João Pereira dos Santos: “Estado deve dar edificado para habitação”

Publicado a 24 abril 2025

Mais construção, medidas para dar nova vida a prédios devolutos, licenciamento mais célere, e o próprio Estado dar o exemplo e ceder o edificado que não usa são algumas soluções para o complexo problema da habitação propostas por João Pereira dos Santos.

Luís Filipe Catarino/4See Entrevista João Pereira dos Santos

Uma tempestade perfeita, do lado da oferta e da procura

“Ou aumentamos os rendimentos, ou tentamos aumentar a oferta de casas para as tornar, em média, mais baratas. Ou então tentamos ter mais habitação pública que consiga ajudar as pessoas, sobretudo os jovens, à procura da primeira casa.”

Como explica que a habitação em Portugal, na compra e no arrendamento, seja a mais ou das mais caras da Europa? E que a tendência persista?

É uma conjugação de dois fatores. Do lado da oferta, temos tido muito pouca construção nos últimos anos. A reabilitação não é suficiente. A oferta pública é praticamente inexistente, com a exceção talvez de Lisboa, mas muito aquém do que é necessário. E, do lado da procura, temos tido uma procura muito grande por parte de pessoas de várias nacionalidades. Pessoas que estão à procura de casas muito caras, ou muito baratas, nas cidades, migrantes, investidores, migrantes laborais, mais pobres do que os portugueses. Mas também migrantes muito ricos, que têm procurado as nossas casas para investir. E se calhar não temos também sabido usar os proveitos desse investimento, para depois termos mais oferta ou uma melhor regulação, ou apostarmos em mais habitação pública. Uma tempestade perfeita, uma conjugação de dois fatores. Uma oferta que se tem mantido inalterada nos últimos anos e uma procura que tem aumentado muito. As famílias estão cada vez mais pequenas. Com alguns divórcios, também são precisas duas casas, em vez de uma.

O Barómetro da Habitação, do ISEG, revela que o aumento do preço das casas entre 2015 e 2022, em Portugal, foi de 90%, e na União Europeia, de 45 por cento. Como comenta?

É uma disparidade grande. Se fizermos o rácio em relação ao salário médio ou mínimo, se calhar esses aumentos ainda são maiores. Mas as médias escondem realidades muito diferentes. A realidade do interior é muito diferente da de Lisboa. Essas médias dizem-nos muita coisa em dois números, mas grande parte do problema da habitação é tentar tratar de forma igual coisas que são muito regionais. É preciso ter uma abordagem inteligente para problemas que são muitas vezes regionais ou até locais. A União Europeia esconde uma realidade muito grande. Por exemplo, Espanha não teve um aumento de casas tão grande porque tinha tido uma bolha imobiliária uns anos antes, de muita construção, que não tivemos. Algo que explica a pouca oferta em Portugal é o facto de o setor da construção civil, que era particularmente avançado, ter tido muitos empregados e uma pujança económica importante durante os anos da pré-crise. Com a crise financeira, ficou com 40% do setor. Isso depois paga-se no longo prazo. Outros fatores que aumentaram muito a procura em Portugal foi o turismo e a utilização de grande parte do stock habitacional para outros fins que não o da habitação.

Os portugueses têm o menor poder de compra no espaço europeu. Como resolver esta incompatibilidade entre rendimentos e custos da habitação?

É sempre um problema. Ou aumentamos os rendimentos, ou tentamos aumentar a oferta de casas para as tornar, em média, mais baratas. Ou então tentamos ter mais habitação pública que consiga ajudar as pessoas, sobretudo os jovens, à procura da primeira casa. O Estado tem um papel muito importante em ajudar os jovens que querem ir para a universidade. É muito importante que nenhum jovem, principalmente os mais capazes e inteligentes, fique privado de estudar na melhor universidade por não conseguir pagar a habitação numa grande cidade, como Lisboa, Porto ou Coimbra. Não sou necessariamente favorável a baixar os impostos, nem aos mais jovens. Sou mais favorável a que o Estado dê o exemplo para transformar rapidamente o seu edificado, que muitas vezes está abandonado no meio das cidades, para habitação e, sobretudo, para habitação estudantil. Que, em parceria com privados, ou da maneira mais célere possível, utilizando os fundos disponíveis, passe esse edificado para arrendamento ou até para venda, para tentar aumentar a oferta. É importante avaliarmos o que aconteceu com as medidas de apoio aos jovens. Suspeito que grande parte foi apenas capturada por quem estava a vender.

Quem é João Pereira dos Santos?

Doutorado em Economia pela Nova School of Business and Economics. Professor auxiliar no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG). Investigador no Queen Mary University of London.

É preciso ter cuidado com a lei dos solos

“É preciso ter muito cuidado com o que se pode fazer em termos de regulação ambiental. Não podemos abrir a porta para estragar também a galinha dos ovos de ouro em muitas coisas, como o turismo ou o ambiente.”
Entrevista João Pereira dos Santos
"Temos de nos lembrar que Portugal é um país de proprietários de casas. E é um país em que têm um poder de voto muito, muito grande. Ou seja, é muito difícil assustar proprietários de casas e isso não ter uma consequência para os políticos.”

As câmaras de cidades com universidades têm acenado com a construção de mais residências universitárias. São suficientes?

São poucas. É um caminho em que podemos percorrer mais. No fundo, para tentar dar condições, principalmente aos jovens de contextos socioeconómicos mais desfavorecidos e àqueles com grande potencial, para virem estudar para as melhores faculdades. É um investimento brutal no futuro.

Havia uma parcela do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para o edificado de construção, para habitação pública...

Sim, e também para reabilitação. Só que foi feito numa altura em que os preços da construção e dos materiais estavam muito abaixo do que estão hoje. O PRR foi, em grande parte, planeado antes da guerra da Ucrânia, que fez aumentar o preço de muitas matérias-primas. É insuficiente. Estamos muito atrás de outros países europeus em termos de habitação pública. Achámos, durante vários anos, que os juros baixos e o mercado iriam resolver o problema, mas temos de saber usar outras maneiras o mais depressa possível, como o Estado utilizar os seus edifícios para a habitação.

Isso liga à lei dos solos, uma forma de abrir o leque de mais terreno para construção. Ela pode levar à descida dos preços ou a mais especulação?

As duas coisas. Mas tenho muitas dúvidas que isso funcione em sítios como Lisboa. E vai demorar. É preciso ter muito cuidado com o que se pode fazer em termos de regulação ambiental. Não podemos abrir a porta para estragar também a galinha dos ovos de ouro em muitas coisas, como o turismo, o ambiente, etc. Temos de ter muito cuidado com o que é que essas leis permitem ou não. Grande parte do problema em Portugal está relacionado com o tempo que as licenças demoram e sobre as quais temos muito poucos dados para fazer o diagnóstico. Temos dados mícro para saber algumas coisas, mas ainda nos falta a granularidade. E onde falta em grande parte é na oferta. Porque é que há câmaras municipais que demoram dois anos a dar um parecer para se construir um novo prédio? Ou que demoram anos e anos para deixar a reabilitação urbana de algum prédio edificado? Aí, a lei dos solos pode ajudar a tornar as coisas mais transparentes, menos burocráticas, muito mais rápidas. Sabe-se mesmo muito pouco sobre o papel do licenciamento camarário. Não sabemos qual é o tempo médio, temos uma ideia de que é mais rápido se forem as grandes empresas de arquitetura a fazer certos serviços, mas essas empresas estão muito vocacionadas para um segmento mais caro, que não vai resolver o problema da classe média. Temos de ser muito mais rápidos. Estamos a pôr o foco em alargar o espaço. Acho que pode existir um foco em permitir no espaço que já está edificado. Temos de ser muito mais rápidos a lidar com devolutos, com problemas de heranças… Isso é parte de regulação que o Estado pode ajudar muito e que custa pouco. E é muito mais rápido do que construir do zero em muitos sítios.

Porque não se age sobre os devolutos?

Acho que houve algumas tentativas, como aumentar o IMI para prédios devolutos, e depois voltou-se atrás com a discussão do Mais Habitação, ainda no anterior Governo. Mas porque não se faz mais? Temos de nos lembrar que Portugal é um país de proprietários de casas. E é um país em que têm um poder de voto muito, muito grande. Ou seja, é muito difícil assustar proprietários de casas e isso não ter uma consequência para os políticos, que são muitas vezes racionais nas escolhas. Acho que é difícil, porque o sistema de justiça não funciona tão rapidamente quanto queremos. E porque onde existe um grande problema é no licenciamento camarário. É isso que encrava muito a nova construção, a reabilitação e o lidar com litígios.

Grande parte das casas são compradas com crédito à habitação. Se, a seguir a esta descida de juros mais recente, houver uma nova subida, crê que se instale mais uma crise, mais pessoas despejadas?

Não temos visto o número de non-performing loans [prestações de empréstimos que deixam de ser pagas pelo cliente bancário] aumentar particularmente nos últimos tempos. A decisão de deixar uma casa é de último recurso. As famílias sabem que as casas têm vindo a valorizar, portanto, tentam mantê-las o máximo possível. Não estou a dizer que não vejamos nos próximos tempos esse número aumentar. A ideia que temos é que os juros vão baixar, mas ninguém sabe muito bem o que vai acontecer com as guerras e do outro lado do Atlântico… É sempre um risco. Pagar uma casa implica uma taxa de esforço muito elevada, e qualquer pequeno choque pode ter efeitos muito negativos. Não gosto de fazer previsões, os economistas são péssimos a fazer previsões, mas todos os sinais parecem apontar para um aumento da procura. A oferta não tem conseguido responder. A habitação é um problema de oferta e procura. É um bem escasso e finito. Todos esses movimentos vão levar a que o preço aumente.

O barómetro, de setembro de 2023, identificou que seis em cada dez famílias tinha dificuldade em pagar casa. O cenário piorou ou vai piorar?

Desde essa altura, vimos um aumento muito considerável das taxas de juros e, mesmo assim, os non-performing loans, felizmente, não aumentaram muito. As taxas de juro desceram nas últimas cinco edições seguidas do Banco Central Europeu. Isso demora algum tempo a chegar à economia real, mas tem tido efeitos positivos. Mas ninguém sabe o que vai acontecer na próxima reunião, o que é que o Trump vai decidir sobre tarifas… É muito difícil fazer esse tipo de previsões. Foram tomadas, desde a última crise, uma série de medidas macroprudenciais para tentar evitar riscos sistémicos e para que o sistema bancário esteja muito mais preparado para lidar com estes problemas. A Europa, se calhar há muitos, muitos anos, não tinha um desempenho consistente melhor do que os Estados Unidos durante várias sessões bolsistas. Os investidores, principalmente, gostam de alguma previsibilidade nas suas decisões, e o contexto diplomático, internacional, económico tem sido muito difícil para que consigam fazer as suas previsões e decisões de uma maneira minimamente racional.

Há uma subida de preços nos grandes centros urbanos. Mas no interior os preços também dispararam. Porquê?

Houve um crescimento muito grande nos centros das cidades, que se foi alargando para as periferias. Aumentar a oferta não é necessariamente construir muito mais casas no centro da cidade. É também tentar reduzir o número de devolutos e construir mais alto em alguns sítios. Uma parte muito grande da solução para o problema da habitação, se calhar, das mais rápidas, é permitir que as pessoas vivam numa área maior, e isso só é possível se o sistema de transportes funcionar. Em muitas cidades europeias, existem movimentos pendulares. Agora, é preciso ter transportes rápidos, previsíveis. E não é só movimentos para o centro da cidade, mas também movimentos circulares. Os transportes têm de ser pensados não só para atrair toda a gente para o centro de Lisboa, mas para permitir que a atividade económica exista nas zonas à volta.

O PRR foi, em grande parte, planeado antes da guerra da Ucrânia, que fez aumentar o preço de muitas matérias-primas. É insuficiente.

Mercado do arrendamento precisa de mais estabilidade

“É preciso dar confiança aos dois lados de que, se existirem problemas, eles vão ser resolvidos de maneira justa e rápida.”
Entrevista João Pereira dos Santos
“Se não existirem medidas rápidas e regulares, acho que os preços vão continuar a aumentar.”

Tem-se falado também em incentivar o mercado do arrendamento. É possível? De que forma?

Acho que a maneira mais eficaz é tornar o sistema de justiça mais célere a decidir. É preciso dar confiança aos dois lados de que, se existirem problemas, eles vão ser resolvidos de maneira justa e rápida. Há o exemplo do que aconteceu em São Francisco, quando se congelou as rendas. O que sabemos é que isso beneficiou quem estava dentro do mercado. As pessoas que arrendavam beneficiaram, porque não viram os preços aumentar, protegeram-se, mas à custa de todos aqueles que estavam a tentar entrar no mercado. E ainda mais grave, ou tão grave quanto isso, fez com que a oferta se retraísse, fez com que muitas pessoas que estariam dispostas a arrendar as suas propriedades ou o seu bem imóvel no mercado de arrendamento, pensassem duas vezes.

Mas, também no mercado de arrendamento, os preços são altíssimos…

Mais uma vez, é a oferta e a procura. E, se não existe oferta, se não existe confiança… Podemos, por exemplo, dizer às pessoas que, se tiverem a sua casa durante três ou quatro anos num mercado de arrendamento acessível, vão pagar menos impostos. Mas, se as pessoas não confiarem que não vão conseguir resolver pelo sistema judicial, se o inquilino não pagar ou se houver alguma disputa, então, se calhar, à partida, preferem pôr no mercado mais paralelo ou até no mercado de curta duração. É preciso dar previsibilidade.

Que cenário prevê para os próximos anos?

Se Portugal se mantiver um país seguro com boas ligações aéreas, etc., se continuar com alguma previsibilidade em termos fiscais e diplomáticos, de vistos, e se, ao mesmo tempo, não existirem medidas rápidas, regulares, para aumentar a oferta, ou pelos transportes públicos, alargando o espaço em que as pessoas podem procurar casa, ou construir ou reabilitar mais, acho que os preços vão continuar a aumentar.

 

O conteúdo deste artigo pode ser reproduzido para fins não-comerciais com o consentimento expresso da DECO PROTeste, com indicação da fonte e ligação para esta página. Ver Termos e Condições.