Gabriela Moita: “Seja por palavras, toque ou olhar, é grave invadir o outro”
O que define o assédio sexual? Gestos, palavras ou toques exigem consentimento de quem os recebe. Duas em dez mulheres dizem ter sido assediadas ou abusadas ao longo da vida. O que molda a psicologia do assédio? Gabriela Moita lança várias pistas.
Quando é que um gesto se torna assédio?
Se lançamos um piropo na rua, ou dermos um abraço a alguém que não está à espera desse abraço, ou enviarmos uma mensagem muito sugestiva, estamos em níveis diferentes de assédio? Quando e como se começa a considerar um gesto como assédio sexual?
É uma pergunta que não tem resposta e que está em discussão. As pessoas são todas diferentes, mas há uma questão absolutamente fundamental, é que a invasão do outro – seja ela como for, é sempre abusiva. Podemos ter vários níveis: é mais abusiva porque foi uma palavra? Porque foi um toque? Vai depender sempre de quem recebe. Para algumas pessoas, as palavras são mais agressivas. Para outras, o toque no corpo é mais agressivo, e podemos ainda falar de culturas, e também de classes sociais, de contextos... Esta classificação escalonada do que é mais grave não deve, sequer, ser feita. É grave invadir o outro. Ponto. Seja por palavras, seja pelo toque, seja através do olhar, sempre que se entra num espaço alheio, sem consentimento e sem pedido prévio, é agressão. E diria até que deveria mesmo ser crime, no sentido em que algumas pessoas não têm capacidade para se defender. E, quando falamos de assédio, o escalonamento entre a posição social das pessoas é previamente considerado. Normalmente, há um desnível de poder. E isto é ainda mais grave – já não é só o abuso sexual e moral, é também abuso de poder.
Há uma diferenciação entre assédio moral e sexual?
O assédio moral pode não ser sexual, no sentido em que não tem conteúdo sexual, mas é evidente que um assédio sexual não deixa de ser moral, porque há sempre esta invasão do outro.
No fundo, a chave é o consentimento.
A grande questão é o consentimento. Nada pode ser feito sem previamente perguntar. Também é preciso aqui algum cuidado, porque há situações, na nossa cultura, de abuso prévio. Quando falamos de assédio sexual, muitas vezes, e não é por acaso, estamos a pensar, normalmente, em perpetradores homens. Não gosto da expressão masculinidade tóxica, diria que a masculinidade é tóxica. E é tóxica para todos, porque não são só as mulheres que são alvo daquilo que é tóxico, são os homens. Porque os que correspondem à ideia de masculinidade, no sentido mais normativo do termo – ser capaz, ser bruto – são pouquíssimos. Mas são estes que detêm o poder, diria até que têm o poder da força, da falta de vergonha, porque têm o poder da psicopatia, porque correspondem a esta absoluta brutalidade que é esperada da masculinidade.
É uma categoria cultural?
Masculino e feminino são comportamentos sociais que são esperados por causa do sexo que temos e da representação que se tem e daquilo que a cultura espera. Tem de se comportar desta maneira, tem de ir para a guerra, tem de votar, tem de gostar de votar, tem de estar disposto a tudo e mais alguma coisa. Isto não existe. Só existe quando a pessoa está doente. E, portanto, são estes que adoeceram que conseguem ter esta toxicidade toda, que dominam tudo. A quantidade de homens e de mulheres que são agredidos, moral e sexualmente, é muito grande. Temos cerca de duas em dez mulheres que dizem que foram abusadas, ou assediadas. Praticamente não encontramos uma mulher que não tenha uma história para contar. E muitos homens também. Mas isto fazia parte da cultura. Alguns homens dizem “que problema é que isto tem?” Nem sequer têm a noção da gravidade disto. Por isso digo que só uma pessoa doente é que pode fazer isto. Doente do ponto de vista social. É aquilo a que chamamos sociopatia, que é a desadequação total do respeito pelo outro.
Muitas vezes as mulheres são consideradas as culpadas (ouve-se a expressão "ela estava a pedi-las”). Há inversão do ónus da culpa?
E, gravemente, às vezes até nos tribunais. Porque isso está escrito em alguns acórdãos. Lembremo-nos, nos anos 80, quando duas mulheres nórdicas foram violadas no Algarve: o acórdão descreve as roupas que traziam, que ninguém deveria andar com calções daquele tipo. De que estamos a falar? Até onde vai esta ideia?
Mas dos anos 80 até hoje não houve alguma evolução?
Felizmente, sim. Nos anos 80, a professora Lígia Amâncio fez um grande estudo sobre a questão do assédio sexual. Em 2015, o estudo foi replicado, pela professora Anália Torres e um outro conjunto de pessoas deste grupo. Baixou significativamente o número de assédios, sobretudo no local de trabalho. É um bom dado.
Quem é Gabriela Moita?
Psicóloga clínica, psicoterapeuta, terapeuta sexual e de casal, psicodramatista. Doutorada em Ciências Biomédicas.
As sequelas: depressão, ansiedade crónica, destruição da identidade
O que explica que as vítimas não denunciem essas práticas ou demorem muito tempo até que o façam, como aconteceu no movimento #MeToo? Que razões apontaria para este silêncio?
Medo, medo, medo, medo, medo. A seguir este papel, que é atribuído à vítima normalmente, e exatamente pela culpabilização. A incredulidade de que aquela situação está a acontecer paralisa. E a perplexidade: será que isto me está a acontecer mesmo a mim? Até tivemos aquela situação com uma jogadora de futebol, que foi apalpada, à frente do mundo inteiro. Uma das questões que surgiu foi: por que ela não reagiu imediatamente? O ato de abuso não depende da reação da vítima. Outro caso, de uma mulher que foi violada, agredida e deitada para a beira da estrada, que conseguiu ver a matrícula do carro do abusador e registou-a. Qual foi o argumento dos acórdãos deste caso? Não pode ter sido tão grave assim, porque ela ainda conseguiu ver a matrícula... isto, até dizer incomoda. Como é possível? Ou seja, o ónus da prova não podia ter sido mais evidente. Como é possível medir o mau sentir da vítima? Do que é que se está a falar? É completamente indignante. É uma vergonha. Que outra palavra podemos usar aqui?
Estamos a falar de casos que chegam aos tribunais. Mas há quem nem sequer apresente queixa. Pode ser por medo de retaliação de uma relação hierárquica que esteja estabelecida no caso?
Nesse contexto, habitualmente, é medo das represálias, é o medo de ficar sem emprego, e para ir a tribunal é preciso pagar. As custas são caras e muito altas, mesmo ganhando o valor que se tem de pagar, mesmo com a indemnização, o valor, como eu ouvi um advogado dizer, é pornográfico. Ou seja, a lei está lá, mas está tudo feito para que ela não seja usada, ou que possa ser usada de uma forma perversa. Os mecanismos para que ela possa funcionar ainda têm pouca força. É importantíssimo a vítima não ficar em silêncio. Poder falar com toda a gente o mais depressa possível: com os colegas, com os familiares... Até deve tentar denunciar o abuso na empresa, de preferência, por exemplo, através de mail. Fica ali o registo, se algum dia for preciso. Quanto mais se forem mantendo dados de prova, melhor.
A própria vítima consegue reconhecer o assédio, mesmo depois de ele ter ocorrido?
Tem muita dificuldade. Por isso é que muitas vezes leva tempo. Felizmente, cada vez mais, as pessoas vão tendo noção disto. Os media têm tido um papel importantíssimo, porque é preciso que se fale. E as redes sociais, neste sentido, têm feito um trabalho extraordinário. Ajudam muito, as adolescentes neste momento têm uma informação muito maior. E há muitas com projetos interessantíssimos. Vi recentemente um projeto de uma jovem de uma escola de Eindhoven [Países Baixos]: pediu a todos os abusadores para tirar uma selfie com eles. Fez o registo: foram centenas.
Os abusadores acediam a aparecer? Sentiam-se lisonjeados? Como é que ela lhes pedia as selfies?
Só para tirar uma selfie. Sentiam-se lisonjeados. Eles diziam-lhe as coisas mais incríveis e ela convidava-os a tirar uma selfie. E aconteceu com todos, dos mais velhos aos mais novos. Não lhe aconteceu nada de grave, só que eles também não estavam a perceber que estavam a ser todos registados.
Que possíveis sequelas podem ter as vítimas?
Muitas. Muitas vezes, o burnout não tem a ver com o excesso de trabalho. Tem a ver com a violência do que acontece lá dentro. E eu tive em consulta, muito poucas vezes, burnout só por cansaço. A saída do burnout é dificílima. O regresso ao trabalho é demoradíssimo, morosíssimo. É como se a pessoa estivesse a ser entalada numa porta de ferro enquanto está a trabalhar. E, quando sai do burnout, pode ter perturbações para o resto da vida: a desconsideração pessoal, a destruição da identidade, o estilhaçamento do sujeito. Nos locais de trabalho, isto é algo que vai acontecendo, é como se fosse uma tortura gota a gota, aumentando o nível de tortura até à destruição do tal sujeito. Portanto, pode ir da depressão à ansiedade crónica, à destruição da sua identidade, a um desgaste de tal ordem que há uma desidentificação com o próprio, à não-recuperação. É muito grave. E não são situações que se resolvem rapidamente.
E está a falar tanto de casos de pessoas que já saíram desse trabalho, como das que continuam, que não têm outra hipótese?
Infelizmente, em muitos casos é impossível sair. É quase como dizer, vamos ajudar uma pessoa a viver bem entalada numa porta de ferro. Claro que, se estes casos forem a tribunal, é outra caminhada e voltamos à mesma questão: a pessoa volta ao trabalho, ganhou, e o caso envolveu o chefe. Como é que vamos resolver isto? O patrão vai ser despedido? Não, vai preso. Ok. Foi preso. Pagou uma indemnização. A única coisa que faria sentido era não poder estar mais com esta pessoa. Mas é a fonte de rendimento. Esta pessoa tem uma família para cuidar. É complexo.
Nem mulheres, nem homens; pessoas
Temos falado muito das redes sociais e da vantagem que elas apresentam para denunciar casos, mas temos o reverso da medalha que é, nesta recente campanha eleitoral, muita gente a denunciar guerras culturais, esbanjamento de dinheiro público em políticas de género, e ainda, o muito mediático lançamento de um livro sobre o ressuscitar da figura da dona de casa...
Com algumas donas de casa presentes e a valorizarem. Mas, como sabemos, o machismo não está na cabeça dos homens, está na cabeça das pessoas. É uma doença social e, portanto, algumas mulheres têm isto na cabeça. Ou seja, correspondem aos papéis. Porque são os dois papéis. E há uma dinâmica entre um e outro.
Vamos poder deixar de ser homens e mulheres, vamos ser todos pessoas?
Para mim é, porque acho que nós somos mesmo verdadeiramente muito menos homens e mulheres e somos todos pessoas. Eu sei que muitas pessoas não gostam, sobretudo muitas mulheres não gostam que eu diga isto, mas ao sermos pessoas, nós podermos comportar-nos como quisermos.
Assim haveria menos assédio?
Desta maneira haveria, não tenho dúvida nenhuma. É que isto leva a outro respeito, claro. Menos assédio, menos agressão, menos morte, menos femicídio.
A masculinidade é tóxica. E é tóxica para todos, porque não são só as mulheres que são alvo daquilo que é tóxico; são os homens.
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