José Manuel Boavida: “A diabetes é consequência da evolução da sociedade”
Estima-se em mais de um milhão o número de portugueses com diabetes. Prevenção e educação, e centros interdisciplinares para o seu tratamento integrado, são as respostas necessárias. José Manuel Boavida disseca a doença.

Prevalência da diabetes em Portugal é das maiores da Europa
Sabe-se quantos portugueses vivem com diabetes?
Houve dois estudos importantes. O primeiro, em 2009, feito em parceria entre a APDP [Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal] e a Sociedade Portuguesa de Diabetologia, mostrou que a percentagem de diabetes, em Portugal, já ultrapassava 10%, que haveria cerca de 40% das pessoas com diabetes desconhecendo que a tinham, e, contrariamente à ideia vigente, que havia mais homens do que mulheres com diabetes. São os homens que têm mais fatores de risco e que fogem mais dos médicos. Depois, houve outro estudo, em 2015, feito pelo Instituto Ricardo Jorge, o Inquérito Nacional de Saúde com Exame Físico, em que utilizaram uma metodologia diferente. Os números coincidiram com as estimativas: a prevalência de diabetes aproximava-se já de 11,5%, com 30% de não-diagnosticados. Neste momento, pelo envelhecimento da população, calculamos que haverá 13,5% da população com diabetes em Portugal, mantendo-se 30% a 40% de pessoas que não sabem que a têm. Outro elemento que nos dá números são as pessoas com diabetes registadas nos cuidados primários. Temos uma incidência de 70 a 80 mil novas pessoas com diagnóstico de diabetes. Portanto, o número final anda à volta de 9%, são cerca de 900 mil pessoas diagnosticadas, quer dizer que em Portugal devemos andar próximo de 1,3 milhões de pessoas com diabetes, se considerarmos estes casos não diagnosticados. A Direção-Geral da Saúde publicou um despacho, em que diz que vai abrir uma proposta para um novo estudo de prevalência da diabetes, algo que o Instituto Ricardo Jorge também queria fazer, já desde 2020, e que se prepara para fazer em 2025.
Esse despacho da DGS invalida o outro estudo ou será em paralelo?
Não se sabe ainda. Em conclusão, destes dados todos que apresentei, a prevalência da diabetes em Portugal é das maiores na Europa. Evidentemente que não se compara com algumas outras partes do mundo, onde se chega a prevalências de 30%, como o Bahrain, o Koweit, a Arábia Saudita, ou de 20%, em países como Marrocos e Argélia. Se pensarmos que este é o resultado de uma população que foi essencialmente magra na sua juventude, imaginaremos as consequências de uma população com uma percentagem de mais de 50% de excesso de peso nas crianças e nos jovens – a diabetes vai continuar a subir.
Continua a ser uma doença de adultos?
É cada vez mais precoce. Antigamente, era uma doença que aparecia essencialmente depois dos 60 anos. Hoje, começa a aparecer por volta dos 30, 40 anos. Portanto, é um impacto do excesso de peso nas idades mais novas. Em países como os EUA, aparece já na puberdade, nos jovens adultos. Em Portugal ainda é raro. A discussão em torno das razões por que é raro, se existem casos assim ou não em Portugal, é por não haver um hábito de rastreio sistemático das crianças.
É consequência, essencialmente, do estilo de vida?
Nunca diria isso dessa forma. São consequências da evolução da sociedade. Os estilos de vida são consequência e não causa: são consequência dos alimentos hipercalóricos, da urbanização, do abandono do campo e da vinda para as cidades, de as cidades serem tomadas pelos automóveis, da poluição que se sabe hoje que é também um fator de risco da diabetes. Esta visão dos estilos de vida leva, muitas vezes, à culpabilização das pessoas, como se fosse uma questão de responsabilidade social. Um fenómeno com esta magnitude, obviamente, não é consequência de um ou dois de nós termos determinados hábitos. É toda uma cultura da sociedade e toda uma situação de vivência das pessoas que cria isto. Esquecemo-nos de que somos filhos dos resistentes à fome. Os nossos antepassados, se não passavam fome, andavam lá próximo. Não tinham nada que se comparasse com a quantidade de calorias que conhecemos hoje.
Quem é José Manuel Boavida?
Médico endocrinologista, presidente da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal e membro do Conselho Nacional de Saúde.
Hospitais sem capacidade de resposta às múltiplas facetas da diabetes

A diabetes tem uma série de problemas de saúde associados. São disponibilizados os cuidados necessários no SNS?
Há uma questão primeira que é a quantidade de pessoas sem médico de família. Desde 2014 que existe nos centros de saúde a consulta de diabetes. Isso permitiu que grande parte das pessoas que estão nos cuidados primários de saúde, mais de 60%, tenha uma compensação da diabetes bastante boa. Nessa altura, também foi criada a consulta de pé diabético nos centros de saúde, dado que Portugal tem dos maiores números de amputações da Europa. O grande problema estava, e continua a estar, na passagem para as complicações graves e para as situações complexas que necessitam de cuidados hospitalares. Não havendo relações normais e correntes entre os médicos dos hospitais e os dos centros de saúde, criaram-se as unidades coordenadoras funcionais, em que os médicos de um lado e do outro se reuniam e deveriam fazer um plano de ação anual. Foram medidas que eu próprio propus quando estava na Direção-Geral da Saúde, mas é evidente que precisam de ser permanentemente alimentadas. As consultas do pé funcionam mais a Norte do que a Sul, as consultas de diabetes mantêm-se, as unidades coordenadoras funcionais reduziram o seu número, mas são estruturas que podem rapidamente envolver-se.
A frequência e o tipo de cuidados não são suficientes?
Tenho defendido que os hospitais não têm uma estrutura de funcionamento capaz de responder às múltiplas facetas da diabetes. Defendemos o modelo da Associação [Protetora dos Diabéticos de Portugal], com diferentes valências de especialidades médicas que tratam só, exclusivamente, de pessoas com diabetes. A associação tem desde o serviço do pé diferenciado, com cirurgião vascular e com cirurgião geral, até serviços de nefrologia, urologia, ginecologia, oftalmologia, cardiologia, psiquiatria, radiologia, imagiologia. Todas estas áreas, e ainda psicologia, nutrição, pediatria, dentro do mesmo espaço.
Dizia que somos o país com maior número de amputações. Tem que ver com a falta de controlo da doença?
Tem que ver com vários problemas, vamos ver se não sou politicamente incorreto. Quando estas pessoas com situações graves nos pés chegam aos hospitais, não são vistas por uma equipa especializada, são vistas pela equipa de urgência. E cada equipa de urgência tem a sua própria experiência, e não está dedicada a estas situações. O pé diabético exige uma paciência enorme, a cicatrização demora muito tempo. Muitas vezes, os critérios logísticos levam a decidir pela amputação, para que mais rapidamente aquela pessoa possa ter alta e possa libertar uma cama. Os hospitais recebiam mais dinheiro por uma amputação de uma perna do que por salvarem uma perna, porque é um ato mais complexo. Os critérios humanos da saúde da pessoa não são tidos em conta na definição do financiamento dos hospitais. Pensamos que isso possa ser modificado, agora, que passamos para um pagamento em função da população, e não por atos. Mas não sei se será de um dia para o outro, porque é uma revolução muito profunda no sistema de funcionamento dos hospitais. A diabetes, pela sua complexidade, exige um organigrama, um fluxograma de funcionamento nas várias áreas.
Qual é o impacto da diabetes no quotidiano?
Na diabetes tipo 1, imaginar-se-á facilmente o que é estar permanentemente preocupado com o seu valor de açúcar. Se come, se faz exercício, se está em jejum, se tem uma reunião e não sabe se vai ter uma baixa de açúcar... Isto implica uma ligação extremamente pesada à doença. É também a preocupação com o dormir, todas as pessoas têm medo de adormecer, de ter uma hipoglicemia durante a noite... É ir para uma festa e não saber como é que se há de comportar, se pode comer, se há de dar insulina… o consumo de álcool e a confusão entre o consumo de álcool e a hipoglicemia, que tem muitas vezes sintomas semelhantes. Além dos receios para o futuro, receio em ser mãe, receio da cegueira, da amputação... A diabetes tipo 2 está normalmente ligada à hipertensão, à dislipidemia, e, portanto, está ligada a uma medicação crónica com mais de nove a 10 comprimidos por dia. E há uma característica que é muito própria da diabetes: não são os profissionais de saúde que tratam a diabetes, são as próprias pessoas. Desde o início, o mais importante, na diabetes, é ensinar as pessoas a tratarem-se a si próprias. Isto foi escrito por Ernesto Roma, fundador da Associação, em 1925, e é de uma atualidade extrema.
E o que podemos dizer às pessoas para fazer?
A toma da medicação, a compreensão de quais são os alimentos que fazem subir a diabetes. Temos uma ajuda fundamental, os sistemas de monitorização contínua da glicemia. Antigamente, as pessoas tinham de picar o dedo quatro a cinco vezes por dia, só antes das refeições, e ignoravam completamente o que é que se passava depois. Ignoravam completamente o efeito de comer batata ou arroz, massa ou pão, qual deles fazia aumentar mais o açúcar. Hoje, têm essa possibilidade. Aquilo que temos de fazer é educar as pessoas para compreenderem como funciona o seu corpo e quais as suas necessidades, para ajustarem os valores da glicemia, e depois discutirem com os profissionais de saúde as dúvidas, as questões, as dificuldades e pedir as ajudas necessárias. É uma visão muito mais centrada nas pessoas e nas suas necessidades.
Uma doença com consequências sociais

A quem se deve pedir responsabilidades políticas nesta área?
Aos governos em primeiro lugar, porque definem as políticas globais de desenvolvimento do País, de coesão territorial, de alimentação. Por exemplo, o açúcar para tratar as hipoglicemias é taxado a 23%, porque é considerado um alimento e não um remédio. Tem de haver uma visão global destes problemas de saúde. Todos os determinantes sociais vão dar nas doenças crónicas e, em grande parte, na diabetes. A baixa escolaridade, o baixo salário, o desemprego, a condição da habitação e a pobreza aumentam a diabetes.
Falou dos equipamentos e dos tratamentos. Os diabéticos portugueses têm acesso a tudo isso sem dificuldade?
Não. Não estão muito mal do ponto de vista da comparticipação para os medicamentos e para as tiras de glicemia. Mas, por exemplo, os sensores só estão indicados, neste momento, para quem faz insulina. Temos tido também limitações grandes nas bombas de insulina e temos muita dificuldade no acesso aos medicamentos para os agonistas de recetores de GLP-1 para emagrecer. Estes só estão indicados para pessoas com índice de massa corporal superior a 35, quando os resultados são muito melhores em pessoas com menos excesso de peso. Isto não faz sentido.
Outra dificuldade era conseguir contratar seguros de vida. A lei do direito ao esquecimento está regulamentada e implementada?
Não está regulamentada, nem implementada. Houve algumas seguradoras que inicialmente responderam positivamente, mas percebendo que outras não estavam a responder… neste momento, nenhuma está a responder. [O Governo] estará a trabalhar na regulamentação, mas é uma indignidade. Não é por acaso que existe uma visão tão negativa das seguradoras. Não há razão nenhuma para aumentarem os prémios dos seguros de vida. A esperança de vida destes jovens é maior do que o período do empréstimo. As pessoas podem dar alternativas de garantia da casa, nomeadamente fiadores. Mas o que as companhias querem é o dinheiro dos seguros, não querem segurar a casa.
Quais são os principais problemas que chegam à associação da parte dos diabéticos?
Temos cerca de 400 pessoas por dia, 200 na consulta de diabetes, 100 na consulta de pé e 100 na consulta de oftalmologia. São as três grandes fontes de entrada de pessoas na associação.
Também se deparam com problemas sociais?
O impacto do aparecimento da diabetes nas crianças é enorme junto da família, com o aumento da conflitualidade conjugal, com separações, com situações de abandono de crianças. Somos frequentemente chamados aos tribunais. A diabetes não cria imunidade a todos os outros problemas, desde os problemas de violência doméstica, do abandono das pessoas idosas... Os cuidadores informais também têm problemas sociais complicados. Por exemplo, nos lares: a maior parte não tem enfermeiros depois das quatro da tarde. Se os [residentes diabéticos] precisarem de fazer insulina à noite, não têm ninguém que a faça. Cortar as unhas também é um problema. Também não têm ninguém que lhes corte as unhas, que lhes veja os pés. Fazemos formação nos lares, para os auxiliares. Ensinamos a reconhecer e tratar hipoglicemias, a ministrar insulina. A Associação autopropõe-se a dar formação, com patrocínio das autarquias.
Que dizer da esperança média de vida dos diabéticos face à da população em geral?
É mais baixa. Neste momento, calcula-se que será, na diabetes tipo 2, cerca de menos oito anos. Na diabetes tipo 1 há estudos que indicam entre 13 e 17 anos a menos. É evidente que isto depende muito da idade em que se começa a ter diabetes. São médias, não se aplicam a todas as pessoas. É evidente que, quanto mais tarde a diabetes aparece, menos verdade isto é. Quanto melhor for a compensação da diabetes, se não se tiver hipertensão, dislipidemia, também maior será esperança de vida. Neste momento, creio que já há um diabético com mais de 100 anos, nos Estados Unidos. Conheci um senhor que começou a ter diabetes aos três anos e viveu até aos 85. Portanto, viveu 82 anos com diabetes.
O mais importante, na diabetes, é ensinar as pessoas a tratarem-se a si próprias.
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