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Abastecimento de água com preços cada vez mais desiguais

Praticadas em regime de monopólio natural, as tarifas distinguem os portugueses consoante a região onde vivem. Em dez anos, agravaram-se os fossos entre os preços cobrados às famílias em cada município. A DECO PROteste exige políticas governamentais consistentes e reforço da intervenção independente do regulador.

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28 janeiro 2025
água da torneira

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As políticas nacionais de harmonização de preços no serviço de abastecimento de água têm falhado consecutivamente. São cada vez mais fundos os fossos cavados entre aquilo que é cobrado às famílias em cada município. E, se há uma década a tendência era já notória, tornou-se ainda mais evidente nos últimos três anos.

Imaginemos um agregado que não seja elegível para a tarifa social nem para a tarifa de famílias numerosas, e que gaste 120 metros cúbicos de água num ano. A preços de 2024, na Moita, paga 43,75 euros. Já uma família de Carregal do Sal, Tondela, Mortágua, Santa Comba Dão ou Tábua tem de despender 254,29 euros. Mais de 210 euros separam estas realidades. Em 2023, a diferença entre o mais elevado e o mais baixo era de quase 206 euros e, em 2022, perto de 204 euros.

Num cenário em que a mesma família da Moita gaste 180 metros cúbicos num ano, as clivagens são ainda mais acentuadas face ao que se paga em Santa Maria da Feira, o município com o valor mais elevado: 353,23 euros, em 2024. No concelho a sul do Tejo, a fatura fica ligeiramente acima de 65 euros, ao passo que, no município nortenho, pouco falta para tocar nos 419 euros. E em Santa Maria da Feira nem sequer há tarifa social, para famílias com carências económicas. Ora, entre 2022 e 2024, o fosso entre os concelhos com o preço mais elevado e o mais baixo para este nível de consumo aprofundou-se em mais de 57 euros.

A DECO PROteste analisou os preços cobrados pelo serviço de abastecimento de água (desta vez, deixou de fora o saneamento e os resíduos) e chegou a idêntica conclusão face a estudos anteriores: as tarifas diferenciam os portugueses consoante a região onde vivem, mesmo que, por vezes, a poucos quilómetros de distância.

Embora, desde 2014, tenham sido introduzidas políticas com vista à harmonização de preços ao nível nacional, ainda existem disparidades quanto aos valores cobrados pelas entidades que captam a água. Estas disparidades verificam-se também nos preços cobrados às famílias. De 2014 para 2024, têm-se mantido elevadas, com destaque para os últimos três anos. O preço é justo? Equitativo? Acessível? A água perdida na rede é paga direta ou indiretamente pelo consumidor? Um preço mais elevado serve para investir em reabilitação de condutas? As questões exigem resposta município a município.

A ideia de que é necessário aumentar preços é viciosa. Em certos concelhos, aumentos para cobrir os custos servem para sustentar sistemas que não são eficientes e/ou cujos contratos não protegem os legítimos interesses dos municípios e/ou dos cidadãos. Noutros casos, o preço nem sequer paga o custo da água que o município compra, o que tão-pouco garante a qualidade do serviço a médio e longo prazo. Muito menos contribui para o uso eficiente deste recurso vital.

A DECO PROteste não tem dúvidas. As políticas governamentais devem ser delineadas de modo consistente, valorizando a continuidade, e promovendo o acesso equitativo dos cidadãos, independentemente do concelho onde residem. Já a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) deve ter poderes que lhe permitam agir de modo independente na regulação tarifária, no seguimento das comissões de acompanhamento aos contratos de concessão, públicos ou privados, e na criação do tão ansiado Regulamento Tarifário para os Serviços de Água e Saneamento.

Abastecimento de qualidade e tarifários harmonizados ao nível nacional, e que garantam a acessibilidade económica a todos os cidadãos, são desde há muito as reivindicações da organização de consumidores.

Saber quanto custa a fatura da água no meu município

Assimetrias de preços começam na captação da água

Os portugueses valorizam a água como um recurso indispensável para assegurarem o seu dia-a-dia. Assim o revela um estudo das Águas de Portugal publicado em 2021: 74% dos inquiridos veem este bem como a prioridade das prioridades. Todavia, os estudos da DECO PROteste mostram que não existe equidade no acesso a um bem essencial – e a assimetria começa logo a montante.

As empresas que captam a água e a vendem às entidades gestoras nos municípios, para que a possam distribuir aos consumidores, também praticam preços diferentes consoante as regiões. Após várias restruturações desde 2015, o serviço de captação e tratamento da água passou a ser executado por dez concessionárias em 78% dos 278 municípios do Continente.

Segundo informação disponibilizada pela ERSAR, entre estas dez entidades, o custo por metro cúbico oscila dos 0,3673 euros cobrados pelas Águas do Douro e Paiva, em 30 municípios, aos 0,6284 euros praticados pelas Águas do Vale do Tejo em 76 concelhos. A diferença é de 0,2611 euros por metro cúbico. Fazendo as contas, a compra de 10 metros cúbicos por estes municípios pode custar entre 3,673 e 6,284 euros.

Aumentos tarifários acima da inflação

Junho de 2023. Face ao mês homólogo do ano anterior, os aumentos nos tarifários, aplicados no âmbito do serviço de abastecimento a um consumo anual de 120 metros cúbicos, superaram, em 131 concelhos, a taxa de inflação de 2023, que foi de 4,31 por cento. Os preços mantiveram-se em 95 concelhos e, em 12, desceram.

Cotejando com junho de 2024, o incremento foi superior a 2,5% em 178 concelhos. Em 101, o preço não mexeu: o gasto anual de 120 metros cúbicos continuou a custar entre 48,83 euros em Terras do Bouro e 207,93 euros nos municípios das Águas do Norte, a saber Amarante, Arouca, Baião, Celorico de Basto e Cinfães. Ainda que discretamente, os preços caíram em 14 municípios. O sublinhado vai para Barcelos e Sabugal, com cortes de 15,2% (27,46 euros) e 18,3% (30,80 euros).

Ao contrário do que acontece no âmbito de outros serviços públicos essenciais, como a eletricidade e as telecomunicações, o abastecimento de água envolve preços muito díspares. Pior: trata-se de um monopólio natural, a que as famílias não podem escapar, a menos que mudem de concelho...

Preços cobrados às famílias superam os custos das entidades gestoras

Os dados da ERSAR para 2022 mostram que a cobertura de custos das entidades gestoras era superior a 100% em 111 concelhos. Ou seja, os preços cobrados aos consumidores mais do que compensaram, nesse ano, os encargos com a sua atividade.

Destes, apenas oito receberam do regulador uma boa avaliação na reabilitação de condutas com mais de dez anos. Os restantes não investiram em renovação. É certo que o indicador das perdas reais de água, em 76 destes concelhos com cobertura de custos acima de 100%, teve boa avaliação pela ERSAR em 2022. Significa que há uma aposta na redução das perdas (por exemplo, com sistemas de monitorização e com a redução da pressão da água nas condutas). Mas é descurado o investimento mais pesado em trabalhos de reabilitação. E não há que esquecer que 23 destes concelhos registaram perdas de água elevadas. Recordemos que foi água tratada e paga às entidades que a captaram, a um preço de 0,3673 a 0,6284 euros por metro cúbico, uma ineficiência com elevados custos económicos e ambientais.

Mesmo entre os 69 concelhos com cobertura de custos abaixo de 90%, os tarifários poderão ser mais sustentáveis, se houver uma redução das perdas reais de água, que são muito elevadas em 22 deles – dez nem sequer reportaram informação ao regulador. Mais: do universo de concelhos com cobertura de custos abaixo de 90%, 53 pouco ou nada fizeram quanto a reabilitação e quatro não forneceram esta informação à ERSAR.

Aumentar preços para compensar ineficiências do sistema, sem investir na efetiva melhoria do serviço, é uma prática tão inaceitável quanto insustentável. E que não contribui para o bom uso de um recurso tão valorizado pelos portugueses.

Tarifários elevados subiram ainda mais em 2024

Há que esmiuçar as percentagens. Em alguns municípios, a um aumento percentual elevado entre 2022 e 2024 correspondeu um valor absoluto com impacto pouco significativo. Foi o que aconteceu nos concelhos que se encontram no ranking dos tarifários mais baixos.

Considerando, agora, o elenco dos mais elevados para um consumo de 120 metros cúbicos em 2022, verificamos que alguns concelhos seguiram uma trajetória de redução, o que lhes permitiu alcançar uma posição mais favorável em 2023. O destaque cabe a Vila do Conde, que desceu a tarifa de 250,02 para 175 euros, e a Gondomar, que fez cair o preço de 213,69 para 191,36 euros.

Em sinal contrário, nos cinco municípios das Águas do Planalto (Carregal do Sal, Mortágua, Santa Comba Dão, Tábua e Tondela), que, em 2022, já estavam no top dos mais elevados para 120 metros cúbicos, foram aplicados aumentos de 11,9% em 2023. O mesmo aconteceu em Santa Maria da Feira, mas a subida foi de 10,3 por cento. E, no ano seguinte, em 2024, os preços foram sobrecarregados, respetivamente, em mais 2,9% e 3,9 por cento.

 

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