João Pedro Gouveia: "A solução não é gastar mais energia, é tornar as casas mais eficientes"

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Publicado a 05 dezembro 2023

A grande maioria da população está desconfortável em casa. Para João Pedro Gouveia, é essencial começar a resolver problemas estruturais. "Pôr ou melhorar o isolamento de paredes, pavimentos e telhados é prioritário", garante o investigador da Universidade Nova de Lisboa.

Miguel Madeira/4See Joao Pedro Gouveia

Pobreza energética, o que é?

"Há cerca de dez anos, Portugal era o segundo país da União Europeia com mais pessoas a reportar que não estavam confortáveis em casa, no verão, atrás da Bulgária. Passaram-se dez anos, e acho que estamos pior."

O que se entende por pobreza energética?

É a incapacidade que as famílias têm de aquecer, arrefecer ou aceder a outros serviços de energia. Estamos a falar também de iluminação e de aquecimento de águas, versões mais "tramadas" do problema. Isso deve-se ao preço da energia, ao rendimento das famílias e a outro ponto muito importante em Portugal: a qualidade e a falta de eficiência energética das habitações. O clima, no verão e no inverno, também tem um peso importante na forma como as pessoas aquecem ou arrefecem a casa, ou nos problemas de conforto térmico. E há outras componentes: regiões com mais idosos, com mais desempregados, e outras dinâmicas socioeconómicas.

Portugal é dos países mais vulneráveis?

Está no top três, top quatro. Nas últimas estatísticas, há cerca de dez anos – a recolha de dados é um problema que temos para resolver –, era o segundo país da União Europeia com mais pessoas a reportar que não estavam confortáveis em casa, no verão, atrás da Bulgária. As alterações climáticas agravaram-se ainda mais, passaram-se dez anos, e acho que estamos pior.

Há diferenças regionais? O interior do País, por exemplo, é mais afetado?

Sim, é. Temos trabalhado na ideia das regiões, porque não chega perceber que Portugal está pior do que outro país europeu. Para atuar, temos de conhecer as regiões. Há seis ou sete anos, desenvolvemos um índice de vulnerabilidade à pobreza, no CENSE, e começámos a olhar para esta perspetiva em termos regionais. Temos 3092 freguesias mapeadas, em Portugal Continental e Ilhas. Com o índice, fazemos um ranking de vulnerabilidade, tendo em conta edifícios, clima, equipamentos usados e componente socioeconómica. É uma comparação que permite perceber os sítios prioritários de ação. São diferentes no verão e no inverno. A vulnerabilidade difere com o tipo de equipamentos, o clima e as habitações.

Que medidas estão a ser pensadas?

Temos de ver o problema nas suas componentes distintas. Não é só olhar para a pobreza energética no geral, porque há diferentes soluções. Podem ser perspetivas mais de apoio social, mais ligadas à pobreza - apoiar as famílias para melhorar os rendimentos e evitar atrasos no pagamento de contas de energia. Portugal tem a tarifa social, por exemplo. E olhar para a componente mais estrutural, perceber como se consegue renovar as habitações e as soluções para cada uma.

Quem é João Pedro Gouveia?

Investigador principal no CENSE – Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade, da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.

Eficiência energética no Plano de Recuperação e Resiliência

"De repente, abrem-se estes financiamentos, e vai tudo a correr trocar janelas, mas as empresas não conseguem dar resposta. Se a ideia do Governo é que estes financiamentos não só ajudem diretamente cada família como promovam o crescimento do mercado, cria-se uma tendência de renovação efetiva dos edifícios."

O Plano de Recuperação e Resiliência dedica 700 milhões de euros à eficiência energética. Parece-lhe adequado?

Isso é a primeira leva. Depois da invasão da Ucrânia, surgiu outro pacote, de cerca de 100 milhões de euros. É mais focado nos edifícios residenciais, mas também nos serviços, no comércio. E isso é o que está a dar o dinheiro, agora, para o Programa de Apoio aos Edifícios Mais Sustentáveis 2023, que abriu a meio de agosto, há de fechar, em teoria, no final de outubro. Houve algumas correções nesta versão que me parecem adequadas. Pode incluir arrendatários, em determinadas condições, há uma majoração para habitações fora de Lisboa e do Porto e, para otimizar o apoio, só se promove o cofinanciamento para renovar primeiras habitações. Houve também uma redução dos limites de apoio em determinadas tipologias. Na versão anterior, só cerca de 2% do investimento foi para o isolamento, o que não faz sentido. [Agora] reduz o limite da comparticipação, por exemplo, para solar e para bombas de calor, o que é relevante.

Os condomínios também podem pedir apoio?

É complexo. Há outro programa, de teste, com dez milhões, para renovação de condomínios, mas a solução acaba por ser complexa – é preciso definir qual é o isolamento –, tem de ser aprovada por mais de dois terços [do condomínio] e tem de haver uma pessoa que puxe muito por este processo. Não é trivial, é preciso testar.

Os edifícios públicos, como é o caso das escolas, estão contemplados?

Os da administração central estão, os locais, geridos pelos municípios, não. Na educação, só universidades, porque os restantes são geridos pelos municípios ou pelas juntas, dependendo dos ciclos. O problema não se resolve com estes financiamentos alocados pelo PRR. Temos [na universidade] um projeto de apoio à Comissão Europeia, que se chama Energy Poverty Advisory Hub. É uma plataforma de aconselhamento. Estamos a fazer uma análise de indicadores ao nível europeu. Temos, por exemplo, um atlas com mais de 220 projetos para servir de inspiração para o combate à pobreza energética; temos cursos online gratuitos; e estamos a ajudar cerca de 80 cidades, municípios, nos Estados-membros, a desenvolverem projetos, seja de diagnóstico, de indicadores, de mapeamentos, de gabinete de apoio, para apontar soluções de eficiência energética, tentar desenvolver comunidades de energia renovável.

As empresas que fazem esse tipo de serviço estão preparadas para responder?

Diria que não. Em muitos casos, em algumas das soluções que estamos aqui a apontar, ainda há falhas em termos técnicos. E, depois, o mercado não é suficientemente grande para estas procuras pontuais. De repente abrem-se estes financiamentos e vai tudo a correr trocar janelas ou comprar solar, mas as empresas não conseguem dar resposta no tempo útil destes programas. Se a ideia do Governo é que estes financiamentos, não é só ajudem diretamente cada família, mas também promovam o crescimento do mercado e a capacitação das empresas, cria-se uma tendência de renovação efetiva dos edifícios. Porque temos de renovar grande parte das casas, mas é renovar numa perspetiva de renovação total. Se morar numa casa sem isolamento, com más janelas, e ponho uma bomba de calor, vou aquecer a casa de maneira mais eficiente, mas sai tudo. São as melhores práticas? Nem por isso. Há ideias de esquemas de financiamento e de maneiras de renovar as habitações que podiam ser pensadas como alternativa, mais em pacote do que sob a forma de medidas individuais que cada um pode escolher.

Solução "não passa só pela tarifa social"

"Não basta promover o consumo de energia, porque isso traz consequências nas emissões de gases com efeito de estufa. Quando se olha para as soluções, têm de ser estruturais, com medidas passivas nas habitações, para melhorar a eficiência energética."

Parece-lhe que a tarifa social da eletricidade e do gás funciona?

Funciona. É uma medida importante, não para resolver o problema da pobreza energética, mas para ir atenuando o impacto. Um dos principais indicadores para aferir a pobreza energética, à escala europeia, é o atraso no pagamento de contas de energia. Portugal é dos países com valores mais baixos. Segundo os últimos dados de 2022, cerca de 5% das famílias têm atraso no pagamento de contas. É estranho, porque Portugal está bastante mal noutros indicadores e, neste, parece não haver problemas. Isto deve-se não só à tarifa social − temos cerca de 800 mil famílias com tarifa social, que reduz cerca de 33% na fatura −, como também à lenha, que usamos muito e não está nas contas de energia. E a maioria das famílias está desconfortável em casa, não chega a consumir energia. Evita consumir.

A Comissão Europeia diz que são mais de 660 mil os portugueses em pobreza energética...

Não é bem assim. Isso vem da Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética, não são valores diretos da Europa. Essas 660 mil são as pessoas com incapacidade de aquecer a casa e que têm níveis baixos de rendimento. É o que o Governo chama pobreza energética severa. Os dois a três milhões são, sem tirar a perspetiva de pessoas em risco de pobreza, os que têm incapacidade de aquecer a casa. É uma leitura muito específica, com uma componente muito grande do inverno. Mas, cada vez mais, com as alterações climáticas, o verão é um problema.

Na perspetiva dos políticos, se calhar, era mais simples, mas as razões são tão diversas que não dá para isolar um número. Se fosse pegar só no indicador do atraso no pagamento de contas, parecia que não tínhamos problemas. Estamos a falar de cerca de 5% dos portugueses. Se pegar nos últimos dados da Eurostat, das estatísticas europeias de 2022, sobre a incapacidade de aquecer a casa, falamos de cerca de 17% da população. Em risco de pobreza, estão perto de 25 por cento. Dependendo do indicador, pode haver uma grande multiplicidade de pessoas afetadas.

Recomendamos à Comissão Europeia que escolha uma diversidade ampla, que olhe para o clima, os edifícios, o consumo, o preço e as despesas com energia. E para a parte socioeconómica, porque os mais vulneráveis são os idosos e as famílias com crianças. Com as diferentes dimensões, estaremos a falar de dois a três milhões de portugueses em risco de pobreza energética. Talvez 80% a 90% dos portugueses estejam desconfortáveis em casa, o que não quer dizer que estejam em pobreza energética.

O que significa, então?

Por opção, posso não querer gastar energia, porque quero ir ao cinema ou jantar fora. Mas, em situações mais vulneráveis e extremadas, não é isso que acontece. Temos identificado sítios com pessoas que não aquecem a casa, porque, se o fazem, não compram os medicamentos, ou comem comida fria. Há a pobreza, a pobreza energética e a falta de conforto térmico, numa escala de progressividade do problema.

Não é um problema só do inverno. Cada vez mais, com o impacto das alterações climáticas, há ondas de calor desde março até quase outubro. E, de vez em quando, outros eventos extremos. Em termos de impacto na saúde, é relevante não só o frio, mas também o calor. É uma vulnerabilidade estarmos recorrentemente desconfortáveis nos edifícios, nas casas, nos escritórios, nas escolas, nas universidades.

Em Portugal, pouca gente tem ar condicionado. A maioria tem alguma forma de se aquecer, seja a lareira ou um aquecedor a óleo ou elétrico... No verão, se não tiver ar condicionado ou uma ventoinha, restam as estratégias adaptativas, como abrir janelas, circular o ar ou ir para um centro comercial.

Essas medidas são solução?

A solução não passa por promover o consumo de energia, porque isso traz consequências nas emissões de gases com efeito de estufa. Quando se olha para as soluções, têm de ser estruturais, com medidas passivas nas habitações, para melhorar a eficiência energética. Pôr ou melhorar o isolamento nas paredes, nos pavimentos, nas coberturas e nos telhados é muito prioritário. As janelas também são críticas para a melhoria da qualidade do ar e, até, por questões de acústica. Isto vai reduzir as necessidades de energia para aquecer e arrefecer a habitação, e melhorar o conforto.

Mas ainda tenho de consumir alguma energia. Então, num segundo nível, vamos aproveitar as energias renováveis. Ter painéis solares fotovoltaicos nos telhados, em casa, produz eletricidade de renovável, e de forma sustentável, sem emissões diretas. Depois, ter equipamentos mais eficientes. Uma lareira é só cerca de 40% eficiente. Se a trocar por um ar condicionado ou uma bomba de calor, [a eficiência] é muito superior. Pelo mesmo gasto de energia à entrada, tenho uma saída de conforto, de aquecimento ou de arrefecimento, muito melhor. Às vezes, a política pública não ajuda a fazer as escolhas mais acertadas.

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