Irene Pimentel: "No dia 25 de abril, tínhamos a palavra"

Publicado a 03 abril 2024

A celebrar meio século, a Revolução traz hoje muitas perguntas e riscos: a democracia está ameaçada? A informação que circula é credível? Como vivem a liberdade os jovens nascidos depois desse dia? Nada melhor do que a História para explicar o 25 de Abril.

João Ribeiro Entrevista Irene Pimentel

Direitos conquistados com o 25 de Abril

“A liberdade é a grande conquista de Abril, porque, na questão da igualdade, já temos grandes problemas. Assim como a fraternidade, que pode ser um sinónimo de solidariedade.”
Entrevista Irene Pimentel
"O código civil foi de tal forma reformulado que mudou completamente o estatuto da mulher, desde logo aquela figura do homem como chefe de família, marido, ao qual a mulher devia obediência."

Onde estava no 25 de abril?

[Risos] Estava em Lisboa, nesta casa, exatamente. Estava nesta casa desde 1973. Tinha-a alugado com uma série de pessoas. Era uma casa coletiva. O que é interessante, se calhar, é o dia 25, mas na madrugada. Nessa noite, estava com outros amigos e camaradas, a colar cartazes contra a Guerra Colonial. E passámos pela Penitenciária de Lisboa, de carro, e pela rua do Rádio Clube Português, a Sampaio e Pina. E, portanto, hoje sei que [a rádio] já estava tomada, porque já eram para aí três horas da manhã.

Que conquista de Abril é que poria em primeiro lugar?

A liberdade, como é evidente. Acho que é, de facto, a grande conquista de Abril, porque na questão da igualdade, se tomarmos aqueles termos da Revolução Francesa, já temos grandes problemas. Assim como a fraternidade, que pode ser um sinónimo de solidariedade, de o coletivo se preocupar com o coletivo, de os indivíduos se preocuparem com o coletivo. Logo a seguir desenvolveu-se um processo revolucionário e foi muito importante para as mulheres. Porque a legislação aprisionava-as completamente. O código civil não desapareceu, mas foi de tal forma reformulado e reformado, que mudou completamente o seu estatuto, desde logo aquela figura do homem como chefe de família, marido, ao qual a mulher devia obediência.

A legislação pôs em pé de igualdade homens e mulheres?

A legislação é fundamental, também, para modificar a vida das pessoas, e sobretudo a vida dos casais, a vida do relacionamento entre géneros, porque, sem essas leis, então é que não temos nada. Evidentemente que só as leis não bastam, têm de ser conhecidas e aplicadas. Depois podemos dizer que a aplicação é muito complicada, que o grande problema de Portugal é o da justiça e da desigualdade.

Porque se o quadro legal não reconhece determinados direitos, é impossível pô-los em prática.

Absolutamente. Por exemplo, o voto foi logo considerado como universal a partir dos 18 anos, se a pessoa soubesse ler ou escrever. Porque havia muito analfabetismo, e, antigamente, havia sempre limitações para as mulheres, independentemente da formação, de terem uma licenciatura ou de pagarem determinados impostos. E foi justamente devido a isso, devido às eleições para a [assembleia] constituinte [a 25 de abril de 1975], que um grupo de mulheres percebeu que o código civil tinha de ser mudado de alto a baixo, porque senão não correspondia ao que era permitido nas eleições, nem à futura constituição democrática.

De entre os direitos, destacou a liberdade...

Todas as liberdades. Evidentemente, depois foi gradual, as conquistas de mais liberdades, a liberdade de namorar, a questão do aborto, mais tardia... Mas a liberdade, e a possibilidade de isso tudo e de muito mais vir a ser alargado, foi, de facto, conquistado num dia. Portanto, no dia 24, não podíamos falar, podíamos ser presos. Eu, pelo que tinha feito de 24 para 25 de abril, podia ser presa. No dia seguinte, tínhamos a palavra. Significou o fim da censura, dos presos políticos, da repressão e da polícia política. E o podermos sonhar, inclusive, ou ter todas as alternativas à nossa frente.

Outra das consequências da revolução foi a criação de entidades de defesa do consumidor.

Exatamente. Não havia nada, nem sei se havia o termo “consumidor”, ou “defesa do consumidor”.

No fundo, só é possível defendermos direitos de consumo em liberdade?

Claro. Liberdade essa que não está garantida para todo o sempre – eu vou muito às escolas e digo sempre isso. Ainda por cima, neste momento, há muitos jovens que acham engraçada a extrema-direita, não percebendo nada, e achando que se calhar a vida deles continuará igual com essas forças no poder. Não têm noção de que as coisas podem modificar-se. Não seria voltar ao passado, tal como ele era, evidentemente que isso é impossível, temos hoje redes sociais e outras componentes, mas basta ver o que se está a passar ao nível mundial: na Rússia, se o Trump ganhar nos Estados Unidos, o Bolsonaro ou outro qualquer, de novo. Estou muito preocupada com isso.

Quem é Irene Pimentel?

Historiadora e investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.

Retrocesso na valorização das conquistas

“Durante muito tempo houve um consenso relativamente ao que se conquistou no 25 de Abril. Hoje há frases que surgem e que são, ainda por cima, completamente ancoradas na falsidade.”
Entrevista Irene Pimentel
“Hoje quase não se vai ao cinema, nem ao teatro, lê-se pouquíssimo. Há um trabalho a fazer, quase descomunal. E tem de ser dia a dia, constantemente.”

O que explica essa viragem dos jovens para a extrema-direita?

É aquela questão do politicamente incorreto, de irem contra o statu quo, e de falarem de coisas que normalmente sabem que não se deve falar. Por exemplo, não vou dizer que uma pessoa é inferior a mim porque é negra, porque isso até é anticonstitucional, e até posso ser perseguida por isso, se insultar alguém na rua. E muitos veem nisso uma espécie de mordaça. Acham muita graça que um indivíduo diga palavrões, minta, diga hoje uma coisa e amanhã outra. E acham muita piada porque, também, evidentemente veem que há reações. Todos já fomos adolescentes, sabemos muito bem que há uma tendência para irmos contra os mais velhos. Não é um aspeto só português. Durante muito tempo penso que houve um consenso relativamente ao que se conquistou no 25 de Abril. Hoje já há frases que surgem e que são, ainda por cima, completamente ancoradas na falsidade.

Não há noção das conquistas?

A nossa sociedade é muito menos coletivista hoje. Por exemplo, raramente os jovens escolhem ir viver com outros antes de ganharem dinheiro para terem a sua casa, terem o automóvel e todas essas coisas. A falta de cultura histórica é um grande problema português, e aí os governos em democracia também têm uma grande responsabilidade. A História e a Filosofia deveriam ser obrigatórias até ao fim do liceu, e depois, se calhar, ainda continuar, mesmo nas ciências exatas. Para mim, por exemplo, foi fundamental, e o meu amor, o meu gosto pela História tem muito que ver com isso. Eu tive História e Filosofia como cadeiras charneiras no Liceu Francês, era onde havia mais horas de estudo até aos 18 anos. A Filosofia e a História servem para pensar.

Sente que houve uma incapacidade da geração que fez a revolução em ensiná-la à geração seguinte?

Tenho a impressão de que muitas pessoas que não estavam muito ligadas à política antes do 25 de Abril, e no processo de transição para a democracia, que foram mais ativas, tiveram a tendência para achar “eu quero é que os meus filhos vivam melhor”. E é uma coisa completamente justa, que todos os pais, em qualquer situação, sempre tiveram. E hoje há uma falsidade quando se diz que as gerações atuais vivem muito pior, e vão viver muito pior do que as gerações anteriores.

A informação livre circula hoje em todos os sentidos. Como se preserva a memória histórica numa sociedade em que a informação é muito efémera?

A minha geração é marcada pela história, dos baby boomers, do pós-Segunda Guerra Mundial, e tudo era possível, tudo estava em aberto. E foi, durante estes anos todos, tivemos paz. Mas acho que essa questão também tem que ver com uma falta de curiosidade relativamente ao exterior. Hoje pode-se viajar, no meu tempo era muito mais complicado, e o programa Erasmus ou o Interrail são das coisas mais extraordinárias que houve. Mas isto não foi acompanhado pelo interesse cultural, político, de ver as alternativas. Não, em qualquer país para onde se viaje, sobretudo no mundo ocidental, vai-se às mesmas lojas, com os mesmos produtos, vê-se os mesmos filmes, as mesmas séries na televisão. Portanto, há um excesso, parece, de informação, mas também há um afunilamento muito grande.

Uma homogeneização muito grande.

Uma homogeneização total da informação, que antes era feita através da censura. Por um lado, a censura abafava tudo o que era alternativa, e por outro lado, endeusava, dava a entender que vivíamos num paraíso, era a única coisa que a maior parte dos portugueses conhecia. E, se houvesse dificuldades, “há sempre ali um senhor que está a olhar por si, que é o ditador”. Isso é outra coisa que, em Portugal, continua, o olhar para cima, “resolvam-me este problema”, e não, “eu, com outras pessoas, temos de resolver, temos de estar atentos a essas coisas”.

A imediatez da informação também trouxe as fake news?

Acho que o grande problema, hoje, é uma questão ética: a verdade tornou-se igual à mentira.

A verdade já não é importante?

Lembro-me de uma entrevista nas eleições que Trump venceu, em que o jornalista – creio que da CNN – confronta a pessoa entrevistada, dizendo que “é mentira o que está a dizer, isso não se passa”. E o entrevistado responde: “Não, isso não me interessa, eu quero acreditar nessa verdade, na que ele está a querer dizer.”

Acha que o 25 de Abril pode servir de referência para um quadro de luta futura?

Penso que sim, porque mostra uma possibilidade. Num futuro próximo, poderemos ter o 25 de Abril como um quadro de referência para lutar contra abusos que venham a ser cometidos, num quadro de chegada ao poder da extrema-direita.

No dia 24, não podíamos falar, podíamos ser presos. No dia seguinte, tínhamos a palavra. Significou o fim da censura, dos presos políticos, da repressão e da polícia política. E o podermos sonhar.

Os direitos não são dados adquiridos

"A liberdade e a igualdade entre homens e mulheres, por exemplo, podem desaparecer. Tudo pode voltar atrás. É só, por exemplo, entrar-se em guerra. Isso vai alterar completamente a vida das pessoas."

Conceitos possíveis após a revolução, como igualdade de género, inclusão, minorias, união de facto, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, entre outros, são dados adquiridos? Como defendê-los e mantê-los?

Não são dados adquiridos. Mesmo, por exemplo, para falarmos num dos principais direitos do 25 de Abril, a liberdade, evidentemente que pode desaparecer. Mas até a igualdade entre homens e mulheres. Ou a tendência para uma igualdade, porque as mulheres ainda trabalham muito mais dentro de casa, ao mesmo tempo que trabalham fora. Tudo pode voltar atrás. É só, por exemplo, entrar-se em guerra. E já estamos em guerra. Ora, as guerras precisam do quê? Não é força de trabalho, mas força de guerreiro, e é preciso ter mais filhos. Então, como é que se tem mais filhos? As mulheres, se calhar, têm de parir mais, ocupar-se mais do espaço doméstico e por aí fora. Isso vai alterar completamente a vida das pessoas. Ou se a pílula, por exemplo, e temos países na Europa onde isto é complicado, for proibida. Não sei se as pessoas sabem, até ao 25 de Abril não era nada fácil ter uma receita. Havia muitos médicos que não a prescreviam. E em Portugal, o que nós tivemos com aquela rutura magnífica, não lhe posso chamar outra coisa: de repente, tivemos o melhor código civil da Europa, e, sobretudo as melhores tendências para alargar a democracia e a liberdade.

Como manter esses direitos?

A resposta ao "que se deve fazer” é que é muito difícil. Não vejo outra forma a não ser continuarmos a ganhar cultura, conhecimento, procurar onde é que esse conhecimento está, destrinçar entre a verdade e a mentira. Infelizmente, os nossos canais de televisão também não facilitam. Hoje quase não se vai ao cinema, nem ao teatro, lê-se pouquíssimo. Há um trabalho a fazer, quase descomunal. E tem de ser dia a dia, constantemente.

 

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