Enxaqueca: há novos tratamentos para gerir as crises
Quatro mulheres em idade ativa relatam como as enxaquecas frequentes lhes condicionam a vida e o que fazem para controlar as crises. Novos medicamentos já disponíveis em Portugal trazem uma nova esperança aos cerca de dois milhões de portugueses afetados por esta doença sem cura.

Neste artigo
- Dor incapacitante e outros sintomas típicos
- Causas e possíveis "gatilhos" da enxaqueca
- Fases de uma crise de enxaqueca
- Diagnosticar enxaqueca e preparar a consulta
- Medicação para tratamento agudo da enxaqueca
- Tratamento profilático para reduzir a frequência e a intensidade das crises
- Tratamentos inovadores para enxaquecas
- Rotinas saudáveis ajudam a prevenir crises
Mais do que uma simples dor de cabeça, a enxaqueca pode ter um grande impacto na vida de quem padece deste distúrbio neurológico. Trata-se, inclusive, da segunda causa mais frequente de anos vividos com incapacidade, a seguir às dores nas costas. Estima-se que afete 12% a 15% da população mundial e cerca de 19% de portugueses. Ao nível nacional, atinge 30% das mulheres e 17% dos homens, sendo quase duas vezes mais frequente em indivíduos do sexo feminino.
Dor incapacitante e outros sintomas típicos
Para Inês Coelho, 34 anos, empregada de limpeza em Olhão, as enxaquecas são tempo perdido em crise e dor torturante. Sofre deste problema desde a adolescência, tendo o diagnóstico sido estabelecido com base nos sintomas e na história clínica. Refere que as crises frequentes têm um grande impacto na sua vida, obrigando‑a a cancelar muitos compromissos.
Há alturas em que os episódios duram horas ou mesmo dias e não percebe como evitá‑los. Mas sabe que a exposição a sons altos e repetitivos, a luzes fortes e a cheiros ou perfumes intensos são “gatilhos”, pelo que evita entrar em perfumarias, por exemplo. Antes de concertos ou espetáculos, toma sempre medicação preventiva, embora esta não funcione perante crises galopantes e com náuseas, como lhe acontece com frequência.
Nessas crises, só consegue aliviar os sintomas com um anti‑inflamatório não esteroide. Além disso, tem de se isolar num local fresco da casa, onde reinem a escuridão e o silêncio absolutos, até conseguir “desligar”, vencida pelo cansaço. Inês confessa que as dores são altamente incapacitantes e que a fazem sentir‑se inútil. Mas já aprendeu a viver com esta condição. Procura atividades tranquilas, como a leitura, que a ajudam a superar mais facilmente possíveis crises.
Sintomas típicos de uma crise de enxaqueca
A enxaqueca é uma doença que se caracteriza por episódios autolimitados de cefaleias intensas e incapacitantes. Existem dois subtipos principais: a enxaqueca sem aura (mais comum) e com aura. O tipo de dor de cabeça e outros sintomas associados permitem distinguir a enxaqueca face a outras cefaleias. Eis as queixas típicas.
- Dor de cabeça moderada a forte tipicamente pulsátil e unilateral, que se pode prolongar durante quatro horas a três dias.
- Hipersensibilidade à luz e/ou ao som pode surgir associada à cefaleia, a qual pode agravar‑se com atividades físicas de rotina.
- Náuseas e/ou vómitos podem acompanhar a cefaleia.
- Alterações neurológicas passageiras em 10% a 30% dos doentes (enxaqueca com aura).
Nas enxaquecas com aura, as pessoas descrevem sintomas que podem surgir antes da cefaleia ou durante a fase da dor de cabeça: alterações da visão, como manchas, pontos luminosos ou linhas em ziguezague, ou ao nível da sensibilidade, da linguagem ou da força muscular. Cada sintoma individual de aura pode durar entre 5 e 60 minutos.
Voltar ao topoCausas e possíveis "gatilhos" da enxaqueca
Trata-se de uma doença por si só e não um sintoma de outro problema de saúde. Mais concretamente, é um distúrbio do foro neurológico. Embora seja um problema frequente, a verdade é que as causas ainda não são completamente conhecidas. Pensa-se que o seu desenvolvimento esteja relacionado com a libertação de substâncias inflamatórias que afetam os nervos e os vasos sanguíneos da cabeça.
Fatores desencadeantes frequentes
Diversos fatores são frequentemente apontados como desencadeantes, incluindo stresse, alterações hormonais, certos alimentos, o consumo excessivo de cafeína, longos intervalos entre refeições, alterações de sono e ingestão de bebidas alcoólicas, entre outros. Esses "gatilhos" podem variar de pessoa para pessoa e também mudar ao longo da vida.
Elisa Matos, 34 anos, especialista em marketing digital, Lisboa, refere que houve fases em que tinha crises semanalmente que se arrastavam durante três dias. Com o tempo, conseguiu identificar uma lista de fatores desencadeantes, que procura gerir no dia‑a‑dia. Alertas no telemóvel para não se esquecer de comer e beber a cada duas horas e dois cafés por dia são sagrados. Usar os óculos frente aos ecrãs e luzes de ambiente suaves são também essenciais para evitar crises. Dormir pouco, bebidas alcoólicas, stresse e até perfumes intensos são “gatilhos” que tem de contrariar. Com estes cuidados, refere que evita, pelo menos, parte das crises. Tenta tomar a medicação para as enxaquecas só mesmo em SOS.
Paula Santos, 47 anos, jornalista em Lisboa, que sofre de enxaquecas desde os 13 anos, admite que, com a medicação e a experiência, aprendeu a gerir melhor as crises. No tempo da faculdade, estas tornaram‑se mais frequentes e incapacitantes, provavelmente devido ao stresse. Tinha dores latejantes de um só lado da cabeça, de forma alternada, na zona das têmporas, acompanhadas de náuseas, vómitos, intolerância à luz, aos sons e aos cheiros. Os analgésicos de venda livre de nada adiantavam, pelo que consultou um neurologista e recorre, desde então, a medicação específica para enxaquecas, da classe dos triptanos. Já percebeu que tem de tomar um comprimido assim que sente uma “moinha” e aguardar num espaço escuro e calmo. Se assim fizer, sabe que o mal‑estar acaba por passar em 20 minutos. Paula, que também é asmática, confessa que se esquece muitas vezes da bomba da asma em casa, mas nunca sai sem a medicação para enxaquecas e sem comida. Horas sem comer, dormir pouco e stresse são possíveis “gatilhos” que já identificou, mas nota que as alterações hormonais também interferem. Atualmente, tem, pelo menos, uma crise por mês, na altura da menstruação, e recorda as gravidezes como uma fase de alívio, livre de enxaquecas.
Alguns estudos questionam o impacto real de muitos destes fatores habitualmente associados às enxaquecas, exceto a menstruação, que surge exclusiva e frequentemente associada a crises em várias mulheres.
Voltar ao topoFases de uma crise de enxaqueca
Globalmente, podem distinguir-se várias fases numa crise de enxaqueca.
Algumas horas a dias antes de a cefaleia se instalar, podem surgir sintomas premonitórios variados, tais como cansaço, depressão, irritabilidade, alterações de humor e aumento da sensibilidade à luz e/ou som. É a chamada fase de aviso (pródromo).
Uma minoria dos doentes apresenta também sintomas neurológicos passageiros, antes ou durante o período da cefaleia, nas enxaquecas com aura. Manifestam-se, como referido acima, por alterações da visão, da sensibilidade, da linguagem ou da força muscular.
Surge então a fase da cefaleia, com uma dor de cabeça tipicamente pulsátil e de um só lado, que se vai intensificando, de moderada a forte, muitas vezes, acompanhada de hipersensibilidade à luz e/ou aos sons (foto e fonofobia) e, por vezes, também de náuseas e vómitos. A maioria dos pacientes precisam de medicação e de repouso na escuridão e no silêncio absolutos para ultrapassarem esta fase aguda, que pode durar 4 a 72 horas.
Passada a crise aguda, muitas pessoas experienciam uma espécie de "ressaca". Nesta fase de recuperação (pósdromo), que dura um ou dois dias, os sintomas podem ser semelhantes aos da fase de aviso.
A intensidade e a regularidade das crises podem variar de pessoa para pessoa, mas também ao longo da vida. Quando a frequência é inferior a 15 dias por mês, as enxaquecas são consideradas episódicas. Quando se tornam mais frequentes, pode evoluir-se para uma enxaqueca crónica.
Importa realçar que a enxaqueca é frequentemente subvalorizada, apesar de incapacitante. Embora sem cura, é possível controlá-la.
Voltar ao topoDiagnosticar enxaqueca e preparar a consulta
Quem sofre de enxaqueca deve procurar ajuda, junto do médico de família ou de um neurologista. Um diagnóstico precoce e um tratamento adequados permitem reduzir significativamente o seu impacto.
Além de um exame neurológico, o profissional de saúde irá avaliar os sintomas e a história clínica do doente. Procurará registar o tipo, a localização da dor de cabeça (veja as características acima) e a frequência das crises, assim como possíveis fatores desencadeantes e medicamentos utilizados. Os exames de imagiologia, como uma tomografia axial computorizada (TAC) ou ressonância magnética, só são, geralmente, necessários para excluir outras condições, se houver indicação.
Antes da consulta, pode ser útil preencher um diário da enxaqueca, para identificar possíveis "gatilhos", e anotar os medicamentos que já experimentou, sem sucesso.
Feito o diagnóstico e traçado o perfil do doente, o médico define a estratégia terapêutica a adotar, combinando abordagens farmacológicas (tratamento agudo e/ou preventivo) e não farmacológicas, como a promoção de rotinas saudáveis, abordadas adiante.
Voltar ao topoMedicação para tratamento agudo da enxaqueca
O tratamento farmacológico agudo age na fase da dor de cabeça e visa reduzir ou eliminar os sintomas habitualmente associados à enxaqueca.
Deve ser iniciado o mais cedo possível, ao primeiro sinal de cefaleia. A administração precoce está efetivamente associada a uma maior eficácia do tratamento. A medicação deve ser tomada nas doses eficazes: uma só toma eficaz tende a funcionar melhor do que várias doses subótimas repetidas.
Há que alertar para o risco de usar de forma inadequada analgésicos para as dores de cabeça: em excesso, podem aumentar o risco de desenvolver outro tipo de cefaleias por abuso de medicação. Por isso, mesmo que recorra a medicação de venda livre, procure aconselhar-se com o médico ou farmacêutico.
Caso a medicação de primeira linha, como paracetamol e anti-inflamatórios não esteroides (AINE) – ibuprofeno, aspirina, diclofenac, etc. – não sejam eficazes, existem alternativas de segunda linha, como os fármacos da classe dos triptanos.
Os medicamentos de segunda linha também são indicados quando a medicação anterior não é bem tolerada ou é contraindicada. Por exemplo, os AINE não devem ser tomados por quem sofre de úlcera péptica (do estômago) ou insuficiência renal. Já os triptanos não são indicados em caso de doença coronária, por exemplo. Estes pacientes são possíveis candidatos aos novos tratamentos desenvolvidos para enxaquecas (ver título respetivo adiante).
A par da medicação para as dores, pode recorrer-se a antieméticos (domperidona ou metoclopramida) para controlar náuseas e vómitos.
Tratamento profilático para reduzir a frequência e a intensidade das crises
Além da medicação para a dor, o médico poderá receitar um tratamento preventivo, para reduzir a frequência e a intensidade das crises.
Vários fármacos demonstraram ser eficazes para este fim. Alguns não são específicos para enxaquecas ou podem ter outras indicações que não o tratamento deste problema. É o caso de certos anti-hipertensores, antidepressivos, ansiolíticos ou anticonvulsivantes e a toxina botulínica A, por exemplo.
As terapias comportamentais e não farmacológicas, como a terapia cognitivo-comportamental, o retrocontrolo biológico (biofeedback) e outras técnicas de relaxamento podem ser úteis a título preventivo, por ajudarem a lidar com o stresse.
Apesar de alguns pacientes referirem encontrar alívio com a acupuntura, esta técnica carece de provas de eficácia sólidas. A homeopatia, as terapias à base de plantas e os suplementos alimentares também não têm evidência.
Sofia Ramos, 45 anos, técnica de turismo em Lisboa, sofre de enxaquecas, com episódios frequentes e muito incapacitantes desde pequena. Relata que já fez várias tentativas com fármacos diferentes para enxaquecas, e até medicação regular e preventiva à base de ansiolíticos e antidepressivos. Até já experimentou terapias não convencionais, como acupuntura e homeopatia. Mas nada resultou, desabafa. Contudo, começou recentemente a tomar medicação para enxaquecas da classe dos triptanos e uma pílula contracetiva em contínuo e pensa que a situação é agora mais suportável. Para as crises passarem mais depressa, tem de atuar no imediato com um comprimido e repousar na escuridão e ao abrigo de sons e cheiros.
Voltar ao topoTratamentos inovadores para enxaquecas
Progressos nos tratamentos trazem esperanças renovadas aos doentes que sofrem de enxaqueca. Além de novos medicamentos, algumas técnicas recentes são promissoras, nomeadamente a neuromodulação não invasiva, que atua ao nível do sistema nervoso. Contudo, aguardam-se mais estudos que suportem a sua eficácia.
Novos medicamentos
Os fármacos inovadores desenvolvidos bloqueiam um alvo considerado fundamental na génese da enxaqueca – o CGRP, o péptido relacionado com o gene da calcitonina – ou o seu recetor. Já deram provas da eficácia, tanto no tratamento agudo como preventivo da enxaqueca.
Estão disponíveis nas farmácias dois antagonistas do recetor do CGRP, também conhecidos como gepants:
- o Rimegepant, para o tratamento agudo e/ou preventivo da enxaqueca episódica em adultos com pelo menos quatro crises por mês;
- e o Atogepant, para um uso profilático.
Exigem receita médica, mas (por enquanto) só o Atogepant é comparticipado. O seu elevado custo torna-os inacessíveis para muitos doentes: uma caixa de duas unidades de Rimegepant custa mais de 55 euros e uma de 28 unidades de Atogepant cerca de 160 euros.
Em entrevista, Elisa Matos, 34 anos, refere que o médico lhe aconselhou um novo tratamento (Rimegepant), mas confessa que, por ser muito caro, se ficou pelo anterior, da classe dos triptanos. Ainda assim, só toma em SOS esta medicação específica para enxaquecas ou quando não dispõe das condições para recuperar (em viagens de longo curso ou eventos de trabalho, por exemplo). É mais eficaz, reconhece, mas ficaria muito caro, sobretudo dada a frequência das crises. Procura gerir os "gatilhos", como já referiu, e, ao mínimo sinal de dor de cabeça, atua de imediato com um analgésico efervescente e tenta descansar num quarto escuro e sem barulho, com gelo na cabeça e venda nos olhos, até conseguir adormecer por umas duas horas. “É todo um processo...”, comenta. Se não for suficiente, recorre à medicação que o médico receitou.
Anticorpos monoclonais administrados no hospital
Também já estão disponíveis em Portugal anticorpos monoclonais contra o CGRP ou o seu recetor: Erenumab, Fremanezumab, Galcanezumab e Eptinezumab. São indicados na profilaxia em adultos com, pelo menos, quatro dias de enxaqueca por mês. Esta medicação é comparticipada e requer prescrição médica por parte de profissionais de hospitais do Serviço Nacional de Saúde. São administrados no hospital, mensal ou trimestralmente, por via subcutânea ou, no caso do Eptinezumab, por perfusão intravenosa.
Voltar ao topoRotinas saudáveis ajudam a prevenir crises
Ter uma rotina saudável e identificar os "gatilhos" da enxaqueca são passos importantes para prevenir crises.
- Manter um diário da enxaqueca, para identificar “gatilhos” e evitá‑los.
- Dormir as horas necessárias, procurando manter um padrão de sono regular, incluindo nas férias e ao fim de semana.
- Comer e beber a cada três horas,seguindo uma alimentação saudável e evitando “saltar” refeições.
- Moderar o consumo de café e álcool e não fumar.
- Gerir o stresse e a ansiedade, recorrendo a terapia cognitivo‑comportamental, meditação e técnicas de relaxamento, por exemplo.
- Manter atividade física regular, como ioga, caminhadas e natação.
Perante enxaquecas incapacitantes, procure ajuda, de um médico de família ou neurologista. Encontrar o tratamento mais eficaz exige, com frequência, a experimentação de várias opções até se encontrar estratégias que funcionem. Poderá passar por medicação, mas também por alterações simples no dia-a-dia. Com a experiência, a medicação certa e alguns cuidados diários, muitas pessoas conseguem gerir melhor a sua condição, como demonstram os relatos das quatro entrevistadas.
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