Sandra Araújo: “A pobreza acaba por ser uma escolha política"
A pobreza é mais do que falta de dinheiro: é exclusão no acesso à educação e à saúde. Para lhe fazer frente, é preciso uma estratégia intergovernamental, não só apoios sociais, garante a coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza. "A pobreza não tem ideologias, e a ambição deveria ser erradicar", remata Sandra Araújo.

O conceito de famílias em situação de pobreza
Quais os critérios para se considerar que uma pessoa ou família está em situação de pobreza?
São critérios económicos, associados ao rendimento disponível das famílias. É o indicador que permite comparar a situação de pobreza ao nível da União Europeia. O Eurostat identificou como critério os 60% do rendimento mediano das famílias: é com base nele que se comparam países. Portanto, 60% do limiar de pobreza, o valor que, em Portugal, corresponde aos 551 euros mensais per capita. Quem estiver abaixo desse limiar está em situação de pobreza. Mas a filosofia subjacente à estratégia nacional tem uma visão mais abrangente, multidimensional, apesar de os indicadores serem de natureza monetária, pois está definido como meta reduzir a taxa de pobreza monetária da população portuguesa para 10 por cento. A pobreza não pode ser vista só na dimensão económica. Tem de incluir o acesso aos serviços, a preços comportáveis e de qualidade: por exemplo, à educação, à habitação, ao emprego e à saúde. Outra dimensão é a participação das pessoas em situação de pobreza nos processos de desenvolvimento. Precisam de ter uma cidadania ativa e de se desenvolverem integralmente. A estratégia tem um eixo, que é garantir a participação das pessoas nas dinâmicas de formulação política, na sua implementação, monitorização e avaliação. É muito diferenciador relativamente a outros planos e estratégias nacionais. Há uma preocupação em ouvir as pessoas relativamente às medidas previstas e ao impacto na sua vida.
Como se chega a essas pessoas e se suscita esse tipo de questões?
Convidámos entidades ligadas ao terceiro setor, da economia social, com uma intervenção muito direta em públicos vulneráveis, desde crianças a jovens, a pessoas idosas, portadoras de deficiência, sem-abrigo, reclusos… Convidámos essas instituições a participarem na construção de um roteiro para abordagens, metodologias e avaliação participativas. Foram 13 ou 14 grandes organizações do setor social, com trabalho direto no terreno. Vão ser desenvolvidos projetos-piloto no terreno, mas qualquer entidade pode participar na monitorização e na ação da própria estratégia. E isto dá-nos a tal dimensão qualitativa de bem-estar. Os indicadores [relativos à taxa de pobreza] reportam a 2021. Temos um hiato temporal, quando fazemos este tipo de monitorização, avaliação e análise. Em relação à privação material e social severa, temos indicadores do inquérito de rendimentos do ano anterior. Mas, em relação à taxa de pobreza, de intensidade de pobreza, de severidade de pobreza, temos esta dificuldade, que é o acompanhamento em tempo real.
Sobretudo, em situações de crise.
Obviamente. Em situações conjunturais como a que vivemos, com a pandemia e com a nova conjuntura, torna-se mais difícil ter este retrato real, porque a pobreza é dinâmica. E daí termos essa perspetiva no plano, de tentarmos evoluir na capacidade de criar uma bateria de indicadores que possam aferir com maior atualização as condições de vida da população e, em particular, daqueles a quem a estratégia se destina.
Quem é Sandra Araújo?
Assistente social de formação, Sandra Araújo coordena a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza (ENCP) 2021-2030 desde há cerca de um ano.
As assimetrias da pobreza em Portugal

Como está Portugal posicionado face aos restantes países da União Europeia em termos de pobreza?
Um pouco na cauda. Nos dados mais recentes, de 2021, Portugal ficou num nível intermédio. Neste momento, até os 16,4% da taxa de incidência da pobreza são um indicador mais positivo do que a média europeia. Portanto, Portugal ficou mais bem posicionado, embora no passado tenhamos tido sempre taxas mais elevadas quando comparadas com os outros países europeus. Por exemplo, Roménia, Bulgária, e até Espanha, estão piores do que nós...
Quem são os pobres em Portugal?
As crianças estão no centro da estratégia. Queremos quebrar ciclos intergeracionais de pobreza, e só podemos fazê-lo com uma intervenção muito dirigida às crianças e às famílias onde estão inseridas. Temos outros grupos-alvo: as pessoas portadoras de deficiência, em situação de sem-abrigo, com comportamentos aditivos e toxicodependências. Temos as comunidades ciganas, que são um grupo muito vulnerável. Em relação ao género, a questão da remuneração das mulheres também vai ser vigiada. Há sempre um diferencial importante nos leques salariais entre homens e mulheres. E há as famílias monoparentais.
E onde se encontram?
Estes grupos estão concentrados nas grandes áreas metropolitanas. Há regiões onde a taxa de incidência de pobreza é maior. Por exemplo, nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, as taxas são bastante mais elevadas, quando comparadas com o Continente. A região Norte e o Algarve têm taxas bastante mais elevadas, quando comparadas com as outras regiões. A estratégia tem um indicador, que passa por reduzir as assimetrias territoriais regionais. De acordo com os últimos dados, de 2021, a taxa de incidência de pobreza é de 16,4%: perto de 1,7 milhões de cidadãos em situação de pobreza. Se recuarmos a 1990, tínhamos taxas de pobreza na ordem dos 23 por cento. Depois, começámos a reduzir até 2008 e, com a grande recessão desse ano, voltámos a subir. Só a partir de 2015 ou 2016 é que começou a verificar-se uma trajetória positiva. Em 2019, tivemos a nossa melhor taxa de incidência de pobreza: 16,2 por cento.
Estava receosa relativamente aos dados de 2021, por causa da pandemia. Fiquei surpreendida pela positiva, porque quase todos os indicadores melhoraram. Verdade seja dita, isto só foi possível por causa das políticas públicas adotadas. A pobreza acaba por ser também uma escolha política e, nesse sentido, tem de haver políticas com foco e com preocupações acrescidas. Não é possível intervir na pobreza só por via da política social. É preciso uma visão integrada, porque, se não conseguirmos construir essa articulação intergovernativa, intergovernamental, e ter esta visão holística e integrada da pobreza, não nos adianta nada tentar corrigir as desvantagens. Precisamos de trabalhar a repartição dos rendimentos, a distribuição e as outras políticas que podem interromper os ciclos de pobreza, que têm que ver com a educação e com a qualidade do emprego e da saúde.
Retomámos a trajetória positiva. Vamos ver como evolui, porque entretanto tivemos uma outra crise inflacionária provocada ou exacerbada pela guerra na Europa, e há a crise energética e o aumento do preço dos bens…
... da habitação...
Apesar das medidas previstas na estratégia nacional, que tinha que ver com a garantia do acesso a habitação condigna a públicos muito vulneráveis ou a pessoas a viver em condições habitacionais muito degradadas, há um objetivo, que é aumentar o parque habitacional público, que é muito baixo, de 2%, de pouco investimento. O objetivo é chegar aos 5 por cento.
De construção do estado para apoio social?
Sim. É a chamada habitação social, pública. Houve o lançamento do programa Mais Habitação, com as medidas que entraram em vigor, e que foram vertidas para o plano da estratégia nacional. Torna-se muito difícil garantir condições de vida dignas, quando as pessoas não têm condições para assegurar as suas casas. Nas rendas, pode ver-se no plano o compromisso de 185 mil famílias abrangidas pelo apoio extraordinário às rendas.
Plano de Combate à Pobreza e suas implicações
Como se olha para as pessoas em situação de pobreza?
Há uma tendência ainda muito generalizada para considerar que estas pessoas falharam, que não há um falhanço da sociedade, mas um falhanço individual. Há a lógica de individualizar e culpabilizar as pessoas, ou porque não querem trabalhar ou porque querem receber só subsídios. Temos estereótipos relativos a grupos específicos, como as comunidades ciganas, sempre muito discriminadas no acesso à habitação, ao emprego e à educação.
A pobreza é hereditária?
As vantagens acumulam-se, e as desvantagens também. Quando não temos condições para garantir educação de qualidade aos filhos, os baixos salários e as baixas qualificações perpetuam-se. Se não se consegue garantir uma alimentação adequada às crianças, provavelmente, o rendimento escolar será diminuído, quando comparado com o de outras crianças. Os apoios na educação, a que todas as crianças deveriam ter direito, mas a que algumas não têm... isso limita muito as potencialidades e as capacidades, e repercute-se no tempo. As crianças sem acesso a formação vão ocupar os postos de trabalho mais indiferenciados e com mais baixos salários. Muitas vezes, também o acesso à saúde é dificultado.
E os idosos? São um grupo muito vulnerável.
São. Não temos propriamente um eixo dedicado aos idosos, mas estão muito presentes em várias medidas e iniciativas. Tínhamos, entre os pensionistas e as pessoas reformadas, um dos grupos mais vulneráveis à situação de pobreza, fruto das baixas pensões. Muitos foram agricultores e praticamente não fizeram descontos. Tinham pensões mínimas. Com a introdução do complemento solidário para idosos, uma medida adotada em 2005, os apoios sociais aos idosos foram reforçados. Conseguimos inverter a taxa de pobreza, melhorar o desempenho. A taxa de pobreza nos idosos baixou significativamente. E há autarquias que já desenvolvem alguns projetos-piloto de serviços integrados entre a saúde e o serviço social.
E os novos pobres?
Não gosto muito dessa expressão. Temos novas vulnerabilidades à situação de pobreza e uma classe média em risco, que, durante a crise de 2013, era remediada, mas que, face à conjuntura, está em situação crítica e pode, de repente, cair em situação de pobreza. Isto começa a dizer respeito aos nossos. Não é justo, porque, quando há uma grande percentagem de população pobre, isto tem reflexos em toda a sociedade. Mas, muitas vezes, trabalhamos em bolhas, e só acordamos para o problema quando nos diz respeito. Uma sociedade com uma presença tão expressiva de pessoas em situação de pobreza é, no geral, uma sociedade pobre. Está a canalizar os recursos e não está a desenvolver os seus talentos e capacidades.
Podemos esperar continuidade no Plano de Combate à Pobreza?
Enquanto aqui estiver, lutarei para que isso aconteça. Isto não tem ideologias, o combate à pobreza. A ambição deveria ser erradicar, que acho que é uma utopia. Mas quero fazer parte dessa utopia. O último eixo da estratégia é bastante transversal e tem como objetivo fazer do combate à pobreza um desígnio nacional, que implica mobilizar todos os agentes e todos os setores. Os tempos não estão fáceis e são extremamente incertos. Tivemos uma pandemia que não conseguimos prever. A seguir, uma guerra que se prolonga desde fevereiro de 2022. Agora, com este novo conflito no Médio Oriente, temos muitos cenários de incerteza.
Há a lógica de individualizar e culpabilizar as pessoas, ou porque não querem trabalhar ou porque querem receber só subsídios.
O conteúdo deste artigo pode ser reproduzido para fins não-comerciais com o consentimento expresso da DECO PROTeste, com indicação da fonte e ligação para esta página. Ver Termos e Condições. |