Nuno Boavida: “Temos de criar uma identidade menos baseada no trabalho“

Publicado a 28 janeiro 2025

Podemos confiar quase todas as atividades humanas à máquina? Há riscos ainda desconhecidos no horizonte, defende Nuno Boavida, que estuda a relação do trabalho e a inteligência artificial. É preciso criar regras e repensar a nossa relação com o trabalho.

Diana Tinoco/4See Entrevista Nuno Boavida

Inteligência artificial e trabalho intelectual

“Diria que estamos perante um fenómeno de transformação social de grande relevo. A maioria dos autores aponta para uma grande transformação do trabalho ligada ao conhecimento, mas ninguém sabe ao certo dizer qual é a profundidade dessa revolução.”

Podemos equiparar a revolução da inteligência artificial à revolução industrial e à descoberta da roda?

Não é uma resposta de sim e não. Diria que estamos perante um fenómeno de transformação social de grande relevo. A maioria dos autores aponta para uma grande transformação do trabalho ligada ao conhecimento, mas ninguém sabe ao certo dizer qual é a profundidade dessa revolução. Posso dar um exemplo, o caso dos investigadores. O acesso a boas ferramentas de inteligência artificial online permite reduzir o número de horas que um investigador tem para realizar o seu trabalho.

Sente isso no seu trabalho?

Já noto grandes diferenças. Penso que é uma questão de tempo. Não estamos a falar de décadas, estamos a falar de anos, para podermos ter uma ferramenta que é aplicável de uma forma fidedigna a quase todos os investigadores. Para falar dos jornalistas, diria que o número de horas que serão precisas para fazer a investigação, a preparação, a escrita, poderá ser significativamente reduzido.

Terão de se reinventar?

No meu entender, irá levar a uma redução das horas trabalhadas por ano e, por isso, os jornalistas vão ter de reinventar também a sua própria profissão e forma de estar, se calhar, até na sociedade. Há outro tipo de coisas que não são feitas hoje que os jornalistas podem fazer. Todo o trabalho da máquina tem de ser sempre muito bem supervisionado: é preciso olhar à vírgula, porque é o suficiente para ter uma interpretação diferente. E a máquina não tem essa perceção. Mas também todo o trabalho de investigação que está por detrás de um artigo pode ser feito de outra forma, porque as ferramentas de investigação também mudaram e são muito mais profundas. E há também a ligação à sociedade, que a máquina não consegue fazer, no descobrir quem são as fontes.

Essa substituição não se aplica a todo o trabalho intelectual?

Vejamos, por exemplo, um advogado. Há muito trabalho, mais administrativo, que pode ser perfeitamente automatizado. Se calhar, a última defesa em tribunal tem de ser feita com alguma criatividade, mas também a máquina consegue ser criativa. Mas havia muita coisa do dia-a-dia que era sempre mais do mesmo – pegavam num template e quase só mudavam os números. Tudo isso pode ser feito por uma máquina, deixando cada vez menos horas de trabalho para os advogados.

A inteligência artificial vai radicalizar ainda mais essa necessidade de se confirmar factos a toda a hora?

Sim, porque a distorção fica amplificada. Qualquer indivíduo em qualquer canto do Texas pode alterar o desígnio de umas eleições. Chamo a atenção para o que aconteceu na Roménia, que quase não foi falado em Portugal. Tiveram de anular umas eleições porque algum ator estatal conseguiu projetar um indivíduo de extrema-direita que ninguém conhecia. Que ninguém conhecia, atenção, não estamos a falar de um Trump, que toda a gente conhece. O Tribunal Constitucional anulou as eleições e elas vão ter de ser repetidas, mas estamos a falar de um perigo existencial para as democracias. E acho que não estou a dizer nada de muito controverso. Não queria estar a falar especificamente de coisas que podem ser debatíveis, mas penso que é quase assumido que Trump terá feito uma tentativa de golpe de regime. Há aqui um papel que é absolutamente fundamental e que a máquina não pode fazer, bem pelo contrário, pode ampliar, distorcendo-a, tornando-a falsa. Mas é também uma espécie de híbrido entre o falso e o verdadeiro, não se sabe muito bem. E a questão de não se saber muito bem leva-nos a nós, cidadãos, a não podermos confiar em nada do que se lê, em nada do que se ouve, em nada do que se vê. Por uma questão de higiene mental, ou as pessoas se retiram do debate público, para não passarem a vida em coisas dúbias, ou então temos de nos fixar naqueles que são os media de referência e que nos garantem que profissionais pagos para estarem sempre em cima dos acontecimentos da vida pública são aqueles que nos dizem o que é verdade e o que é mentira.

Quem é Nuno Boavida?

Doutorado em Avaliação de Tecnologia pela Universidade Nova de Lisboa, coordena o projeto InteliArt, que avalia o impacto da inteligência artificial sobre o emprego em Portugal.

Repensar o futuro profissional

“Aquela ideia da nossa geração, de ter um emprego, uma carreira, tenderá naturalmente a esbater-se. Podemos fazer várias coisas ao longo da vida, podemos mudar de carreira.”
“A riqueza gerada deve ser, de alguma forma, reequilibrada e redistribuída pelos Estados, ou outro tipo de instituições. Quaisquer que sejam as forças existentes em Portugal e até na Europa, concordarão que não pode haver um Elon Musk por muito mais tempo.”

Fala de haver muito trabalho que se perde ou que se tem de adaptar a esta nova realidade. Que outros trabalhos vão surgir?

Simplificando, vai ser necessário, a quem mantém o posto de trabalho, adaptar-se à coexistência com uma máquina pensante, e que, em termos de utilidade, é equivalente a um ser humano, ou que o ultrapassa. As novas profissões são muito difíceis de prever. Penso que o importante é dar agora às camadas que estão a ser formadas a ideia de que o que estão a aprender é útil num determinado contexto como este, mas daqui a cinco anos pode já não o ser. Aquela ideia da nossa geração, de ter um emprego, uma carreira, tenderá naturalmente a esbater-se. Podemos fazer várias coisas ao longo da vida, podemos mudar de carreira. E por isso também seremos muito mais contributivos para a sociedade de uma forma que não tem de ser só produtiva, mas que pode estar associada a outro tipo de atividades.

E as gerações intermédias? Poderão ficar completamente desocupadas?

Essa pergunta é mais difícil... Acho que há muita coisa a fazer. Não se trata só de construir um quadro institucional, jurídico, que regulamente esta tecnologia emergente como a inteligência artificial. A Europa tem 20 anos de papel predominante no mundo sobre como regular esta nova tecnologia, mas devemos ter em conta que não há nenhuma empresa a sério na Europa a fazer isto, quem o faz são empresas que estão em Silicon Valley. Não estão propriamente sob o controlo, e nós não queremos ficar isolados numa guerra comercial. Coordeno um projeto, o InteliArt, que partia da premissa de que pode de repente aparecer um algoritmo de largo espectro que afete muitas áreas da economia e cause uma onda de desemprego gigantesca. As gerações intermédias [deverão sentir esse efeito] na área dos serviços. Podemos estar a precisar de 100 mil pessoas no comércio e, de repente, passar para 10 mil. E isto cria, não só em Portugal, mas no planeta todo, um desemprego maciço, que não é controlável pelas estruturas que existem. Cria uma perturbação ainda maior do que estas questões da migração com que estamos a lidar na última década. Enfim, um torpor nas sociedades que poderia levar a fenómenos de desagregação. Seria um quadro extremo e perigoso.

Diz que podemos imaginar várias ocupações interessantes. Mas de onde é que vem o nosso rendimento, se não houver trabalho?

Não há respostas fáceis. Na Europa, onde a social-democracia garante que as pessoas não caem num fosso de ausência de rendimentos, há um conjunto de instituições que poderão e deverão acolher quem está numa fase de transição. Há experiências na Finlândia, de rendimento mínimo garantido, e não me parece que se tenham dado mal. Essa seria a ideia de que uma sociedade coesa e fraterna irá permitir uma redistribuição de rendimentos para essas pessoas, que podem não ter um rendimento óbvio quando se virem perante esse desemprego. E também, enfim, voltamos a uma questão mais abrangente, que é esta economia, este supercapitalismo, onde meia dúzia de indivíduos controlam a riqueza quase toda do planeta. A riqueza gerada deve ser, de alguma forma, reequilibrada e redistribuída pelos Estados, ou outro tipo de instituições. Quaisquer que sejam as forças existentes em Portugal e até na Europa, concordarão que não pode haver um Elon Musk por muito mais tempo.

Simplificando, vai ser necessário, a quem mantém o posto de trabalho, adaptar-se à coexistência com uma máquina pensante, e que, em termos de utilidade, é equivalente a um ser humano, ou que o ultrapassa. As novas profissões são muito difíceis de prever.

Portugal e as novas e velhas formas de trabalhar

“Portugal irá sofrer com a inteligência artificial, tal como outros países. Em especial, por questões estruturais, como a literacia e as baixas qualificações.”
Entrevista Nuno Boavida
“Precisamos de imigrantes como de pão para a boca. Acho que sentimos isso no nosso dia-a-dia. Quando vamos a uma loja, percebemos que, sem imigrantes, estaria tudo fechado.”

Que cenários se podem prever para Portugal? Vamos continuar a ser um país de baixos rendimentos?

Acho que isso não vai mudar, pode até vir a agravar-se. Por exemplo, a Lufthansa Technics anunciou que vai abrir quatro mil empregos, penso eu, em Gaia, para engenheiros e para trabalhadores do conhecimento. São empregos ultraespecializados, porque é mais barato vir fazer aqui a manutenção dos aviões do que noutros locais. E aqui há, de facto, uma tranquilidade política e social que garante uma certa estabilidade. É uma âncora que temos. Vem pela negativa, mas é uma âncora. Mas Portugal irá sofrer com a inteligência artificial, tal como outros países. Em especial, por questões estruturais, como a literacia e as baixas qualificações.

E a fuga de cérebros poderá agravar essa situação?

Devido à capacidade de [os trabalhadores qualificados] se moverem por estas economias centrais na Europa, de repente ficamos sem mão de obra. Depois, daqui a seis meses, [com o regresso destes trabalhadores] já temos mão de obra outra vez. São fluxos muito difíceis de gerir em Portugal. Enfim, estas são as questões estruturais. Depois, temos também questões mais conjunturais, que é o aparecimento do Chega e destes fenómenos. Não sei se o fenómeno vai crescer ou se vai morrer, espero que vá morrer, mas se o quadro português é bom por ter aquela âncora de ligação às economias centrais na Europa, por outro lado, estas forças podem prejudicar, de uma forma clara, a economia e a sociedade portuguesa. Precisamos de imigrantes como de pão para a boca. Acho que sentimos isso no nosso dia-a-dia. Quando vamos a uma loja, percebemos que, sem imigrantes, estaria tudo fechado.

Voltando à questão da produtividade, podemos estar a caminhar para uma sociedade da semana de trabalho de quatro dias ou mesmo de três? Ou não podemos pôr as coisas nesses termos?

Podemos e devemos. Trata-se de criar identidade menos baseada no mundo do trabalho. Uma pessoa que só trabalha quatro dias por semana tem mais tempo para estar com os netos, com os filhos, para se dedicar aos hobbies que a motivam, de fazer trabalho de voluntariado, enfim... e outras atividades que não estamos já a ver. Se calhar, não vai haver gente extremamente rica, e, portanto, uma desigualdade social tão grande. Então, todos nós, se calhar, vamos estar mais ou menos a ganhar o mesmo, um pouco como nas sociedades nórdicas, mas desenvolvemos outras atividades que nos podem preencher muito enquanto seres humanos.

Isso lembra um conceito de que cada vez se fala mais, que é planificar as vidas longas... Se podemos ter várias atividades ao longo da vida, a libertação do trabalho vai facilitar isso?

Penso que sim. Poder usar essa experiência como a extensão de longevidade do ser humano e também enquadrá-la no tempo que começa a estar disponível para as outras gerações anteriores. E poder criar, como já existe em algumas sociedades, como a coreana ou a japonesa, uma economia que não é imediata, mas que pode apoiar outras partes da economia. E essas atividades, que estão hoje a crescer e a aparecer em torno do aumento da longevidade, podem também ser atividades que se conjugam com as gerações mais novas, porque os mais novos começam a ter um dia de semana livre. Portanto, podem, se calhar, manter laços interessantes, intergeracionais, por um lado, e economicamente também relevantes.

Os nómadas digitais são uma nova dimensão do trabalho. Mas não serão muito desenraizados? Como é que se enquadra isto?

Esse fenómeno ganhou, de facto, alguma expressão no mercado de trabalho português, até o legislador criou uns vistos especiais para eles. Penso que é um fenómeno que tenderá a crescer, tem a ver com a digitalização da nossa vida e a capacidade de fazermos tarefas à distância. O teletrabalho não é novo, vem já dos anos 50 e 60, na Califórnia, com os engenheiros informáticos, e por aí caminhou. Em Portugal aparece com alguma expressão quase só com a pandemia, mas nos outros países já era mais usual. Os nómadas digitais normalmente têm associada uma questão importante, que é a precarização do trabalho. Estes indivíduos conseguem, claro, nos primeiros anos manter uma rede de clientes que lhes permite viver, especialmente porque muitos deles não têm pessoas a seu cargo e, portanto, têm essa vida espetacular, de estar em Bali o ano todo. Mas, por outro lado, há várias fases da vida num trabalhador. Não há só essa em que uma pessoa é solteira, não tem filhos, não tem pais para cuidar, não está a pensar na reforma. Isto é, mais tarde, estes outros fatores começam a ter peso na vida e tem de haver um mecanismo que garanta uma solidariedade intergeracional que os nómadas digitais tendem a não valorizar muito, mas, à medida que os anos passam, que as décadas se acumulam sobre o nosso corpo, podem surgir outros fenómenos para os quais não estão preparados. Estou a lembrar-me de tendinites crónicas, perturbações físicas, perturbações mentais ligadas ao isolamento... E, se não vivemos numa sociedade com um sistema de algum conforto social, como são as sociedades europeias, o welfare state, pode ser difícil lidar com estas situações. Se se tem um filho a cargo, começa a ser mais difícil. Viver à la longue de clientes que existem nessas plataformas pode ser complicado, até porque à la longue tendem a estar mais isolados. Os mecanismos de criação de contactos e de troca para poderem ter um salário e manter um salário deixam de existir. Existem, naturalmente, encontros destes freelancers digitais, onde se conhecem uns aos outros, mas muitas vezes eles estão em competição e estão mais a partilhar preços do que propriamente a distribuir trabalho entre si. Portanto, a mim parece-me um fenómeno excelente para quem o vive, mas não pode levar a uma precarização do remanescente e da grande percentagem de pessoas que vivem num mundo de trabalho diferente.

Pensava-se que a última linha vermelha da inteligência artificial seria a criação. Estamos agora a falar de máquinas que criam. Não corremos o risco de deixar de ter qualquer atividade?

Acho que é uma pergunta muito difícil. Vamos iniciar agora em fevereiro um projeto, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas [Universidade Nova de Lisboa], chamado In and Out of the Box. No fundo, vamos contratar artistas que trabalhem com a inteligência artificial e tentar perceber, durante o momento de criação, até à forma final artística, como é utilizar a inteligência artificial e quão fundamental ela foi para o objeto final da arte.

Que cautelas devemos ter?

As cautelas têm que ver com fenómenos que nos escapam. Nós sabemos os riscos, que são conhecidos, e depois há aquilo a que chamamos os riscos desconhecidos. Não conseguimos antever o que é que a implantação deste software pode vir a criar. E é por isso importante haver princípios éticos definidos que, de alguma forma, transpareçam os valores das sociedades, que não são sempre iguais. Mas todos nós chegamos a um consenso sobre a clonagem, no sentido de não permitir a clonagem humana, e também podemos chegar a um consenso sobre a inteligência artificial. Mecanismos permanentes para estar em alerta têm vindo a ser criados, como o Observatório de Inteligência Artificial. Estamos a lidar com uma área que desconhecemos, e a única forma de o fazer é estarmos atentos, de preferência em consenso. É a necessidade de nos preservarmos que deverá prevalecer sobre todas as outras.

A inteligência artificial já pode ser comparada à inteligência humana?

Sim. E talvez, às vezes, será até melhor...

 

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