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Carlos Neto: "A maior pandemia é o número de horas que estamos sentados"

O sedentarismo e a falta de autonomia das crianças portuguesas preocupam Carlos Neto, professor catedrático e especialista em desenvolvimento motor. A culpa, revela, não é somente do tempo que passam à frente dos ecrãs. Crítico de uma escola que tem esquecido o corpo, é perentório: "O mundo mudou e a escola também tem de mudar."

18 setembro 2023
Carlos Neto

António Pedro Santos/Global Imagens

A crescente atenção que crianças e adolescentes dão aos dispositivos tecnológicos nos recreios escolares foi o ponto de partida para uma conversa com Carlos Neto, professor catedrático jubilado da Faculdade de Motricidade Humana. Especialista em desenvolvimento motor, destaca a importância da brincadeira "na escola, na comunidade e na família" para a "construção emocional, cognitiva, motora e social" das crianças.

Sublinha que o "movimento do corpo é o arquiteto do cérebro", mas que aquele tem sido sistematicamente esquecido, nomeadamente na escola, onde é grande o desequilíbrio entre atividade física e tempos formais. Defende, por isso, a desconstrução da escola "das quatro paredes", em que a busca do conhecimento seja feita de forma ativa e não "atrás de uma mesa". 

Como é que a relação das crianças com os dispositivos digitais altera a forma como se percecionam e percecionam o meio que as envolve? 

As crianças estão a ser bombardeadas sensorialmente. É necessária uma reflexão sobre a forma como estão a ser seduzidas e capturadas para viver uma grande parte do seu quotidiano frente aos ecrãs, passando muitas horas sentadas, completamente hipnotizadas. As crianças passam mais tempo a viver o corpo na ponta dos dedos do que a mexê-lo na sua totalidade! A principal consequência de tudo isto são as experiências que deixam de fazer por estarem frente a estes ecrãs. E eu gostava de me centrar neste ponto: que experiências são essas? Brincadeiras, jogos, atividades físicas, atividades sociais, resolução de conflitos, essencialmente em momentos informais, mas também em momentos formais... Hoje há um desequilíbrio muito grande entre o contacto físico, corporal, e o contacto online. Não quer dizer que seja tudo mau nos dispositivos digitais, mas só através de sentimentos e emoções é que a aprendizagem se torna significativa. 

Como se reflete este comportamento na escola?

Eu tenho andado pelo País todo a visitar escolas, e é verdadeiramente inaceitável verificar como os corpos estão completamente aprisionados, estão amarrados, estão escravizados pelos ecrãs lúdicos. Portanto, temos de ser capazes de reinventar uma maneira de seduzir as crianças para serem ativas, combaterem esse sedentarismo, terem relações sociais, resolverem conflitos. Além disso, serem capazes também de lidar com um aspeto que eu considero essencial, que é a frustração e o tédio. Isso é essencial para se crescer: não ter tudo pronto e tudo na mão.

Brincar e socializar no intervalo pode ter um efeito direto no comportamento na sala de aula?

As experiências que temos feito na Faculdade de Motricidade Humana têm demonstrado que as crianças, quando têm uma vivência nos espaços exteriores mais ativa, com maior estimulação das suas competências motoras, têm mais capacidade de concentração dentro da sala de aula. 

Concorda com a petição que reivindica a proibição de telemóveis nos recreios?

Eu acho que esta regulamentação pode ser um processo democrático, e o processo mais democrático é estabelecer as regras com os alunos. Acho que se deve fazer um esforço para sentar as crianças em casa ou na escola e, em conjunto, estabelecer limites. Que não se proíba e que não se faça uma regulamentação rígida, mas que se faça um contrato social com as crianças, com os jovens, com a comunidade educativa e com a comunidade familiar para que exista a perceção, por parte de crianças e jovens, de que têm de ter regras, tal e qual como têm na alimentação e no sono. Mas também não podemos, de uma forma obsessiva, estar a falar dos recreios das escolas como o único local onde as crianças estão prisioneiras dos ecrãs, e não falar do resto das suas vidas. Deveríamos fazer uma reflexão muito aprofundada de como os adultos são maus exemplos para os próprios filhos. Há muitas crianças que desejariam dizer aos pais: “Larga o telemóvel e brinca comigo.” Portanto, esta petição é oportuna, mas será uma excelente oportunidade para começar a discutir outros problemas que envolvem a comunidade escolar, a comunidade familiar e a comunidade em si mesma.

Que problemas são esses?

Eu diria que a maior pandemia que estamos a viver neste século é o número de horas que estamos sentados, e não há consciência social desta situação. O sedentarismo tem tido um aumento muito preocupante. Há crianças a passar dez horas na escola, sentadas, sem terem grande movimento e, por outro lado, com um desequilíbrio muito grande entre atividade física, tempos formais e tempos informais. Hoje, já não se brinca em casa, já não se brinca na rua, já não se brinca na escola. Diminuiu-se essa dimensão e, portanto, esta falta de experimentar o corpo tem sido extremamente penalizadora para as crianças. Deveríamos acabar com esta visão cartesiana – corpo para um lado, cérebro para o outro. Por isso, a petição para a limitação dos ecrãs deveria ser acompanhada de uma outra discussão: os espaços exteriores das escolas são sedutores e adequados ao desenvolvimento das crianças? Permitem aventura e aprendizagem? Qual é o estado dos espaços exteriores das escolas, em Portugal? Qual é a conceção de recreio e de sala de aula?

Como é a sua conceção ideal do recreio e da sala de aula? 

Penso que é necessário olhar para a escola de uma forma nova, de uma forma diferente, melhorar os espaços exteriores das escolas, valorizá-los de um ponto de vista lúdico. Os espaços exteriores têm de ter valor de risco, as crianças deviam chegar à escola e estar entusiasmadas porque vão subir às árvores. Mas há escolas que têm nos seus regulamentos proibições de as crianças subirem às árvores, fazerem pinos à parede, rodas, jogarem às escondidas, jogarem à apanhada... Isto é um crime! Proíbem-se os telemóveis, mas proíbem-se também brincadeiras que são absolutamente fundamentais, porque dão um valor de personalização, um valor de identidade, de pertença, às crianças. Temos excelentes obras de arquitetura escolar em Portugal, mas as crianças ficaram pior, porque os espaços exteriores foram minimizados, foram esquecidos, foram higienizados na perspetiva adulta e não pensados na perspetiva da criança. Portanto, é preciso perguntar se esses espaços são sedutores para as crianças e se esses espaços convidam as crianças a saírem dos ecrãs e a voltarem às brincadeiras. Além disso, também ainda ninguém me explicou, de um ponto de vista científico e pedagógico, qual é o tempo ideal de recreio: dez minutos? Vinte? Meia hora? Uma hora? Qual é o critério científico para a atribuição de um tempo, qual é o conceito de intervalos escolares? Ninguém me sabe dizer. Há crianças que nem têm tempo de ir ao WC, nem têm tempo para comer uma sandes, e já está a campainha a tocar…

O próprio conceito de escola tem de mudar?

Sim. Deveríamos ter a capacidade de perceber que o mundo mudou e a escola também tem de mudar. Deveríamos fazer algumas perguntas pertinentes de como devemos descentralizar as políticas educativas, analisar a diversidade de crianças e jovens em função das suas idades e em função das escolas nos seus meios culturais. Temos de fazer uma conexão, que é urgente, entre a família, a escola e a comunidade. Hoje, as autarquias já têm delegação de competências e, portanto, podem apoiar projetos educativos interessantes em qualquer contexto escolar.

Precisamos de desconstruir a escola das quatro paredes – aprende-se em muitos locais, e o espaço exterior também é um deles. Este espaço também é o espaço da comunidade, a escola tem de se estender para além dos muros, a escola tem de ir lá para fora com múltiplos modelos, com múltiplas formas de ir buscar conhecimento. E um outro aspeto que também é essencial é que a avaliação não pode escravizar a aprendizagem dos alunos. E isso, do meu ponto de vista, passa por mudar o paradigma para uma perspetiva mais ativa do corpo, poder aprender por observação, por exploração, por pesquisa, por intervenção, por coleta de dados. É buscar o conhecimento de uma forma ativa e não estar sentado na cadeira atrás de uma mesa. 

E depois levar também a escola para o espaço urbano, para o espaço comunitário, onde há um património artístico, físico e cultural, e para o espaço da natureza. Portanto, eu tenho uma conceção de que na escola não entra só o cérebro, entra o corpo todo. O conhecimento não se busca apenas dentro da sala de aula, eu costumo dizer que comparar a sala de aula com o espaço exterior é como comparar uma banheira com o oceano.

Já temos bons projetos educativos em Portugal, mas também diria que há uma assimetria muito grande entre países do norte e do sul da Europa. No norte, as crianças andam, em média, quatro horas lá fora, em atividades na floresta, na natureza, a fazer brincadeiras, confrontando-se com o risco, etc.; em Portugal, que é um oásis, cai um pingo, e vai tudo para dentro cheio de medo.

Esse medo não é só da escola, correto? É também dos pais e da própria sociedade.

Claro. Eu costumo dizer: nas primeiras idades, as crianças precisam de colo, de proximidade, de alimento e de afeto. Quando se põem de pé e começam a andar e a correr, precisam é de distância, precisam de autonomia. Educar é dar distância. Os pais não são donos dos filhos, nem os professores são donos dos alunos, portanto, há aqui uma prioridade que tem de ser dada à brincadeira livre, ao contacto com a natureza, à relação com o risco. A vida é um risco, não há risco zero, e as crianças que não têm contacto com o risco ficam diminuídas no seu desenvolvimento.

Hoje, a escola da rua está em vias de extinção: as crianças não podem sair à rua sozinhas, não podem sair depois de escurecer, andam vigiadas, conduzidas, vão de automóvel para a escola. Hoje não se veem crianças no espaço público, veem-se cães a passear e a ir à rua, mas não se veem crianças. Portanto, como é que vamos revalorizar cidades educadoras, cidades amigas das crianças, de modo que possam reocupar o espaço público como local de encontro, de desafio, de jogo e de entretenimento?

Porque é tão importante brincar? O que aprende uma criança com a brincadeira e o jogo? 

O brincar é um comportamento ancestral, um comportamento insubstituível, utilíssimo para o nosso desenvolvimento. Nós nascemos imaturos, temos um longo processo de caminhada até conseguirmos a maturidade, e brincar é um comportamento exploratório. Por outro lado, assegura a nossa sobrevivência – todos os animais, nos primeiros níveis de desenvolvimento, têm uma grande necessidade de brincar. O brincar é exatamente esta construção de uma capacidade adaptativa, de uma capacidade criativa que só é possível no mundo natural. No mundo natural, porquê? Porque tem mais vantagens na relação com os objetos, na relação com o próprio corpo, na relação com os outros e com o mundo, eixos absolutamente essenciais.

Esse brincar faz-se de várias maneiras, a principal das quais é mexer o corpo, é ser ativo. Os seres humanos são corpóreos, têm uma grande necessidade biológica de mexer o corpo, de despender energia, e o brincar é uma dessas formas. Infelizmente é muito secundarizada, independentemente de fazer parte do artigo 31.º da Declaração Internacional dos Direitos da Criança. Desvalorizar o brincar na escola, na comunidade e na família não tem grande sentido, quando sabemos que é essencial para a construção emocional, cognitiva, motora e também social. O movimento do corpo é o arquiteto do cérebro, não se pode perder esta ideia.

As crianças têm de ter um tempo informal, que permita que os comportamentos que são naturais, espontâneos, como a brincadeira livre, sejam valorizados. Só assim é possível desenvolver essa capacidade criativa, adaptativa, a capacidade de sobrevivência, o confronto com a adversidade, a regulação emocional, que é das coisas mais importantes. Repare, hoje, é tudo dado e tudo pronto na hora, as crianças não resolvem problemas, não sabem atar os sapatos aos sete anos... Esta iliteracia motora é de tal ordem que as crianças sabem todas ler, contar, escrever, mas não sabem correr, não sabem saltar, andar de bicicleta, andar de skate, fazer equilíbrio. De facto, tem de haver aqui coerência entre as competências cognitivas, as competências sociais, as competências digitais, mas também as competências motoras. Mas o corpo está esquecido, esta é a minha conclusão.

 

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