Violência em discotecas: como pode defender-se?
As notícias de agressões em discotecas nas grandes cidades são frequentes. Como pode defender-se? O que diz a lei?
A notícia da morte de um agente da PSP, em março de 2022, às mãos de dois ex-fuzileiros, entretanto condenados por homicídio qualificado, recordou que as saídas à noite podem ser perigosas.
Fábio Guerra, o agente, que se encontrava fora de serviço, tinha saído à noite para uma discoteca em Alcântara (Lisboa). Uma rixa que começou dentro do estabelecimento levou-o a intervir, juntamente com três outros colegas, que também estavam fora de serviço. Já no exterior da discoteca, os agentes seriam agredidos violentamente por dois ex-fuzileiros e outros intervenientes. Os quatro agentes da PSP seriam transportados para o hospital de São José. Guerra ficaria em estado crítico e acabaria por falecer, dois dias depois.
O caso levou as forças policiais a pedirem celeridade na justiça e um reforço do policiamento público junto dos espaços de diversão noturna na capital.
Dois dos agressores foram condenados a 17 e 20 anos de prisão. Um terceiro suspeito, fugido à justiça, acabou por se entregar às autoridades em setembro deste ano. Os arguidos foram condenados ao pagamento de uma indemnização de 432,5 mil euros.
Vários graus de homicídio
Os dois ex-fuzileiros foram acusados de homicídio qualificado pelo Ministério Público, pela natureza “extraordinariamente bárbara, violenta e desproporcional” das agressões, revelando “indiferença perante a vida” alheia. Em poucos minutos, terão posto as vítimas das agressões fora de combate e expostas a golpes dados sem qualquer proporção. O acórdão que ditou a condenação desmontava, ainda, outro dos argumentos dos causídicos, o de terem agido em legítima defesa.
Como distingue a lei um homicídio qualificado de um homicídio simples? O segundo é punido com pena de prisão de oito a 16 anos. No entanto, se a morte resultar de circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade – por exemplo, agir com frieza ou praticar o homicídio com mais duas pessoas –, trata-se de um crime de homicídio qualificado. Neste caso é aplicável pena de prisão de 12 a 25 anos. Ficou provado que os suspeitos usaram de violência excecional e censurável sobre as vítimas, por um lado; por outro, o argumento da legítima defesa era algo, para o juiz, absolutamente falacioso. Daí a condenação por homicídio qualificado.
A quem deve dirigir a denúncia?
A denúncia de agressões na noite pode ser feita mesmo por quem não a sofre, só a presencie, junto das seguintes autoridades competentes:
- Ministério Público;
- Polícia Judiciária;
- Polícia de Segurança Pública;
- e Guarda Nacional Republicana.
A denúncia pode ser apresentada junto de qualquer uma destas entidades, que a encaminhará para aquela que for competente.
A denúncia é gratuita. Tratando-se de matéria do foro criminal, não é necessário pagar e pode ser efetuada de um modo oral ou escrito e também pode ser efetuada contra desconhecidos, quando não se sabe quem foi o autor do crime.
Aquando da apresentação da queixa, a vítima deve mencionar todos os detalhes relevantes quanto à mesma, nomeadamente o dia, a hora, o local, os factos relativos à prática do crime, o autor do crime (se conhecido), testemunhas e outros meios de prova relevantes para a investigação.
Como pedir indemnização?
As vítimas que sofreram danos graves (na sua saúde física ou mental), resultantes de atos de violência têm direito a um adiantamento da indemnização pelo Estado. Para isso, é necessário preencher os seguintes requisitos:
- incapacidade provocada pela lesão, uma incapacidade temporária e absoluta para o trabalho de, pelo menos 30 dias, ou a morte;
- perturbação considerável no nível e na qualidade de vida da vítima (ou, no caso de morte, do requerente, por exemplo os pais da vítima);
- não tenha sido obtida a reparação do dano em execução de sentença condenatória relativa a pedido deduzido ou, se for razoavelmente de prever que os danos não venham a ser reparados.
O direito à indemnização mantém-se, mesmo que não seja conhecida a identidade do autor ou (por outra razão) ele não possa ser acusado ou condenado.
Um retrato-robô dos agressores
Segundo fonte da Polícia Judiciária (PJ), “as motivações para este tipo de criminalidade estão normalmente relacionadas com encontros pessoais fortuitos, ou não, entre indivíduos afetos a grupos rivais, quase sempre relacionados com outras atividades criminosas de caráter organizado, como seja o tráfico de estupefacientes”. Não seria o caso dos ex-fuzileiros que assassinaram o agente da Polícia, mas o contexto das agressões tem também aquela realidade como mote.
O que aconteceu a Fábio Guerra está relacionado com outra tipificação que a Polícia define: algumas ocorrências resultam de altercações e conflitos entre indivíduos que se iniciam no interior dos estabelecimentos de diversão noturna e acabam por ter um desfecho mais grave à saída ou mesmo já no exterior”, continua a mesma fonte da PJ. Essas altercações são acompanhadas da “prática de agressões graves, maioritariamente com recurso à utilização de armas de fogo, que muitas vezes os agressores buscam no interior dos veículos automóveis que estão a utilizar e estão normalmente estacionados nas proximidades dos estabelecimentos de diversão noturna”.
E, é claro, há outro combustível fundamental para a violência: “O consumo de bebidas alcoólicas e de substâncias estupefacientes é um fator catalisador deste tipo de confrontos violentos.”
Segurança privada pode ser problema
Há ainda que contar com elementos que, supostamente, deveriam zelar pela proteção destes locais, os seguranças privados à porta de discotecas e de outros estabelecimentos. Por vezes, eles são intervenientes nas rixas, “ora tomando parte ativa nas agressões, ora facilitando a fuga dos agressores, ou ainda adotando comportamentos tendentes a atrasar, ou mesmo inviabilizar, o acesso a imagens de videovigilância dos estabelecimentos por parte das autoridades policiais”. A Polícia sugere, ainda, que “seria útil a obrigatoriedade de os proprietários ou gerentes dos estabelecimentos garantirem um serviço policial remunerado no exterior do estabelecimento, como sucede com frequência em áreas comerciais”. De qualquer modo, a Polícia assegura que problemas com este tipo de profissionais são escassos.
A defesa é sempre legítima?
Voltando ao caso de Fábio Guerra, o conceito de legítima defesa foi invocado. Mas não é linear. A lei define-a como um meio necessário para repelir uma agressão. Ou seja, a vítima tem o direito de resistir e de se defender, desde que vise repelir uma agressão que seja atual e ilícita. Mas existe um requisito que pode suscitar algumas dúvidas, uma espécie de zona cinzenta na aplicação do direito: é crucial perceber se o meio utilizado para repelir a agressão é idóneo à defesa. Ou seja, se é proporcional – se alguém, por exemplo, matar o agressor quando está a ser ameaçado por uma arma de fogo e lhe dá um tiro para salvar a própria vida, não existe, em princípio, excesso de legítima defesa porque os meios utilizados não são desproporcionais. Se recebermos uma chapada e ripostarmos com um tiro sobre o agressor, a proporção da defesa – e o resultado, a morte de quem agride – já não será equilibrada.
Por isso, um tiro como reação a uma estalada não será, em princípio, considerado uma ação em legítima defesa. O conceito de legítima defesa é aferido pelo tribunal caso a caso, uma vez que os critérios de avaliação, embora restritos, poderão cair, como dissemos, numa zona cinzenta. Compete, pois, à vítima provar que os meios de defesa adotados eram a única forma adequada para afastar a agressão, ou seja, eram a única forma de defesa possível. No caso do crime dos ex-fuzileiros, além de as vítimas estarem a tentar terminar uma situação de violência, a resposta foi muito desproporcional. Por isso, o argumento da legítima defesa não foi aceite pelo tribunal.
Para a obtenção de provas, poderá ser necessária a realização de exames médico-legais que servem para recolher sinais da agressão: arranhões, feridas, nódoas negras ou outros vestígios deixados no corpo da vítima, nas suas roupas ou nos seus objetos. Por norma, estes exames são realizados no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, embora também possam ser realizados numa das suas delegações.
Graus de violência têm penas diferentes
Outros crimes desta natureza têm uma moldura penal diferente, pela diferença de gravidade. O crime de ofensa à integridade física simples, como dar uma bofetada em alguém, por exemplo, pode significar uma pena de prisão até três anos ou pena de multa. O procedimento criminal depende de queixa, exceto quando a ofensa é cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas. A lei contempla também o crime de ofensa à integridade física grave – por exemplo, privar a vítima de importante órgão ou membro, desfigurá-la de um modo grave e permanente ou provocar-lhe perigo para a vida –, que é punido com pena de prisão de dois a dez anos.
Mais segurança nas discotecas
A lei, entretanto, estreita a malha no que respeita à segurança nos espaços de diversão noturna. Fazem parte da galeria de medidas as seguintes:
- sistemas de videovigilância com captação e gravação de imagem;
- equipamento de deteção de armas, objetos, engenhos ou substâncias de uso e porte legalmente proibido (ou que comprometam a segurança de pessoas e bens);
- serviço de vigilância com recurso a segurança privado (segurança porteiro);
- existência de um responsável pela segurança;
- mecanismo de controlo de lotação.
O sistema de videovigilância deve cobrir todas as zonas de acesso ao estabelecimento, independentemente de serem de uso dos clientes: entradas e saídas e parques de estacionamento privativos. Até porque muitas altercações têm início ou continuam no exterior dos espaços. Deve também permitir a identificação de pessoas nos locais de entrada e saída das instalações. Por fim, deve ainda permitir o controlo de toda a área que se destine aos clientes, exceto as instalações sanitárias.
As forças de segurança podem visionar, em tempo real, as imagens recolhidas pelos sistemas de videovigilância previstos nos centros de comando e controlo, sempre que as situações o justifiquem. A preservação das gravações de imagens recolhidas pelos sistemas de videovigilância é obrigatória, da abertura ao encerramento do estabelecimento. As imagens devem ser conservadas pelo prazo de 30 dias contados desde a captação. Ao fim desse período, devem ser destruídas no prazo máximo de 48 horas. Mas há mais: sempre que esteja em causa a segurança e o risco das pessoas, a GNR ou PSP podem determinar o encerramento provisório da discoteca, na sua totalidade ou em parte, enquanto a situação se mantiver.
O encerramento total também pode ser determinado, e ainda a redução do horário de funcionamento, caso o estabelecimento viole a ordem, a segurança ou a tranquilidade públicas.
A noite pode ser tão divertida quanto traiçoeira: prevenir comportamentos violentos ou rixas é fundamental.
|
O conteúdo deste artigo pode ser reproduzido para fins não-comerciais com o consentimento expresso da DECO PROTeste, com indicação da fonte e ligação para esta página. Ver Termos e Condições. |
