Sandra Ribeiro: "Vítimas de violência doméstica denunciam mais"
É o crime mais praticado em Portugal – mais de oito mil queixas no ano passado e, entre janeiro e junho de 2023, 12 vítimas mortais. A violência doméstica está ancorada numa mentalidade que teima em resistir ao avanço da lei. Sandra Ribeiro, presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, explica o fenómeno.

Presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), desde 2020, com formação em Direito, e pós-graduada em Direito do Trabalho e Técnicas de Legislação, Sandra Ribeiro traça o estado da violência doméstica em Portugal e da mentalidade subjacente.
As vítimas de violência doméstica podem pedir ajuda através do 800 202 148 ou do 112, disponíveis 24 horas. Também é possível enviar uma mensagem para o 3060, com resposta automática e ligação imediata à polícia.
Apesar da evolução das mentalidades e das leis, a igualdade ainda está só no papel?
Só a partir de 1976, aquando da Constituição democrática, é que a mulher deixou de estar legalmente menorizada, pela lei, face ao homem. Ela não tinha o mesmo direito de exercer algumas profissões, não tinha o direito de fazer uma série de negócios, era obrigada a deixar que ou o seu pai ou o seu marido lhe pudessem ver a correspondência, a autorizassem a exercer ou não certas profissões, não podia viajar sem autorização. Até aos anos 70, a violência sobre as mulheres era um não-assunto. Ainda cresci a ouvir que “entre marido e mulher não se mete a colher”, um ditado popular que diz tudo sobre a tolerância que sempre existiu face à violência do chefe de família sobre a mulher, que era sua propriedade, e os filhos, que tinham de lhe obedecer. Isto não se muda por decreto. O Estado democrático traz uma alteração de paradigma, que é a liberdade. E a lógica dos direitos para homens e para mulheres, a questão do dever da igualdade salarial, de as mulheres entrarem no mercado de trabalho. Tudo isso traz uma certa independência financeira das mulheres. Já estamos numa fase em que é comum a mulher ganhar mais do que o homem num casal. Já nem se liga muito a isso. Mas não era assim até há bem pouco tempo. Supostamente, ele tinha de ser mais alto, mais velho e, naturalmente, ganhar mais.
Ainda se mantém essa mentalidade tradicional?
Educámos pouco para a igualdade. Construímos um edifício legal quase perfeito na promoção dos direitos de igualdade, no combate à violência, mas, do ponto de vista estrutural, educacional, só agora é que já estamos a conseguir. Neste momento, creio que vivemos, também, uma grande convulsão. Para os homens, muitas vezes com uma educação muito tradicional, às vezes até há uma lógica de não saberem exatamente aquilo que se espera deles, ou o que é ser homem hoje.
A violência doméstica provocou, só entre janeiro e junho deste ano, 12 mortes, dez das quais mulheres...
É o crime mais cometido em Portugal, com mais denúncias e com mais mortes.
Com mais denúncias?
É o crime que tem mais denúncias por ano. E a subir exponencialmente. Não quer dizer que haja mais casos. As vítimas é que estão a denunciar mais, e estão a ganhar mais confiança para poderem pedir ajuda ao sistema público nacional. Mas as mortes estabilizaram em alta. Foram 12 até junho, e, infelizmente, não prevemos que não seja de acabarmos o ano com 24, 25, 26... Tivemos capacidade para conseguir reforçar a Rede Nacional de Apoio às Vítimas. Temos mais casas de acolhimento e mais de 200 serviços de atendimento.
O que é que isso significa?
Centros que estão disponíveis para fazer atendimento, 140 respostas de atendimento, 415 técnicos afetos.
Ao nível nacional?
Ao nível nacional, incluindo Ilhas. Cobrimos 95% do território. Trinta e um centros, com 60 psicólogos, para apoio às crianças que assistem a crimes, ou que viveram em ambiente de violência doméstica. Temos 61 respostas de acolhimento e as casas de emergência, de acolhimento, e casas-abrigo.
As casas de emergência têm uma função mais temporária?
Servem para quando se tem de sair, por vezes, a meio da noite, só com a roupa do corpo. São as primeiras casas. As outras são para passar algum tempo. Mas esse é o calcanhar de Aquiles do sistema – temos muita dificuldade em conseguir arranjar casas de autonomização [de rendas baixas, permitindo que as vítimas refaçam as vidas]. Temos um sistema de emergência e de acolhimento muito bem montado, mas demasiadas pessoas a serem enviadas para ambos.

Para se esconderem, as vítimas perdem emprego e casa. Já os agressores podem manter-se numa situação de privilégio. O que prevê a lei?
Prevê que o sistema deva estar montado para a pessoa sair imediatamente do perigo. Mas tem de haver uma decisão do Ministério Público, se achar que o risco é demasiado alto, para que o agressor saia e fique impedido de se aproximar.
E o que é preciso acontecer para que o agressor, de facto, saia?
É preciso haver mais decisões judiciais e do Ministério Público nesse sentido. O que acontece, normalmente, é que elas saem de imediato e, depois, o tribunal não nomeia a saída do agressor enquanto o processo está a decorrer, para ter a certeza do que se passa. Nisto, passam-se anos. As mulheres ficam numa situação de desenraizamento total, muito longe de casa.
Com filhos?
Com filhos. Arranjamos-lhes uma casa-abrigo e até escola para os filhos. Mas, se for preciso, ficam dois, três anos. É absolutamente impossível.
Nesses dois, três anos, o agressor fica em casa...
Fica, e muitas vezes em casas que eram delas, ou em copropriedade. É aqui que também temos de trabalhar muito. Aliás, vamos fazer um fórum nacional contra a violência doméstica, e, este ano, vai ser exatamente na área da justiça, com juízes e juízas e o Ministério Público. Porque é, de facto, o setor onde se sente que é mais complicado. Não basta ser juiz ou juíza, não basta ser professor, não basta ser polícia. As pessoas têm de ser capacitadas para esta área, porque é muito complexa. Compreende histórias pessoais e educação.
Há relatos de agressores que pedem a guarda dos filhos, que lhes é concedida. Os juízes não cruzam processos? Não sabem que são agressores?
Muitas vezes, os processos não são apensados como deveriam ser – um pode estar a ocorrer em Lisboa e outro no Barreiro, por exemplo. Nem sempre há esse cruzamento. E, em muitos casos, o agressor está a ser julgado por violência doméstica, e até é declarado culpado. Diria que a lei não é má, mas é sempre possível fazer ajustes.
A atribuição de subsídio de desemprego às vítimas parece estar finalmente a ser legislada. Esta resposta é suficiente?
Atendendo a que muitas vezes as vítimas têm de se deslocar do seu local habitual de residência, para garantirem a sua segurança e dos seus dependentes, o que leva a perda, muitas das vezes, do seu posto de trabalho, esta medida é uma medida positiva. Deve ser encarada como transitória, para mitigar a situação de fragilidade económica em que a vítima se vai encontrar. Esta resposta não pode ser encarada de forma isolada, mas sim integrada em todo o apoio que as vítimas recebem por parte das entidades da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica, que desenvolvem um conjunto de outras ações com vista a uma plena reintegração e autonomização das vítimas.
Há algum perfil do agressor?
Infelizmente, não há um perfil. É mais a perceção errada de superioridade e de uma frustração à perda.
É transversal a classes sociais?
É transversal. Nas classes mais elevadas, as pessoas queixam-se muito menos, porque têm vergonha de assumir a situação. Muitas vezes não querem perder o statu quo, porque estão habituadas a um certo nível de vida. Mas temos situações graves, desde o professor universitário até ao técnico indiferenciado. Já tivemos casos mediáticos. Normalmente, o que acontece? Há quem fique a favor e quem fique contra. A lógica é: “Mas o que é que ela fez para que ele lhe batesse?”
Há o caso paradigmático de Bárbara Guimarães e de Manuel Maria Carrilho. Houve uma juíza que fez comentários...
Chegou a considerar como é que uma mulher com aquela capacidade financeira, e com aquele empoderamento, admitia ser batida por um homem. Tudo preconceito. A desconstrução que se tentou fazer da moralidade daquela mulher... E não estar capacitado para perceber que as situações de violência não são só físicas. São pressão psicológica, também. Colocar a culpa na vítima, que é normalmente aquilo que se faz em toda a linha...
“Alguma coisa ela fez”...
Ou, então, “porque é que não se veio embora? Se não se veio embora, foi porque se calhar queria lá estar”. É muito difícil a uma vítima tomar a decisão. É preciso vencer o medo e a vergonha, porque há sempre exposição. Ter de pedir ajuda a alguém, ter de se assumir perante os filhos que alguma coisa não está bem. E não é fácil quebrar um relacionamento.
Tem falado muito na educação.
Temos um programa com o Ministério da Educação para, nas aulas de Cidadania, se começar a falar cada vez mais das questões de violência doméstica, da violência no namoro. Fazemos muito trabalho com as crianças, com os jovens, e é muito comum dizerem, nas nossas palestras: “Eu não gosto que a minha namorada vá falar com outros quando é minha namorada.” “Mas ela não é tua propriedade, é tua namorada. Não é melhor fazeres coisas de que ela goste, que é para ela gostar de estar contigo, em vez de estares com medo ou de a prenderes?” Temos de trabalhar transversalmente estas matérias. Há aquela lógica do macho latino-lusitano...
Ainda persiste?
É o gozão dos gays, dos trans. Parece que, se não o fizer, a sua virilidade é posta em causa.
A violência é também frequente na comunidade LGBTQIA+?
Sim. Temos uma casa especializada em apoio a pessoas LGBTQIA+ vítimas de violência. Muitas vezes também percebemos que a figura masculina, num relacionamento homossexual, tem uma preponderância sobre as demais.
Está a falar de casais de homens?
Também em casais de mulheres. Mas acontece mais em casais de homens, de facto. Temos muito trabalho com a comunidade lésbica. Dizemos que elas são muito invisíveis. Têm tido pouca visibilidade na sua afirmação. E a razão é também serem mulheres. São consideradas uma perda para a sociedade, pois não reproduzem. Preferem ter sexo com uma mulher a tê-lo com um homem. Isso pode, em última análise, pôr em causa até a própria existência dos homens. Muitas vezes, nem vão ao médico por se sentirem discriminadas. Portanto, têm um índice de doenças, e desenvolvimento, por exemplo, de cancro no útero, diferente das outras mulheres.

Há pouco mais de 20 anos que a violência doméstica é crime público. As queixas de terceiros são frequentes?
Fazemos campanhas a dizer “denuncie, se sabe de um caso”. O empoderamento da testemunha é algo a que também temos vindo a apelar. Mas, realmente, o ditado “entre marido e mulher não se mete a colher” ficou mesmo interiorizado. Sabemos que não é fácil. Muitas vezes, um terceiro pode fazer queixa e a própria vítima ficar contra esse terceiro, porque não quer sair, por não ter condições para se ir embora.
Há situações em que pode não haver agressão física, mas psicológica. Também acolhem estas vítimas?
O mais evidente é a agressão física e a morte. Mas há imensas situações de bullying, de assédio moral e de assédio sexual dentro da família. Já nem falamos dos filhos, dos abusos a menores, cujo habitat preferencial é a família.
E que pode estar associado a violência sobre a mãe...
... e a situações de incesto. Mas, muitas vezes, o que acontece é aquela violência psicológica, diária e a conta-gotas: “Tu não serves para nada”, ou “não te deixo sair, não gosto da roupa que vestes, não gosto que fales com aquela pessoa”.
Esse assédio faz-se online?
Entre os miúdos há o hábito de verem as mensagens uns dos outros, quem as manda. Ou, então, um outro clássico, o de colocarem na internet filmes que faziam juntos, o que até já deu origem a uma alteração ao Código Penal. Criou-se um novo crime, a publicação de filmagens ou imagens pornográficas.
Além das consequências físicas, que sequelas psicológicas se abatem sobre as vítimas?
É o trauma. Daí termos criado uma resposta de apoio psicológico para as vítimas. Alterou-se também a lei para que, no estatuto de vítima, as crianças passem a ser, não vítimas indiretas, mas diretas. Estas crianças vêm muito traumatizadas. Há aquelas que veem mesmo a mãe a ser morta. Precisam logo de um tratamento muito mais profundo e imediato. E há outras que, durante anos e anos, viram a mãe ser agredida, ou viveram sempre num ambiente em que ouviam, “a mãe é burra, a mãe é parva”, ou “o pai é parvo”. Podem ter mais tarde uma tendência de reproduzir as atitudes agressivas, porque acham que isso é o normal, ou de se recolherem completamente. O trabalho com agressores também tem de ser feito, não só em quem já agrediu, como em quem se possa tornar potencial agressor. Daí que uma das prioridades, neste momento, para esta estratégia de prevenção, seja educar contra a violência.
E qual é a mensagem a transmitir nessa estratégia?
O que se defende não é a supremacia das mulheres sobre os homens, é a igualdade entre ambos – termos os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Temos de educar menos para as diferenças entre homens e mulheres, e mais para os direitos humanos e para a não-violência. É educar para ser feliz.
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