Notícias

"Não há consumo de álcool seguro"

"Pense antes de pegar no copo", aconselha Manuel Cardoso, subdiretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). Para travar os consumos problemáticos, defende a subida do preço das bebidas alcoólicas, através dos impostos, e a limitação dos pontos de venda.

Manuel Cardoso

Fernando Piçarra/4See

O hábito de consumir bebidas alcoólicas está culturalmente enraizado na Europa e noutras zonas do mundo, não havendo real consciência do perigo que representa para a saúde. Em novembro de 2022, Lisboa recebeu a conferência final do AlHaMBRA, projeto financiado pela União Europeia. Objetivo? Angariar conhecimento científico e partilhar as melhores práticas, com vista à adoção de políticas comuns para reduzir os efeitos do consumo nocivo de álcool. Manuel Cardoso, médico de saúde pública, subdiretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), e coordenador do projeto, enumera os principais problemas e explica as medidas propostas.

No âmbito do AlHaMBRA, sugere-se a inclusão de mensagens ou imagens de desincentivo ao consumo nas bebidas alcoólicas. Vai avançar?

Aquilo que a Comissão [Europeia] pede é um estudo para ver se é pertinente, até onde se pode ir e, a introduzir algo, “o quê” e “como”. A proposta tem de ser entregue até ao fim de fevereiro. Em Portugal, 65% ou 70% das embalagens já terão o pictograma da grávida traçada a vermelho – em algumas não é vermelho –, a simbolizar que não deve beber. Falta o dos carros (“não deve beber, se conduzir”) e o dos menores, que também não devem beber. Outra hipótese é ter, além do pictograma, uma mensagem explícita: "O álcool provoca cancro" ou "o álcool prejudica a saúde". Exatamente aquilo que está no maço de tabaco.

Está provado que tem efeito?

Há efeito, pelo menos, num primeiro momento. Quando foram colocadas as mensagens nos maços de tabaco, logo houve a concorrência a criar pacotinhos para meter o maço de tabaco e, portanto, a tapar aquilo. Se vier a ser implementado nas bebidas alcoólicas, provavelmente, vai acontecer o mesmo.

Em 2023, é provável haver alguma decisão?

Honestamente? Não. O poder da indústria das bebidas alcoólicas é demasiado grande. A Europa da saúde está a sair um pouco da casca, mas ainda está estabelecido que as políticas de saúde são definidas ao nível do Estado-membro. E estas medidas têm de ser tomadas ao nível europeu – a criação da união é comercial, não se destina propriamente a proteger o cidadão em termos de saúde. É tremendamente difícil ter o apoio de todos os Estados-membros. Os nórdicos são mais pró-redução e controlo da publicidade. Os do Sul são muito mais abertos aos consumos, muito menos restritivos. Conseguimos, por exemplo, ter uma taxa especial sobre as bebidas alcoólicas, em impostos, mas a taxa para o vinho é zero.

E faz sentido?

Não. Em Portugal, as bebidas alcoólicas são extremamente baratas, quando comparadas com outros países da Europa. Quanto a políticas para tentar reduzir problemas, mais do que de consumos, estamos a falar de acessibilidade. Isso mede-se com os postos de venda, a facilidade com que acedemos em termos físicos e financeiros. Numa política de preços, não posso ter imposto para a cerveja e para as espirituosas e, depois, para o vinho, zero. Não temos política, temos pseudopolítica. Preconizamos que o Estado determine a atualização anual deste imposto especial sobre o consumo, ao nível da inflação mais 0,5, ou um ponto percentual acima. E não há um licenciamento para a venda de bebidas alcoólicas. A nossa proposta é um pouco essa, que a densidade dos sítios onde se vendem bebidas alcoólicas seja regulada.

 
"Com o consumo de álcool e com os acidentes, estamos a matar a nossa população mais produtiva", afirma Manuel Cardoso.

O poder do lóbi das bebidas pode impedir políticas antiálcool?

O consumo de bebidas alcoólicas está enraizado na cultura da maioria  dos países, nomeadamente, nos do Sul [da Europa]. Dos 308 concelhos nacionais, 300 são produtores de vinho. As famílias, na agricultura, têm videiras e produzem vinho, aguardente, etc. Mesmo os grandes produtores têm um valor significativo de álcool, que é para eles, e que acabam por vender. Do álcool consumido em Portugal, 20% não é registado. Outro exemplo, para falarmos de políticas, é quando o nosso ministro da Agricultura vai a um encontro relacionado com bebidas alcoólicas, e a primeira coisa que diz é: "Portugal exportou 900 milhões de euros em vinho." Não quer saber se se deve beber com moderação, quer é vender milhões. A indústria tem um peso tremendo. São grupos empresariais que movimentam biliões de euros, com poder mundial. A Organização Mundial da Saúde conseguiu que, em 2010, fosse aprovada uma estratégia global para reduzir o uso nocivo do álcool. Mas houve cedências, formas de escrever... A expressão que utilizo, "uso nocivo do álcool", é uma delas; não é consumo, é uso nocivo.

Em Portugal, há muitos problemas associados ao álcool?

Em cada ano, morrem 2500 pessoas por causa do consumo de álcool. Só álcool. Há 30 mil e tal internamentos hospitalares por patologias de cirrose ou hepatite. Nem todas alcoólicas. As alcoólicas são à volta de quatro mil. São muitos anos de vida perdida. E estamos a falar apenas de dois diagnósticos: cirrose hepática e hepatite alcoólica. Depois, há todas as outras patologias derivadas: cancros, pancreatites, infeções, tuberculose, VIH... Nos acidentes na estrada, 140 ou 142 [anuais] são atribuídos ao álcool. E há todos os outros acidentes... as mulheres que morrem, porque os maridos as violentaram sob efeito do álcool. Portanto, há que chegue, nós é que não olhamos para isso.

Mas também há estudos que dizem que o vinho contribui para prevenir doenças... 

Se forem os da cerveja a fazer o estudo, dirão que a cerveja reduz os problemas cardíacos. E as espirituosas são capazes de dizer o mesmo, e ainda arranjam outros argumentos. Tem muito que ver com quem faz o estudo, e da maneira como foi desenhado.

É pior consumir álcool de forma regular ou uma grande quantidade de uma só vez? 

Os estudos dizem que é pior o consumo de grandes quantidades, mesmo que só ao fim de semana. Porque a destruição que faz em termos de saúde é mais evidente. 

Estão calculados os custos dos problemas de álcool? 

Não. Em Portugal, ainda não conseguimos ter isso. No mundo, a principal causa de morte entre os cinco e os 29 anos são os acidentes na estrada, no caso do álcool. Com o consumo de álcool e com os acidentes, estamos a matar a nossa população mais produtiva. 

Quais são os sinais de que se está a ultrapassar o consumo aceitável? 

O primeiro sinal é ter de beber todos os dias. Depois, o alerta de alguém que lhe diz que está a exagerar. Ou o próprio sentir que, se calhar, exagerou. São três sinais muito simples. Se alguém o criticou porque bebeu demais, é significativo, e não é fácil dizer isso, porque somos tão tolerantes. Outro sinal é sentir incómodo, que teve efeitos negativos. Se perceber o descontrolo, o primeiro contacto deve ser o médico de família.

Como distinguir o aceitável do patológico?

É muito difícil. Depende da pessoa e do organismo. Tem que ver com o metabolismo de cada um, do efeito ao nível do sistema nervoso central e das patologias. É preciso ter atenção à genética. Os filhos de pais alcoólicos têm tendência para vir a ter dependência. Não é o beber um copo uma vez, mas há sempre o risco da lesão imediata, da violência, do acidente, etc. E isso é imediato, basta uma vez. E basta o outro. Às vezes, nem é o próprio. E há os efeitos de longo prazo, e esses são diferentes.

Há uma estrutura física, biológica, mental, que nos leva a ter um comportamento aditivo. Pela influência dos pares, podemos experimentar e, depois, gostamos ou não. Se não houver pressão, não bebemos. E podemos beber uma vida inteira, sem termos dependência.

Há diferença entre homens e mulheres no consumo de álcool?

O baixo risco está definido. Para os homens, uma bebida a duas por dia. Para as mulheres, no máximo, uma. Não há consumo sem risco. É preciso que fique claro. Não é uma recomendação, é uma diferenciação.

E um conselho ao consumidor?

A mensagem mais sensata seria para pensar antes de tocar num copo. É uma dependência que nunca deixa de o ser a partir do momento em que se instala, mesmo que seja resolvida. O diabético não o deixa de ser, mesmo que controle com medicação. Um dependente sê-lo-á sempre, mesmo que, por uma via ou por outra, consiga controlar.

Se gostou deste conteúdo, apoie a nossa missão

Somos a DECO PROTESTE, a maior organização de consumidores portuguesa, consigo há 30 anos. A nossa independência só é possível através da sustentabilidade económica da atividade que desenvolvemos. Para mantermos esta estrutura a funcionar e levarmos até si um serviço de qualidade, precisamos do seu apoio.

Conheça a nossa oferta e faça parte da comunidade de Simpatizantes. Basta registar-se gratuitamente no site. Se preferir, pode subscrever a qualquer momento.

 

Junte-se a nós

 

O conteúdo deste artigo pode ser reproduzido para fins não-comerciais com o consentimento expresso da DECO PROTESTE, com indicação da fonte e ligação para esta página. Ver Termos e Condições.