Liliana Gonçalves: "Não é o estatuto do cuidador informal que desejávamos"
Subsídios irrisórios, que chegam apenas a cerca de quatro mil cuidadores, num universo de 13 500 reconhecidos. Falta de descanso. Erros processuais e dificuldades de entendimento da lei, que indeferem muitos pedidos. Exigência de grau de parentesco e residência comum. Reclamações diárias. O estatuto do cuidador não é o que deveria ser, critica a presidente da Associação Nacional de Cuidadores Informais.
- Editor
- Deonilde Lourenço e Fátima Ramos

Técnica de reabilitação psicomotora, na Cáritas Arquidiocesana de Évora, Liliana Gonçalves preside à Associação Nacional de Cuidadores Informais (ANCI), que tem desempenhado um papel vigilante na definição do estatuto do cuidador informal. Na adolescência, foi cuidadora da avó.
Temos o estatuto do cuidador informal que tanto se desejou?
Infelizmente, não é o estatuto que gostaríamos que estivesse em vigor. E, desde que foi alargado ao nível nacional, pouca coisa mudou. Temos cuidadores com acesso a um subsídio de apoio, de valor muito baixo. Está nos 292,45 euros. Os valores médios são francamente baixos, para quem cuida. Não fazem face às despesas que as pessoas têm, no dia-a-dia, no cuidar. Consideraríamos mais justo se o valor pudesse situar-se entre o indexante dos apoios sociais e o salário mínimo nacional. Além disso, que este subsídio chegasse a todos os cuidadores informais. Só uma pequenina parte tem acesso à medida. Estão 13 500 reconhecidos e só cerca de quatro mil têm acesso ao subsídio.
Por causa dos critérios económicos de elegibilidade?
Sim. É considerada a condição de recursos [financeiros]. A partir daí, muitos cuidadores vão ficar de fora das medidas de apoio. Defendemos que todos deveriam ter acesso.
Na altura dos projetos-piloto, em 2020, falava-se na necessidade de simplificar o processo. Verificou-se?
Houve simplificação, mas ainda não o suficiente, porque envolve muita burocracia. Muitas pessoas, à partida, sabem que não vão ter acesso a medidas de apoio, porque não têm complementos por dependência, nem subsídio de assistência a terceira pessoa. E isso tem de ser tratado antes do pedido do estatuto. Muitos cuidadores não tratam destes pedidos, o que leva a que não peçam o estatuto. E continua a não haver uma campanha de informação abrangente. A Segurança Social fez um vídeo, mas pouco mais existe. A informação alargada poderia ser feita através da distribuição de folhetos, e com o envolvimento da rádio e da televisão. Seria muito importante para divulgar as medidas do estatuto.
Identificaram já as principais dificuldades dos cuidadores durante o pedido do reconhecimento do estatuto? Chegam muitas queixas?
Sim, diariamente. Temos uma linha de apoio ao cuidador informal. E, por e-mail, chegam-nos, pelo menos, duas queixas por dia. Têm que ver com erros no processo, ou dificuldades de entendimento da lei pelos técnicos que atenderam. A interpretação da lei de alguns locais faz com que haja mais indeferimentos. Do que nos temos apercebido, na região norte há mais indeferimentos do que noutras.
Refere-se a algum critério da lei em particular?
Muitas vezes, tem que ver com a condição de recursos, com os rendimentos tidos em conta no cálculo do estatuto e também com o RSI [rendimento social de inserção]. Alguns locais entendem que é incompatível, outros não. Por isso, há pessoas a receber cartas a pedir a devolução dos valores que lhes foram pagos, porque [quem analisou o processo] considerou que o RSI não era incompatível com o estatuto do cuidador informal. Efetivamente, estivemos a ver com a advogada, e podem pedir a restituição. A pessoa não pode receber RSI e estatuto do cuidador informal ao mesmo tempo.
Mantém-se a necessidade de cuidador e pessoa cuidada viverem na mesma casa e de haver um grau de parentesco…
Continuamos com uma iniciativa legislativa de cidadãos, a pedir alteração ao estatuto do cuidador informal. Temos tido dificuldade em recolher assinaturas, porque, para a sociedade civil, foi criado um estatuto e, aparentemente, existem apoios para os cuidadores informais. E estão na lei, mas não passam do papel. Temos dificuldades em fazer perceber [à sociedade] que os cuidadores têm falta de apoios [financeiros] e de medidas de apoio, que possam, de alguma forma, alterar o dia-a-dia. As medidas que estão a chegar não fazem grande diferença.

E o descanso do cuidador?
Não há cuidados domiciliários para esse tipo de descanso?
O estatuto prevê um certo número de dias de férias, ou de descanso, por ano?
Não, isso é uma reivindicação da associação. São 58 dias, anualmente. Consideramos o cuidar como um trabalho. Portanto, é como se a pessoa tivesse direito a férias, e mais os dias para o descanso do cuidador.
A formação e o apoio psicológico para o cuidador eram problemas identificados. Houve melhorias?
Há outros aspetos por regulamentar ou que seja necessário aperfeiçoar?
A carreira contributiva dos cuidadores informais preocupa-nos muito. As pessoas com o estatuto pagam um seguro social voluntário, mas nem todas conseguem fazer descontos todos os meses e, portanto, vai haver muitos cuidadores que não vão ter carreira contributiva desta forma. Além daqueles que, por não terem o estatuto, não têm estas contribuições. Também temos cuidadores idosos a cuidar de outros idosos, que ficaram fora da medida do subsídio de apoio.
Porque têm reforma.
Têm a reforma, mas também temos reformas tão baixas, não é? Poderia, eventualmente, pensar-se na atribuição do apoio por escalões... Como o estatuto está, além de chegar a um número muito reduzido de pessoas, comparado com o universo que poderá existir, vamos ter sempre cuidadores no limiar da pobreza. A secretária de Estado da Inclusão não gosta que abordemos esta questão, mas é verdade. Porque só quem tem muito baixos rendimentos vai ter acesso às medidas de apoio financeiro. E o apoio financeiro é tão baixo que não ajuda as pessoas a terem dignidade no cuidar.
Como se resolveria a questão da carreira contributiva?
Muitas pessoas estão a cuidar há muitos anos e nunca vão conseguir fazer descontos. Pensamos que só se vai conseguir ter, digna e justamente, uma carreira contributiva para os cuidadores, se forem considerados dez anos antes [de contribuições], e se o seguro social voluntário for assegurado pelo próprio Estado, além do subsídio de apoio que a pessoa receberia.
Os contactos com a Segurança Social são difíceis...
Recebem queixas sobre a qualidade da informação?
Um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública revela que 48% dos cuidadores consideram mau ou muito mau o acesso a informação. Como se altera a situação? Maior divulgação, apoio na gestão do processo...?
Acho que são as duas coisas. O pedido do estatuto podia ser feito não apenas na Segurança Social. Devia haver técnicos capacitados, quer na área da saúde, quer na área social, que ajudassem as pessoas a preencher o requerimento. O próprio requerimento podia ser simplificado. Numa primeira fase, a pessoa pedia apenas para aceder ao estatuto, para ser reconhecido. Só depois é que teria o apoio de uma equipa técnica para ajudar a instruir o processo. Penso que simplificaria.
As alterações ao Código do Trabalho bastam?
Como explica a resistência do Governo a fazer passar algumas reivindicações?
Se mandasse, o que é que mudava já?
Abolia a condição de recursos para acesso ao estatuto. Os critérios de admissão da pessoa cuidada, penso que podia ser por justificação médica, e avaliava-se a pessoa a posteriori. Portanto, não haver necessidade de um complemento de dependência e alargar-se o subsídio de apoio a todos os cuidadores. Penso que era crucial. E apoio psicológico. Há muitos cuidadores que nos dizem que querem um estatuto para terem apoio psicológico, não para terem o subsídio de apoio. Neste momento, essas pessoas não têm apoio.
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