Ana Rita Gil: “Os migrantes deslocam-se cada vez para mais longe”

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Publicado a 28 fevereiro 2024

Chegam à procura da segurança que não encontram no país de origem, seja por falta de oportunidades económicas, seja por conflitos ou perseguições. Ana Rita Gil, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, estuda este fenómeno.

José Fernandes/4See Ana Rita Gil

Imigrantes em Portugal

Estamos a chegar a um milhão, e estes migrantes são sobretudo voluntários ou económicos.”
Ana Rita Gil
“É importante que a sociedade de acolhimento também esteja pacificada com a chegada de imigrantes.”

Qual é a diferença entre migrante e refugiado?

Podemos falar de uma conceção mais comum, que distingue os migrantes voluntários e os forçados. [Os primeiros] são as pessoas que decidiram sair dos seus países para melhorarem as suas condições de vida. Por outro lado, as pessoas que são forçadas por guerras, perseguição, são os refugiados. Só que, numa conceção jurídica estrita, um refugiado, nos termos da Convenção de Genebra, é só a pessoa que é perseguida em função das suas características pessoais, como seja raça, nacionalidade, opiniões políticas, pertença a um grupo social ou religião. Por isso é que, no direito da União Europeia, se criou um estatuto para as pessoas que fogem de guerras. Essas não são, tecnicamente, refugiadas, estão só a fugir de uma situação de violência generalizada e não estão a ser perseguidas por causa de um fator subjetivo.

Que tipo de imigrantes estão em Portugal?

Os últimos dados indicam que há um aumento imenso. Estamos a chegar a um milhão, e estes migrantes são sobretudo voluntários ou económicos. Temos asilo, que abrange os refugiados, a proteção subsidiária e a proteção temporária, que é o regime que se aplica aos refugiados da guerra da Ucrânia. Estes, por exemplo, são só cerca de 350: os restantes 780 mil são migrantes, podemos dizer, económicos. A esmagadora maioria vem trabalhar por conta de outrem. Há também pessoas que vêm estudar, e nós sentimos muito isso nas faculdades. Aqui, na Faculdade de Direito, há sobretudo estudantes brasileiros e também de países dos PALOP [países africanos de língua oficial portuguesa], no ensino pós-graduado. E, depois, há reagrupamento familiar, pessoas que vêm ter com os trabalhadores que já cá estavam. Em menor número, temos pessoas que vêm trabalhar por conta própria, cerca de 12 mil, e os investidores, os chamados vistos gold [autorizações de residência para investimento], na ordem dos quatro mil. E temos, ainda, um fenómeno que é muito típico de Portugal: a quantidade de imigrantes que temos em situação irregular, que é muita. Mas só se consegue ter uma estimativa, porque não temos acesso aos dados.

Não sendo Portugal um país rico, porque pensa que temos, sobretudo, migrantes económicos?

A esmagadora maioria dos imigrantes vem do Brasil: cerca de 75 por cento. Tem que ver com a língua e com a segurança. Temos também outros cidadãos da CPLP, temos muitos da União Europeia. E, agora, temos também cidadãos americanos, que procuram gozar a sua reforma. Temos muita procura por parte de cidadãos que têm poder de compra, e que vêm gozar aqui a reforma. Porque é que Portugal é procurado? Se compararmos com os outros países da União Europeia, não somos assim tão procurados. Estamos para lá do meio da tabela.

E qual é a estimativa relativa ao número de imigrantes em situação ilegal?

Mais ou menos 20 mil, o que é muito. O relatório do Observatório das Migrações, publicado no início de janeiro, mostra o número de autorizações de residência por regularizar do ano passado, e foram cerca de 22 mil. Trata-se de pessoas que entraram ilegalmente, com visto de turismo ou sem visto, e alegando passeio, ou clandestinamente, como muitas pessoas que vêm do Sudeste Asiático. Portanto, temos estes vários tipos de imigração ilegal. Passado um ano, a nossa lei permite a regularização de quem tem trabalho no território. Portanto, as pessoas ficam um ano irregulares, que é uma situação que me preocupa imenso, e depois pedem regularização. O processo demora imenso tempo, e a sucessora do SEF, a AIMA [Agência para a Integração, Migrações e Asilo], estava com imensos atrasos, porque tinha cerca de 20 mil pedidos de regularizações. Só para verem a evolução, em 2018, tinham sido 1164. Na União Europeia, criticam-nos, porque a ideia era não fazer regularizações em massa, dado que chama imigração ilegal. Há cinco anos, tínhamos mil e pouco e, agora, já estamos nos 22 mil imigrantes em situação irregular a pedir a regularização. Não é a maioria – a maioria vem com visto de trabalho. Os números até podem ser superiores, porque estes são os que pediram regularização. Pode haver quem não tenha pedido, com medo de ser expulso.

Quem é Ana Rita Gil?

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e investigadora do Lisbon Public Law.

Direitos dos imigrantes

"Não podemos impor às pessoas que sigam os costumes portugueses. As pessoas têm o direito de seguir a sua religião e a sua cultura."

Essas pessoas estão sem acesso à saúde ou à escola?

Portugal tem um decreto-lei pioneiro, muito de se saudar, que criou o direito à educação e à saúde para as crianças filhas de migrantes em situação irregular. Estas crianças podem ser inscritas nos centros de saúde e nas escolas, e as escolas não podem passar a informação às autoridades de que têm ali uma criança em situação irregular. Se não houvesse esta cláusula, os pais teriam medo de que fosse denunciada a situação. Só que isto não é garantido para os pais, que estão completamente desprotegidos. As pessoas não sabem disto. Quem vai aos centros nacionais de apoio ao imigrante é aconselhado nesse sentido, mas temos muitas camadas da população, sobretudo a do Sudeste Asiático, que não têm acesso à informação. Aliás, vivem num verdadeiro submundo, em alguns nichos, sobretudo no Sul, aonde essa informação não chega. Ao nível habitacional, é para esquecer: são verdadeiramente exploradas e vivem em situações desumanas.

Há direitos diferentes para migrantes e refugiados?

Vai depender do estatuto. Os direitos que se reconhecem a cada um dependem do título que tem no território, se é temporário, se é permanente. Os refugiados têm os mesmos direitos que os permanentes, com algumas diferenças. Por exemplo, o requerente de asilo, que é a pessoa que chegou ao país, pediu asilo e ainda não se decidiu se ela é refugiada, se é titular de proteção subsidiária, ou se não é nada. Esta pessoa também tem alguns direitos, mas diferentes, quer dos do refugiado, quer dos do migrante. Embora, nós em Portugal, sejamos garantistas, a comparar com os outros países da União Europeia. Temos um princípio na Constituição que diz que os estrangeiros têm exatamente os mesmos direitos que os portugueses, Agora, tem-se entendido que os direitos são dos estrangeiros em situação regular, como a educação ou a saúde.

Depois, na prática, vai depender muito do tipo de estatuto em concreto que eles têm, do título. Por exemplo, há autorizações de residência que permitem o reagrupamento familiar, portanto, as pessoas podem vir para cá trabalhar, e podem mandar vir a sua família. Há outras que não, porque são temporárias. Por exemplo, os trabalhadores sazonais que vêm só no verão não podem pedir o reagrupamento familiar.

Há a ideia de que os migrantes são responsáveis por criminalidade, que tiram os lugares de trabalho, que tiram lugar na saúde...

Não. É uma narrativa populista, já antiga. Os três receios normais das fações mais conservadoras dos países que recebem imigrantes são a segurança pública, o trabalho e a identidade cultural. Devemos olhar com seriedade para as preocupações das pessoas, é importante que a sociedade de acolhimento também esteja pacificada com a chegada de imigrantes. Devemos ouvir as pessoas, mas também devemos desmistificar. O sistema hoteleiro, as estufas... este tipo de trabalho não tão qualificado estava a precisar de pessoas. Quanto à criminalidade, está por demonstrar que os cidadãos estrangeiros são uma percentagem maior nas prisões. A esmagadora maioria são portugueses.

Como se combatem estas ideias?

O essencial, desde logo, é o ensino do português. Porque são comunidades muito tradicionais, e obrigar estas pessoas todas a falarem em inglês não é viável. Estamos a mover-nos em terrenos pantanosos, porque não podemos impor às pessoas que sigam os costumes portugueses. Pelo contrário, temos um país assente num pilar da liberdade religiosa e cultural. Portanto, as pessoas têm o direito fundamental de seguir a sua religião e a sua cultura. Isto só lá vai agora com o tempo, com mudança de mentalidades, as pessoas perceberem que não é uma ameaça por si só. E, claro, com a integração destas comunidades em habitações adequadas, com um certo acompanhamento social. Não se pode deixar uma comunidade pequenina, como Vila do Bispo, com metade de imigrantes destas nacionalidades e não se querer saber onde é que as pessoas estão instaladas, o que é que fazem. Isto requer alguma atenção da parte dos municípios, também.

Abordou a questão de Vila do Bispo, há também a de Odemira, onde parece ter havido escravatura...

Terrível. E nem é só aí. Há situações de escravatura, ou mesmo de tráfico. A pessoas em situação irregular, sem autorização de residência, em que não é pago salário. Estão em casas [que são], muitas vezes, contentores, barracões, que são controlados pelos empregadores que as transportam para o local de trabalho e as levam para casa, retêm os passaportes... E não se podem queixar à polícia, com receio de denunciarem a sua situação.

Recusa de migrantes

“Começamos a ter algumas manifestações de xenofobia, mas não somos um país xenófobo.”
Ana Rita Gil
"Até há alguns anos, Portugal era um caso de estudo, porque era um dos poucos países em que não havia um partido de extrema-direita no Parlamento, e o assunto da imigração não era sequer falado."

Falou também de aumentos exponenciais de migrações não só cá, como também em toda a Europa. Aconteceu até países da União Europeia, portanto, do espaço Schengen, fecharem fronteiras. Como se explica que se considere cada vez mais normal este tipo de comportamento?

Tenho estudado muito este fenómeno, que me preocupa, porque não vai diminuir. Sempre tivemos fluxos de refugiados que vêm de guerras e de alterações climáticas, ao longo da história. O problema é que agora as pessoas deslocam-se cada vez para mais longe, e é isso que tem assustado. Basta vermos a diferença de reação entre a crise de refugiados da Ucrânia e a de 2015, do Médio Oriente e da África Subsariana. Há aqui vários fatores a ter em conta. Há a total proibição de se afastar uma embarcação que pede socorro. A Itália e a Grécia já foram condenadas pelo Tribunal Europeu por fazerem isso – e a Croácia, a Hungria e a Polónia também, por o terem feito em terra. Houve um caso na Croácia, em que se mandou para trás os migrantes por uma linha de comboio. Veio o comboio e matou uma criança. A Croácia foi condenada por violação do direito à vida. E há outra dimensão do fenómeno, também extremamente preocupante: pessoas que salvavam migrantes e não tinham onde os desembarcar, porque os Estados recusavam-se a recebê-los.

Em que se traduzem essas condenações?

Normalmente, através de uma indemnização às vítimas. No caso da criança que morreu na via férrea, foram, naturalmente, os pais. Nos outros casos, em que as pessoas foram mandadas para trás, foram os próprios.

E é possível fiscalizar se os estados cumprem as condenações?

O estado tem de submeter um relatório num prazo fixado a dizer o que já fez para cumprir a decisão. Se não o fizer, vai haver insistência, e depois pode o processo ir outra vez para o Tribunal Europeu, que o poderá condenar por não-cumprimento, numa indemnização, agora também ao Conselho da Europa. De uma forma geral, os estados cumprem.

Somos um país xenófobo?

Começamos a ter algumas manifestações de xenofobia, sim, mas não somos um país xenófobo, isso não representa a esmagadora maioria dos portugueses. Nem a lei, aliás. Portugal, mesmo em termos de discurso público e político, é visto lá fora como um dos países mais garantistas, com as leis "mais generosas".

Que consequências podem surgir com o aumento do poder da extrema-direita na Europa e também cá?

Até há alguns anos, Portugal era um caso de estudo, porque era um dos poucos países em que não tínhamos um partido de extrema-direita no Parlamento, e o assunto da imigração não era sequer falado nos debates políticos. Agora, a situação está a mudar, também muito fruto destas subidas e do confronto da população com tantos cidadãos estrangeiros. Naturalmente que me preocupa a subida desta área política, porque se alimenta dos receios primários e naturais do ser humano face a algo que é estranho. Preocupa-me que se erijam novos controlos e fronteiras, até porque vai levar a um cerceamento da liberdade dos próprios cidadãos europeus. Se se controlam os estrangeiros, controla-se toda a gente.

Naturalmente que me preocupa a subida desta área política [extrema direita], porque se alimenta dos receios primários e naturais do ser humano face a algo que é estranho.

 

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