Gonçalo Antunes: "A cidade é um espaço de desigualdade"
Pouca oferta, escassa habitação pública, rendas e prestações de casa incomportáveis para a maioria da população: a habitação é um dos desafios nacionais, e não há soluções mágicas. Gonçalo Antunes fala sobre as medidas que podem simplificar o setor.

Problemas e modelos europeus

A habitação, um direito humano, afeta gerações de forma contínua, já o disse. Nunca se encontrou a fórmula ideal para este problema?
Nunca se encontrou, até porque o problema habitacional se vai metamorfoseando. Os problemas de hoje no acesso à habitação são sobretudo da classe média, que tem grandes dificuldades em comprar ou arrendar casa. Nos anos 90, era muito diferente, porque a classe média conseguia, de uma forma ou de outra, comprar casa. Não tanto arrendar. Mas havia outros problemas graves... os bairros de lata, com uma população e famílias menos solventes. Tal como no Estado Novo também existiam problemas muito graves de habitação nos espaços urbanos. Foi o período em que estes bairros de lata e de barracas começaram a desenvolver-se e a expandir-se de forma muito acentuada. Na década de 50 era conhecido que cerca de 30% da população de Lisboa vivia em partes de casa. Duas ou mais famílias partilhavam a mesma casa. Um casal vivia num quarto, o outro casal noutro, e partilhavam a cozinha e a casa de banho. E se formos para trás temos sempre o problema da habitação, que, diz-nos toda a teoria, se agravou de forma muito dramática com a Revolução Industrial, com o crescimento desmesurado das cidades, devido ao êxodo rural, a uma chegada de população às cidades para a qual não existiam habitações suficientes. Os problemas de habitação estão sempre presentes, e diferenciados no tempo e no espaço, independentemente do regime político. Pode ser uma ditadura, uma monarquia.
Há algum modelo considerado mais ideal na Europa?
No centro da Europa temos países que tiveram políticas de habitação mais fortes do que Portugal, sobretudo porque as iniciaram logo após a Primeira Guerra Mundial. Viena é considerada a cidade exemplo, porque tem 40% de habitação pública, e depois terá mais uns 15%, ou até mais, de habitação de interesse social, que pode ser de entidades assistencialistas, do terceiro setor ou de privados que arrendam a preços acessíveis. Mas Viena começou esse percurso na década de 20 do século passado. Fizeram o que fizeram com uma política continuada que começou há 100 anos, não de um dia para o outro. Os países do centro e do Norte da Europa, depois da Segunda Guerra Mundial, apostaram muito nas políticas de habitação, dentro do Estado Social. Havia que apostar na educação, na saúde e na habitação pública também. Esses países, ao longo das últimas três décadas, até têm vindo a vender, a alienar algumas dessas habitações. O Reino Unido, por exemplo, teve uma política da Margaret Thatcher, que era Right to Buy – o direito a comprar –, que servia para vender a habitação municipal. Mas, mesmo assim, ainda têm cerca de 20% de habitação pública. E muitos outros países europeus também têm uma percentagem relativamente elevada.
E Portugal?
Portugal tem 2% de habitação pública. Corresponde a cerca de 120 mil habitações, a esmagadora maioria dos municípios, e uma pequena parte do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), do estado central, digamos assim, mas são todas públicas, independentemente de quem é o proprietário. Nas áreas urbanas, o peso é maior. Em Lisboa, é de 12 por cento. Alguns países europeus têm pesos de habitação pública mais substanciais, à volta dos 15%, dos 20% ou mais. Mas é também a questão de terem apoiado outras entidades a construir, as cooperativas ou mesmo o privado, ou entidades assistencialistas, o que acabou por criar uma espécie de mercado intermédio. Ou seja, têm a habitação pública, não necessariamente só para os mais desprotegidos, mas acabam por criar também um parque de habitação intermédio, que, aliás, não tem estigma quase nenhum. É muito comum um jovem holandês, que se quer emancipar, ir procurar uma casa numa cooperativa de habitação que arrenda a valores abaixo do mercado, e vive ali durante anos, começa a sua vida. Mais tarde, procura uma casa no mercado. Em Portugal, não há este mercado intermédio. Os 2% de habitação pública foram construídos quase sempre para responder a situações de urgência e de emergência, nomeadamente para realojar população que vivia nos bairros de lata e de barracas. A Alta de Lisboa, a antiga Musgueira, a Curraleira, Chelas... Havia imensos bairros de barracas em Lisboa. O próprio nome é redutor, porque as casas já não eram necessariamente barracas, muitas já eram de alvenaria.
Ao responder a emergências, carrega, ao contrário de outros locais da Europa, algum estigma.
É uma ação nas políticas de habitação que tem sempre um padrão. É muito reativa e muito pouco proativa. Não age em prevenção, para tentar resolver os problemas a médio e longo prazo, e antes de se estabelecerem. Nos anos 90, houve um grande programa de construção de habitação pública, o PER – o Programa Especial de Realojamento. O nome “especial” diz-nos tudo, dá-nos logo um sentido de excecionalidade. Mesmo agora, no Mais Habitação, as políticas também são sempre muito reativas. E, depois, construímos bairros que são um bocadinho homogéneos do ponto de vista social. São bolhas de pobreza, sobretudo quando os bairros são de maior dimensão. Acarretam grande estigma social. E um grande estigma territorial para com o bairro. Dizer que se é de Chelas, da Zona J, tem um estigma enorme.
Se o Estado fosse um senhorio melhor, poderia servir de exemplo para os privados?
O problema é que o Estado é o pior senhorio, sobretudo nos bairros do IHRU. Muitas vezes, constroem e passam décadas sem lá ir para fazer obras importantes. Em Lisboa, a Gebalis gere cerca de 25 mil habitações. Há que admitir que não é fácil.
Quem é Gonçalo Antunes?
Geógrafo, especialista em políticas de Habitação, professor universitário na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
A gentrificação
Como chegámos à gentrificação das cidades? O que é que falhou neste modelo em que é quase impossível comprar uma casa?
A gentrificação passa um pouco pela substituição de um tecido social que existia por um novo, que normalmente tem mais poder de compra. Simplificando muito, é disso que falamos quando nos referimos à gentrificação. É um fenómeno que já existia há algum tempo em Lisboa. O conceito vem da década de 60. Era algo que já se estava a identificar em muitas outras cidades do chamado mundo ocidental. Europeias, em particular. Estava a ser identificado que existia uma substituição da população de determinados bairros por uma outra, com mais poder de compra, porque começava a achar aquele bairro trendy. Aumenta a procura. O senhorio diz ao antigo inquilino, que pagava, imaginemos, 500 euros pela habitação, e diz que agora são 900. Porque efetivamente consegue arrendar a outras pessoas por 900. Se pensarmos no centro de Paris, de Roma ou de Londres, e de muitas outras cidades europeias, não vemos uma camada da população de rendimentos baixos aí a residir. Ninguém vive com rendimentos baixos com vista para o Rio Sena. Nos últimos dez anos, a desproteção no mercado e na legislação do arrendamento, a desproteção dos inquilinos acabou por os colocar numa situação de maior fragilidade e de começarmos a ver de forma bastante clara aquela população a ser substituída por uma nova, de portugueses e de estrangeiros. Mas depois, também, a gentrificação não é apenas e só uma gentrificação da população, é uma gentrificação do comércio local, as lojas que existiam, a barbearia, o café, a tasca, o restaurante típico, a farmácia, o minimercado da senhora que vivia ali no bairro, também, tudo isso começa a desaparecer e a ser substituído por coisas diferentes. As lojas de souvenirs, os restaurantes assim do international style [estilo internacional], que podem estar aqui ou estar noutro sítio qualquer, as farmácias que desaparecem porque a população também é cada vez menor.
Um mercado livre e liberto de quase todos os constrangimentos provocou a entrada de fundos de investimento que compraram edifícios inteiros. Isso não contribuiu para a gentrificação?
Claro que sim. Porque o que vemos é que esses grandes fundos imobiliários já faziam a sua atividade, não em Portugal em geral. Não tinham grande interesse no nosso património imobiliário, não andavam por aí a comprar grandes edifícios, faziam-no em outras cidades europeias grandes e de média dimensão, de dimensão até, às vezes, similar à de Lisboa. Uma família com rendimentos médios não consegue comprar uma dessas casas reabilitada no centro de Lisboa. E também não consegue arrendar, porque, se for para rentabilizar com o arrendamento, as rendas pedidas são muito elevadas.
A casa ao lado já não vai ser vendida pelo mesmo preço, porque há uma espécie de contágio do preço do metro quadrado.
Claro. E porque a oferta começa a escassear, a partir do momento em que o número de casas vagas aumenta. Embora, em Lisboa, pelo que consta, as casas vagas são cerca de 48 mil. E em 2011 o valor não era muito diferente. Acho que até reduziu muito residualmente. Está relativamente estagnado. Mas, podemos pensar, se está estagnado não piorou. Mas a questão é que sabemos que vivemos um momento de grandes dificuldades no acesso à habitação, que são uma situação generalizada a todo o País. Lisboa é o território que mais valorizou nos últimos dez anos. É um bocadinho estranho pensar que temos 48 mil habitações vazias. Porque é que estão vazias, num momento em que até era propício estarem a uso, para as rentabilizar, vender, arrendar? Há falta de oferta e temos casas vazias. É preciso colocá-las no mercado.
De que forma?
Tem de se criar, para os prédios públicos, um programa nacional com verbas, sejam elas quais forem, para os reabilitar, para os adaptar à função residencial, e para os colocar em arrendamento acessível. É preciso criar programas de reabilitação que realmente funcionem, junto dos proprietários. Podemos estar a falar de um prédio de um proprietário, ou de herdeiros que não se entendem. É uma outra medida que se pode criar em Portugal, que existe noutros países. Quando os herdeiros não se entendem, ao final de x anos, e até podemos dar um prazo alargado. Ao final de cinco anos, se ninguém se entender, o Estado toma posse, vende e depois dá a quem tiver direito. Porque se temos edifícios em Lisboa em que os herdeiros não se entendem, se é para reabilitar, se é para vender, ficam décadas com aquele património parado. É preciso pôr um ponto final. O Estado também serve para isto, para cuidar do bem comum acima do interesse individual.
As zonas históricas têm casas de luxo e casas sobrelotadas...
Temos muita sobrelotação, que tende a afetar aqueles que menos têm, porque têm de partilhar casa. Como as comunidades de imigrantes, em Lisboa, Odemira, ou outras cidades do País. Em Lisboa, até há sistemas que nem sequer arrendam uma cama, é mesmo a chamada “cama quente”. Vão lá dormir umas horas. Tudo em grande informalidade. A sobrelotação afeta as famílias cujos filhos não conseguem sair de casa. De repente, já estão lá com as mulheres ou namoradas. É um problema que afeta cada vez mais população devido às dificuldades no acesso à habitação.
Em Lisboa, na Av. Almirante Reis, as casas na Alameda, no topo, são muito mais caras do que as da Mouraria. O trajeto é de cerca de dois quilómetros. Espelha desigualdade económica?
O eixo é o mesmo, mas tem um valor de metro quadrado muito mais alto no Areeiro do que no Martim Moniz. E não é só o valor do metro quadrado, a geografia humana também se altera de forma bastante considerável. A cidade é um espaço de desigualdade, desde sempre.
Soluções para a habitação em Portugal

Que análise faz do programa Mais Habitação?
O Mais Habitação até tinha uma medida, a mais controversa, a do arrendamento coercivo, que podia passar por posses administrativas, que era precisamente para dar uso a estas habitações vagas. Criou grande celeuma, porque, por um lado, temos o direito à habitação, consagrado no Artigo 65.º e, por outro, o direito de propriedade, no Artigo 62.º. Ambos estão na Constituição. Aliás, estão também na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Qual é o mais importante? Se é que há algum mais importante. Até porque, estou certo de que a entidade que mais devolutos tem em Portugal é o próprio Estado. Talvez pudesse dar o exemplo e começar pelos seus devolutos, um grande programa de reabilitação de todos os devolutos que tem no País inteiro, e depois desse passo dado, então dizer aos privados, aos particulares, que já fez o seu trabalho e que agora é a vez deles. O Mais Habitação tem algumas medidas boas de apoio ao arrendamento para as famílias que tinham, e têm, taxas de esforço superiores a 35 por cento. Criou-se uma medida importante para pagar a diferença até 200 euros, a partir do momento em que a taxa de esforço fosse superior a 35 por cento. Pelo que consta, há cerca de 200 mil famílias que estão a ser apoiadas com essa medida, o que demonstra que é uma boa medida, porque retira esforço e encargos às famílias no pagamento da sua habitação. O resto das medidas, às vezes, são para responder ao problema de agora. A maioria delas são temporárias, provisórias, excecionais. Mesmo esta do arrendamento é excecional. Tem um ano em concreto para acabar, que é 2026 ou 2027. E, se terminar, veja-se o problema social que não é criado, porque temos 200 mil famílias apoiadas por aquela medida. Se, de um dia para o outro, deixa de existir... Porque as rendas não vão baixar, pelo menos todos os indicadores o dizem.
Em 2018, o IHRU identificou 26 mil agregados com carências habitacionais graves. Há números mais recentes?
Nesse levantamento que o IHRU fez junto dos municípios, a maior parte deles, julgo que mais de metade, situava-se na Área Metropolitana de Lisboa. Mas, agora, os municípios, ao elaborarem as suas estratégias locais de habitação, estão a identificar carências habitacionais, e muitas mais do em 2018. Aquilo que deram a conhecer pode ser metodologicamente diferente daquilo que estão a dar a conhecer agora, mas os 26 mil hoje estima-se que possam ser 70 mil, 80 mil, 60 mil, ao nível nacional.
Se lhe dessem a pasta da Habitação, por onde começaria?
No fundo, o que é necessário fazer é manter algum esforço, que tem sido iniciado nos últimos anos, para construir mais habitação pública, porque é disso que precisamos. Mas habitação pública que ultrapasse a ideia de construir para situações de emergência e circunstanciais e que ajude a construir um parque de habitação intermédia. É também necessário criar condições para que outros construam esse parque. Ou seja, arrendamento acessível para a classe média, classe média baixa, porque, atualmente, não tem direito à habitação pública, porque tem rendimentos demasiado elevados. Mas também não consegue arrendar ou comprar uma casa, porque os preços são demasiado altos. Mas também não consegue arrendar ou comprar casa, porque os preços são demasiado altos. É preciso colocar outras entidades a construir. Sou muito apologista de que a solução não tem de ser só pública. É preciso reavivar as cooperativas, pô-las a construírem para melhorarem o acesso à habitação, na compra, ou, preferencialmente, no arrendamento. E depois tentar que alguns programas, como o Porta 65, que é para jovens, que deixe de ser para jovens. É que neste momento em particular, esse problema do acesso à habitação não é só dos jovens, dos 20, dos 30, mas também é da população dos 40 e dos 50. E dos idosos, sobretudo quando têm casas arrendadas, chega-lhes a carta do senhorio a pedir um valor que já não conseguem pagar. E também não têm rendimentos para ir para um lar. Se calhar, até são os mais invisíveis, porque sofrem de forma solitária. E têm menos hipóteses, porque não podem voltar a trabalhar. É um problema transversal a toda a sociedade.
Tem de se criar, para os prédios públicos, um programa nacional com verbas, sejam elas quais forem, para os reabilitar, para os adaptar à função residencial, e para os colocar em arrendamento acessível.
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