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Doentes recuperados sem entraves no acesso a créditos e seguros de vida?

Os doentes recuperados e os que têm a doença controlada não devem ser discriminados, devido ao problema de saúde, nos contratos de crédito e de seguro de vida. A lei garante-o, mas a prática mostra que ainda há muitas questões a resolver.

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25 março 2025
Direito ao esquecimento

Carlos Caetano

Em vigor desde 1 de janeiro de 2022, a lei que consagra o direito ao esquecimento deveria ter sido regulamentada até janeiro de 2023. Ainda não o foi na totalidade. Em falta continua também o Acordo Nacional de Acesso ao Crédito e a Seguros (ANACS), do qual dependem diversos aspetos práticos, como os dados exigíveis a quem pretende contratar um crédito ou seguro, a informação a divulgar ao consumidor pelas instituições financeiras e pelas seguradoras, e a forma de mediar eventuais conflitos, entre outros. A única novidade deste ano foi a publicação de uma norma regulamentar pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF), aplicável às seguradoras. Esta visa garantir o exercício do direito ao esquecimento e evitar práticas discriminatórias, como a recusa de contratar um seguro de vida para crédito à habitação e crédito ao consumo a quem superou ou mitigou uma doença ou incapacidade, o aumento do respetivo prémio, das exclusões e das franquias.

A dita norma define os dados pessoais que as seguradoras não podem usar na definição das condições do seguro de vida para crédito à habitação e crédito ao consumo, a contratar por quem superou ou tem controlada uma doença ou incapacidade. É o caso, por exemplo, da identificação e descrição da patologia e alterações verificadas em resultado da mesma, a identificação e descrição da deficiência, o protocolo terapêutico utilizado, a história clínica da pessoa e exames médicos. Estas disposições já estão em vigor. O conteúdo restante será válido a partir do início de maio. 

Em que situações há superação ou mitigação de doença ou deficiência?

Atualmente, estão previstos três prazos para o direito ao esquecimento, que já constam dos questionários de acesso ao seguro. 

  • 10 anos desde o fim do protocolo terapêutico, no caso de risco agravado de saúde ou deficiência superada. Considera-se que o consumidor superou uma situação de risco agravado quando já não sofre da patologia, após a realização de tratamentos capazes de limitar significativa e duradouramente os efeitos. Já a deficiência é vista como superada quando houve redução de uma incapacidade igual ou superior a 60 por cento.
  • 5 anos a partir do fim do protocolo terapêutico, se o problema de saúde foi superado antes dos 21 anos.
  • 2 anos de protocolo terapêutico continuado e eficaz, com recurso a tratamentos comprovadamente capazes de limitar significativa e duradouramente os efeitos da situação de risco agravado ou de deficiência. Este prazo pode aplicar-se, por exemplo, a doenças crónicas, como a diabetes.

A lei refere explicitamente que o direito à não-discriminação nos contratos de crédito, como o crédito à habitação, bem como nos seguros associados aos mesmos, de todos os consumidores que se enquadrem numa das condições indicadas.

Estes prazos são demasiado genéricos, podendo levantar dúvidas no momento da aplicação. Por isso, deverá ser definida uma grelha que permita definir os períodos e as condições aplicáveis a cada patologia com direito ao esquecimento, tendo em conta o processo terapêutico, entre outros fatores. Aquela lista deve ser revista a cada dois anos e disponibilizada aos consumidores. A norma regulamentar da ASF, apesar de concretizar a forma como devem ser contabilizados os prazos, não contempla a grelha.

DECO PROteste questiona competências na definição de informação

A lei do Orçamento do Estado para 2024 encarregou a ASF e o Banco de Portugal de definir a informação a fornecer ao consumidor que queira contratar um crédito ou um seguro, mas só a primeira avançou e, claro, com obrigações destinadas apenas às seguradoras. Não define, contudo, uma ficha normalizada, também prevista na lei, que transmita as disposições legais em formato e linguagem acessíveis a não-especialistas.

Apesar de considerar esta ficha normalizada indispensável, a DECO PROteste questiona a atribuição da tarefa a entidades que também podem ser fontes de informação para quem pretenda contratar um crédito ou um seguro. Serão suficientemente isentas a definir os critérios? A organização entende ainda que a aplicação da lei deve ser continuamente fiscalizada por uma entidade independente, a definir, de modo a garantir o respeito pelos direitos dos consumidores.

Por fim, e face ao atraso no acordo, a referida lei do Orçamento do Estado estabelecia que, "na falta de acordo até ao último dia de junho de 2024, ou na eventualidade da sua renúncia, resolução, não-prorrogação ou não-renovação, as matérias que este deveria abranger serão definidas através de decreto-lei", mas não fixava uma data-limite para a sua publicação e entrada em vigor. Até agora, não aconteceu.

Indicava ainda que caberá aos "membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças, Comércio, Inclusão e Saúde" representar o Estado na realização e manutenção do Acordo Nacional de Acesso ao Crédito e a Seguros. A competência mantém-se? A ver vamos. Já os representantes das outras partes, como as instituições financeiras, as seguradoras e os doentes, nunca foram anunciados.

Práticas de avaliação das seguradoras sujeitas a supervisão

Apesar das muitas indefinições, a lei do direito ao esquecimento, como bem lembra a ASF, está em vigor, sendo proibidas as práticas que violem a igualdade, no acesso aos seguros, entre pessoas com deficiência ou risco agravado de saúde e as restantes.

As seguradoras não estão proibidas de adotar práticas e técnicas de avaliação, seleção e aceitação de risco próprias, mas têm de obedecer a regras rigorosas a estão e sujeitar-se à supervisão da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões. Se não aceitarem fazer um contrato, agravarem o prémio ou reduzirem as respetivas garantias, têm de o justificar perante o supervisor, fornecendo dados de comparação entre fatores de risco apresentados pelo cliente visado e os de uma pessoa em situação comparável, mas não afetada pela patologia ou incapacidade em causa.

Estes esclarecimentos devem também ser facultados ao consumidor. Para o efeito, devem ser definidas, por lei ou por acordo entre as entidades envolvidas, as categorias de informação a fornecer e criado um modelo normalizado, em linguagem simples e acessível, para que o consumidor comum possa avaliar as razões da rejeição e reclamar, se assim o entender.

Recomendações ao consumidor

A ASF parece empenhada em disponibilizar informação ao consumidor no seu portal e avança com um conjunto de sugestões a ter em conta na altura de contratar:

  • se puder exercer o direito ao esquecimento, não tem de informar a empresa que pretende fazê-lo;
  • não precisa de apresentar uma declaração do médico, mas deve tê-la consigo para a eventualidade de surgir algum conflito;
  • se a empresa de seguros perguntar se sofria de uma patologia ou deficiência superada ou mitigada, ou sobre essa patologia ou deficiência, pode responder negativamente. Mesmo que diga "sim", a empresa não pode ter em conta essa informação.

Caso ainda não tenham decorrido os prazos para exercer o direito ao esquecimento e quiser saber em quanto vai ser penalizado por sofrer de uma patologia, pode exigir essa informação. A seguradora deve apresentar as condições que lhe seriam propostas se não existisse o risco agravado ou a deficiência. Por outro lado, se, no decurso do contrato, forem alcançados esses prazos, informe a seguradora. Esta deve refletir a nova condição no prémio.

Onde reclamar de bancos e seguradoras

Quem se sinta discriminado, tendo em conta os critérios da nova lei, pode começar por confrontar o banco ou a seguradora, pois pode tratar-se de um erro de avaliação. Se o problema persistir, tem à disposição o livro de reclamações no balcão de bancos e seguradoras, que deve ser obrigatoriamente cedido quando solicitado. Pode também recorrer ao livro de reclamações eletrónico. Outra solução é descrever a situação na plataforma Reclamar, da DECO PROteste, que envia diretamente a queixa para a entidade visada.

No caso dos bancos, tem ainda a possibilidade apresentar a reclamação diretamente ao Banco de Portugal, por carta ou online. Se a discriminação partir de uma seguradora, pode também queixar-se à Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões.

Consumidores exigem que não se esqueça o direito ao esquecimento

A lei do Orçamento do Estado para 2024 determinava alguns aspetos importantes para a operacionalização da lei do direito ao esquecimento, mas, para já, são poucos os resultados práticos. Importa definir, quanto antes, quem deve avançar com o processo e mediar as negociações entre bancos, entidades financeiras e representantes das "pessoas com risco agravado de saúde".

No ANACS, devem ser indicadas as patologias e incapacidades abrangidas pelo direito ao esquecimento ou mencionar expressamente que se aplica a todas. Fundamental é também avançar com uma data concreta para o início da contagem do tempo de recuperação ou mitigação. Mais: há que determinar o formato do comprovativo de cura ou mitigação, sem esquecer eventuais dificuldades de prova de pacientes curados há anos.

A aplicação da lei do esquecimento deve ser acompanhada e fiscalizada em contínuo, incluindo as imposições da recente norma regulamentar da ASF. Como poderá o consumidor saber se as condições que lhe oferecem não consideram o risco agravado de saúde? Dificilmente a seguradora assumirá que são mais gravosas por esse motivo. A DECO PROteste defende, por isso, que a fiscalização seja feita por uma terceira entidade. Só assim se garantirá a plena e correta aplicação da norma.

A organização mantém a ideia de que a informação a requerer ao consumidor aquando da celebração do contrato deve ser urgentemente definida. Também os critérios para a rejeição ou o agravamento devem ser claros e justos. Reitera ainda que todos os critérios devem ser explicados de forma simples e compreensível, tal como a restante informação.

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