jovens e nos adultos, já se faz mais esta distinção [entre o uso das redes e a exposição a ecrãs] e até há análises mais específicas por tipo de rede social, porque parece haver algumas diferenças entre elas.
Ao nível das redes sociais, no geral, quais são os perigos para a saúde mental?
Embora existam alguns estudos que não mostram relação entre a utilização das redes sociais e a saúde mental - um ou outro parece mostrar até benefícios em algumas áreas específicas e com populações específicas -, a grande maioria aponta para efeitos negativos e, mesmo, para uma associação entre o tempo de utilização das redes e scores mais elevados de ansiedade e depressão. Ao separarmos os estudos entre os que avaliam esta questão, sobretudo, em adultos e idosos, e os que o fazem em adolescentes, parece que os efeitos são particularmente negativos e graves nos adolescentes. Ainda assim, o efeito das redes sociais como potencial fator de risco é relativamente baixo. É um dos fatores, mas existem muitos outros. Tempo e tipo de exposição, se é mais ativa ou mais passiva… As características de personalidade, as redes de suporte social e o sono parecem também ter grande importância.
Há adolescentes que, pela utilização que fazem, têm padrões de sono muito disruptivos, sonos muito interrompidos. Estão sempre ligados às redes. Alguns têm mais risco de desenvolver perturbação do uso ou uso problemático das redes sociais. Dentro dos adolescentes, as raparigas têm maior risco. E, depois, também parece haver faixas etárias em que este risco é ainda maior. Nas raparigas, entre 11 e 13 anos, e, nos rapazes, entre 14 e 15. No fundo, corresponde à idade da transformação física. A fase do desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários é, muitas vezes, uma fase de menor autoestima, maior fragilidade. Os adolescentes estão a construir da sua identidade, da sua autoimagem, a relação com os outros… Está tudo em construção. Mas os efeitos descritos [do uso das redes sociais] refletem-se a vários níveis do comportamento, da dieta, da autoimagem, da ansiedade e da depressão.
Quem é Filipa Novais?
Médica psiquiatra e professora auxiliar na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Influência das redes sociais na construção do indivíduo e da sociedade

Tendo em conta isso, que sociedade estamos a construir? Será que vamos ser prisioneiros de quem domina as tecnologias?
Não há reversão possível, nisto. Tal como, no passado, percebemos que havia fatores que influenciavam negativamente a saúde, por exemplo, em relação à alimentação, e começámos a educar os jovens, em relação às redes sociais, esse deve ser também o caminho. Percebemos que elas podem ter um efeito negativo sobre a saúde mental dos jovens - até nos adultos é preciso algum cuidado -, pelo que é preciso educá-los para a sua utilização. Esse educar para o uso mais saudável da internet e das redes sociais, em particular, já vai sendo feito em algumas escolas, já faz parte do currículo.
No fundo, é educar para potencial impacto negativo das redes sociais e proteger as nossas crianças e adolescentes em fases mais precoces de uma exposição sem vigilância. Se calhar tem de haver algum controlo. Da mesma forma que os pais, por exemplo, não deixam os filhos sair à noite antes dos 16, 18 anos, também devem controlar a exposição às redes numa fase muito precoce. E, se calhar não deve haver acesso. Estamos a falar do risco para a saúde mental, mas também pode haver risco para a integridade física, de serem levados, enganados, por pessoas que têm identidades falsas nas redes, e daí advir trauma, risco para abuso e outras situações, que, depois, trarão também problemas mentais.
Há inclusive a questão dos desafios.
Alguns desafios são particularmente perigosos. Há aqueles fenómenos que se tornam virais e que tanto poderão ser eventualmente protetores, com manifestamente perigosos para os adolescentes.
Porque ainda não têm a noção do perigo real.
Também. E eles são particularmente suscetíveis ao efeito de grupo, mais do que os adultos. Alguns estudos mostram que aumentaram, por exemplo, os tiques funcionais em jovens que usam muito o TikTok, como piscar o olho, mexer a cabeça... São involuntários, mas espelham um comportamento observado. Muitas vezes, também se observam fenómenos de contágio de comportamentos, sobretudo, autolesivos. Começou a haver maior atenção e maior controle do espalhar destes fenómenos, mas, ainda assim, acontecem.
E existe outra questão com as redes sociais, que não acontece se calhar tanto com outras pesquisas na internet: o algoritmo vai reforçando. Se algum dia um jovem pesquisar um conteúdo mais nocivo, por exemplo, sobre automutilação ou suicídio, vai continuar a receber conteúdo, o que acaba por reforçar este fenómeno. Os adolescentes, muitas vezes, também não têm o filtro que a aprendizagem, o desenvolvimento do córtex pré-frontal [no cérebro] nos dá. Ainda não têm as convicções totalmente definidas, são muito mais moldáveis, o que é bom. O problema é quando é feito em sentido negativo, e continuam a ser bombardeados com conteúdos negativos, que têm que ver com a distorções da imagem corporal, autoagressividade ou da heteroagressividade.
Portanto, o efeito das redes sociais na construção da autoestima pode ser particularmente negativo.
Muitos estudos mostram que quem consome mais redes sociais, particularmente aquelas que expõem mais o corpo - o TikTok e o Instagram, por exemplo, baseiam-se na exposição de uma imagem, muitas vezes, idealizada, sexualizada – parece sofrer um impacto particularmente nocivo, sobretudo, nas faixas etárias de desenvolvimento e nas raparigas, mas também em jovens que têm mais tendência para a comparação com o outro e, já de base, com mais baixa autoestima, que tendem a fazer um uso mais passivo das redes. Há outro estudo que mostra que aqueles que já têm uma autoestima elevada são mais ativos. São eles que põem os vídeos e parecem ter uma maior satisfação com a vida. Mas podem ter um efeito negativo naqueles que têm baixa autoestima. Isso já existe na sociedade, mas, nas redes sociais, está mais exponenciado, e pode ter um efeito particularmente perigoso, porque o tempo de exposição pode ser prolongadíssimo. Na minha prática, tenho jovens que, em férias, começam de manhã e terminam à noite, sempre ligados às redes. Isto também acontece com os adultos. E rouba muito tempo útil, que é necessário para outras atividades.
As competências sociais ficam comprometidas quando se passam tantas horas a olhar para o ecrã?
Sem dúvida. As crianças mais expostas a ecrãs e aquelas cujos pais passam mais tempo nas redes sociais ou a utilizar ecrãs têm pior desempenho cognitivo. A utilização das redes, muitas vezes, impede a comunicação, e sabemos que as crianças se desenvolvem muito com a comunicação que estabelecem com o adulto. O mesmo acontece nos adolescentes, até em relação aos pares. A literatura também indica que quanto mais tempo se passa nas redes sociais, maior é a sensação de solidão. E também há maior tendência para que os indivíduos mais ansiosos do ponto de vista social, que têm ansiedade social, passem mais tempo a utilizar as redes. E são esses que se sentem mais sozinhos e mais tristes. Portanto, parece que as redes sociais não estão a dar aquilo que eles procuram.
Potencial aditivo do Instagram e do TikTok
O potencial aditivo depende da rede social?
Fiz um estudo há pouco tempo que mostrou que sim, e outros estudos também. De facto, as redes sociais, sobretudo as desenhadas mais recentemente, parecem ter um potencial aditivo maior. Falamos de imagens muito apelativas que se sucedem rapidamente. O TikTok e o Instagram, por exemplo. O nosso estudo mostrou que o Instagram, em comparação com o Facebook e o X tem um potencial aditivo maior. As pessoas que tinham uso problemático de redes sociais usavam muito mais o Instagram. O próprio TikTok tem vídeos muito curtos que sucedem muito rapidamente, sem intervalos. Também está muito associado ao uso problemático. Tal como muitos produtos alimentares, por exemplo, são desenhados para terem um efeito aditivo, as redes sociais também parecem ser desenhadas para terem um efeito aditivo, para que as pessoas lá fiquem e percam a noção do tempo.
Há redes que enviam uma notificação e, em determinado período, os utilizadores têm de publicar uma foto tirada na altura. Poderá ser problemático?
Não tenho informação científica sobre isso, mas diria que sim. Acaba por ser muito disruptivo, nas atividades do dia-a-dia. No estudo, por exemplo. As redes sociais também perturbam, muitas vezes, a atenção. Os alertas, os inputs constantes, os likes… isto dificulta a concentração.
Os adolescentes são mais suscetíveis a isso?
Os adolescentes são um público sempre suscetível. Mas o fenómeno não se verifica só em adolescentes. Aliás, o nosso estudo foi em jovens adultos. As redes são feitas para serem aditivas em relação a qualquer público. É claro que há preferências. Parece que os mais jovens usam mais determinadas redes. Hoje já ninguém [dos jovens] usa o Facebook, que tem posts muito grandes e muita publicidade. O Instagram é muito mais apelativo do ponto de vista visual, e o TikTok, ainda mais rápido e dinâmico. Há aqui elementos que parecem ter sido desenvolvidos no sentido de tornar as redes cada vez mais aditivas.
Há ainda a influência dos influencers…
Os influencers têm, de facto, uma influência enormíssima nas pessoas que os seguem, mais do que a comunicação social, por exemplo. Sabemos que têm um impacto muito grande na venda e consumo de determinados produtos, e também têm uma influência nos comportamentos. Mais recentemente, alguns têm a preocupação de trazerem conteúdos educativos sobre saúde mental, promoção da saúde, desporto e vida ativa. Outros, nem tanto. Aquilo que ele advoga, de bom ou de mau, há de ser muitas vezes repetido por quem o segue. Tudo é exponenciado.
A atividade deveria ser regulada de alguma forma?
Sim, mas é muito difícil. Temos de prestar particular atenção aos mais suscetíveis, se calhar, em fases muito precoces. É um bocadinho polémico, mas, sabendo que há tantos potenciais efeitos negativos, a melhor forma de protegermos, sobretudo, as crianças é proibir o acesso, tal como proibimos outras substâncias nocivas. Não nos passa pela cabeça dar álcool a uma criança ou deixá-la sair sozinha à noite, mas, se calhar, há pais que lhe dão um tablet com livre acesso a conteúdos online. Isto só acontece porque nós, sociedade, ainda não estamos suficientemente sensibilizados para os potenciais efeitos negativo. É um mundo novo. Nós próprios estamos a tentar perceber e acompanhar. A literatura ainda não acompanha totalmente. Não temos, por exemplo, muitos estudos a longo prazo para percebermos o que é que acontece às crianças que começaram a utilizar redes sociais, telemóveis e a aceder a conteúdos tão cedo na vida.
A utilização das redes, muitas vezes, impede a comunicação, e sabemos que as crianças se desenvolvem muito com a comunicação que estabelecem com o adulto.
Como controlar a utilização

Quando fala em proibir, refere-se quem? Aos pais?
Podem ser os pais, as escolas… isso já é feito nalguns sítios.
Na Austrália, foi recentemente proibido por decreto o acesso a redes sociais a menores de 16 anos. Parece-lhe acertado? É possível que a medida seja adotada também em Portugal?
É provável que venha a acontecer. Aos 16 anos, já passámos as fases de maior risco, quer nos rapazes, quer nas raparigas. Já há maior compreensão, pelo que, talvez faça sentido. Se calhar, a partir dos 14 anos, podem ter um acesso controlado. Antes disso, raramente têm sido reportados benefícios. Um ou outro estudo não mostra um impacto das redes sociais antes desta idade, mas a grande maioria revela efeitos negativos, e alguns graves. Portanto, faz sentido restringir o acesso. Se se começar por proibi-lo nas escolas, talvez aumente a consciência das famílias. Mas falta também divulgação [dos riscos] na sociedade.
Proibindo o acesso a redes sociais, faz sentido também proibir o telemóvel?
Pode haver acesso ao telemóvel sem acesso a redes sociais, embora esteja tudo ligado. Em alguns países, foram definidas idades a partir das quais se pode ter telemóvel sem internet, depois com internet de acesso controlado e, a partir dos 16 anos, com redes sociais. O tempo de uso também deve ser controlado. E, aqui, os pais nem sempre são o melhor exemplo.
Qual seria o tempo recomendado?
Depende da idade e, em férias, poderá ser maior do que em período escolar. É preciso tempo sem redes sociais, sem telemóveis, para que haja um verdadeiro descanso. O tempo de lazer, sobretudo nos jovens, fica muito restrito à utilização das redes sociais e dos telemóveis. Estar com os amigos e com a família, sair, fazer atividades ao ar livre, o desporto e a leitura são muito importantes para o desenvolvimento. E, isso tem de começar cedo na vida. Se nunca estimulámos as crianças a saírem de casa, se não conversarmos à mesa, não é na adolescência que vamos conseguir fazê-lo.
Benefícios e alerta para uso problemático
No início, falou em efeitos positivos das redes sociais para alguns grupos etários. Refere-se a pessoas mais isoladas, como os idosos? Esse efeito está provado?
Sim. Alguns estudos, sobretudo durante a pandemia, mostram que houve alguns efeitos positivos, por exemplo, relacionados com a divulgação da informação sobre saúde, que na altura foi feita, em parte, através das redes sociais. Há pouco tempo vi também um estudo que mostrava a associação entre o aumento da atividade física nos idosos e o consumo de informação que a promovia nas redes sociais. Também podem ser benéficas para o contacto entre idosos mais isolados. Há ainda muita busca de informação sobre parentalidade. Os pais têm pouca informação prática sobre o cuidado, por exemplo, quando nasce o primeiro filho. Existe muita na internet, embora nem toda boa. Quando é, pode ter grande utilidade.
Importa saber distingui-la.
Sim, e os adultos têm mais capacidade para isso. As redes sociais podem ser um meio fantástico para divulgar informação de qualidade. Mas, mais uma vez, é preciso controlo [do conteúdo] e, até, do tempo de utilização. Há uma associação entre o tempo de utilização e a maiores índices de ansiedade e depressão. Na verdade, parece que as pessoas que estão deprimidas ou ansiosas tendem a utilizar mais as redes sociais. Por vezes, vão procurar algum consolo, mas outras é só uma forma de escapismo. Os adultos fazem muito isto. Só que, enquanto estão a consumir estes conteúdos, não estão realmente a descansar, a relaxar e a processar emocionalmente aquilo que os preocupa. No fim, fica uma sensação de vazio, de não sentirem realmente um alívio que advenha destas atividades. E estas atividades, muitas vezes, substituem as outras, como a conversa, a caminhada ou o exercício… e isso pode ser um problema.
Existem também conversas por chat. Será o mesmo que conversar face a face?
Não tenho muitos dados para responder a isso. É claro que a conversa no chat não tem a expressão emocional, a presença do outro, que, sabemos, tem um efeito positivo. Aquilo que eu verifico é que gera muitos desentendimentos, porque há toda uma comunicação não verbal que é muito importante. Portanto, a comunicação presencial é muito mais rica do que a comunicação que é feita no chat, mas esta não deixa de ser comunicação.
Quais os sinais de alerta para o uso problemático da internet?
O principal indicador é o tempo passado em frente ao ecrã. A restrição do sono, porque se está nas redes sociais ou no computador, a dificuldade em controlar esse tempo e o abandono de atividades de que se gostava são tudo indicadores de que poderá haver uma utilização problemática da internet, das redes sociais ou dos jogos online. Se falamos da ansiedade e da depressão, o isolamento e a falta de prazer na realização de outras atividades também podem ser sinais de alerta.
Que recomendações faz aos utilizadores das redes sociais?
É importante que grande fonte de informação não sejam as redes sociais. Sabemos que nos trazem informação que pode ser falsa ou muito enviesada. Um dos riscos das redes sociais é reforçarem informação mais xenófoba, racista e violenta. É esta que gera mais visualizações e que se espalha mais facilmente. O uso das redes sociais deve ser muito consciente. Pegar no telemóvel é tão automático que, muitas vezes, não pensamos no tipo de conteúdo que estamos a aceder, que o que nos é fornecido, e escolhido pelo algoritmo, também é automático...Temos de estar conscientes do tempo que passamos a utilizar as redes sociais e não dedicamos a outras atividades. Em relação aos jovens, é importante que os pais, as escolas e todas as entidades que têm obrigação de intervir no seu crescimento e formação os ajudem a ser mais conscientes na utilização das redes sociais.
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