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André
Gouveia, CFA
Analista financeiro independente, certificado pelo CFA Institute e registado na CMVM.
Mestre em Finanças pelo ISEG.
Os novos investidores (especuladores) da pandemia
Há 2 anos - 14 de julho de 2020
André
Gouveia, CFA
Analista financeiro independente, certificado pelo CFA Institute e registado na CMVM.
Mestre em Finanças pelo ISEG.

Pensa-se que muitos dos apostadores desportivos se voltaram para os mercados financeiros, que estavam também eles a provocar “emoções fortes”.
Várias das principais corretoras online americanas, como a TD Ameritrade, E*Trade e a Charles Schwab, anunciaram ter aberto um número recorde de novas contas no primeiro trimestre do ano, a maior parte das quais em março. Em Portugal, é sabido que a população gosta de jogos de azar, mas a bolsa é menos popular do que nos Estados Unidos. Ainda assim, questionámos várias das principais corretoras online e as respostas sugerem também um interesse acrescido dos portugueses pelas bolsas.
A corretora low-cost Degiro, que opera em vários países, divulgou um aumento de 265% no número de novas contas abertas no primeiro semestre do ano, por comparação com 2019 (total de todos os países - embora não divulgue números por país, confirmou-nos que Portugal também aumentou).
O Banco Carregosa informou-nos que a abertura de novas contas cresceu 50% e a negociação aumentou 120%, no 2.º trimestre do ano face a 2019. Já a XTB, corretora mais dedicada a CFD e forex, conquistou mais do dobro dos clientes nos meses de confinamento por comparação com a média de janeiro e fevereiro, com um pico de +183% em abril.
As criptomoedas, que são um investimento especulativo particularmente popular entre os investidores mais jovens, podem também ter beneficiado. A app de pagamentos Revolut, comunicou um aumento de 60% na negociação de criptomoedas em abril e maio. Contudo, este dado deve ser contextualizado, já que anteriormente negociar criptomoedas era uma possibilidade exclusiva dos planos pagos da Revolut, tendo sido agora aberta aos clientes gratuitos.
Euforia invulgar dos mercados
O comportamento dos mercados financeiros desde que começou a pandemia de covid-19, com as quedas e a recuperação mais rápida da história de alguns dos principais índices de referência, é já um case study.
No seu Global Stability Report de junho, o FMI constata que a diferença entre as cotações dos títulos e os valores estimados para os ativos, com base nos seus dados fundamentais, está em máximos históricos ou perto disso, na maioria das economias desenvolvidas (com destaque para os Estados Unidos e Japão). O que significa que nos últimos 30 anos muitos mercados nunca estiveram (aparentemente) mais sobrevalorizados do que hoje.
Toda esta euforia foi o contexto perfeito para o aparecimento de novos especuladores que parecem investir na bolsa como quem faz apostas desportivas ou joga num casino, e que estão a agitar os mercados.
Um caso paradigmático desta euforia é o da empresa de carros de aluguer Hertz, que foi uma das vítimas da pandemia. O seu negócio foi profundamente afetado pela paralisação quase total do transporte aéreo e do turismo.
A Hertz não resistiu e apresentou um pedido de insolvência para se proteger dos credores (o célebre Chapter 11 da legislação dos EUA) a 22 de maio. A cotação, que já tinha caído 82% face ao valor do início do ano, perdeu nessa sessão 80% do valor remanescente, caindo para 0,55 dólares.
No entanto, para surpresa do mundo financeiro, a cotação começou dias depois uma escalada vertiginosa, multiplicando por 10 o seu valor até ao fecho de 8 de junho. Só entre 3 e 8 de junho valorizou 577%, sem nada que o pudesse verdadeiramente justificasse.
O caso tornou-se verdadeiramente surreal quando a Hertz anunciou uma oferta de 500 milhões de dólares em novas ações. Algo praticamente inédito para uma empresa que acabou de apresentar insolvência, pois o capital arriscava-se a passar diretamente dos acionistas para os credores.
E a própria Hertz alertava os potenciais investidores, no prospeto apresentado à Securities And Exchange Comission (SEC, o regulador das bolsas), que após os procedimentos judiciais, as suas ações poderiam não ter qualquer valor. Teve de ser a SEC a proteger os investidores deles próprios, forçando a Hertz a desistir da oferta.
Mas há outros exemplos extremos. Veja-se o caso da Nikola, que chegou recentemente à bolsa. A empresa assume-se como uma Tesla versão 2.0 (até no nome: Nikola é o primeiro nome do inventor Nikola Tesla), e pretende inovar com camiões movidos a hidrogénio (tecnologia de células de combustível). A Nikola ainda não produziu nem vendeu nenhum veículo, no entanto o seu valor de mercado já está ao nível da Ford (24 mil milhões de dólares).
Sempre existiu especulação nos mercados, mas este extremo é invulgar. Comprar ações de empresas falidas, ou de um construtor que ainda não vende carros mas já está entre os mais valiosos do mundo, é quase jogar na lotaria. O que se calhar não acontece por acaso.
Os apostadores desportivos
Na Europa, o mercado do jogo online contabilizava receitas brutas superiores a 22 mil milhões de euros em 2018, e a crescer 10% ao ano. 42,5% destas receitas eram apostas desportivas. Nos Estados Unidos, onde as apostas desportivas eram ilegais na maioria dos estados mas começaram a ser despenalizadas em 2018, o mercado era mais pequeno: cerca de 10 mil milhões de dólares em meados de 2019. Mas pensa-se que o mercado ilegal (com as apostas feitas através dos infames “bookies”, ubíquos nos filmes de Hollywood) é muito maior, cerca de 150 mil milhões de dólares.
Ora a partir de março, com a pandemia, muitos americanos viram-se confinados às suas casas e com dinheiro na mão, graças aos cheques enviados pelo governo. Contudo, as apostas desportivas não eram uma opção, já que a generalidade das competições desportivas estavam suspensas. Pensa-se que muitos destes investidores se voltaram para os mercados financeiros, que estavam também eles a provocar “emoções fortes”. O certo é que celebridades online ligadas às apostas passaram a dar dicas sobre ações, sem grandes preocupações de análise financeira.
Um símbolo desta tendência é David Portnoy, que fundou um site de apostas desportivas (Barstool Sports). Portnoy, com 1,5 milhões de seguidores no Twitter, converteu-se de apostador em day trader, e trouxe para a bolsa o seu estilo satírico e polémico: disse que Warren Buffet estava acabado como investidor, declarou que “as ações só sobem”, e investiu em ações tirando letras à sorte.
Contudo, os apostadores não foram obviamente os únicos novos investidores a chegar ao mercado. Há uma nova tendência a atrair neófitos para o mercado: comprar e vender ações sem custos.
Os investidores RobinHood
No que toca a simplicidade e negociação sem custos, há um nome incontornável atualmente nos EUA: a Robinhood. Começando como uma startup , a Robinhood propôs-se democratizar os mercados ao introduzir a possibilidade de comprar e vender títulos sem custos, no que está agora a ser imitada por outras corretoras.
A Robinhood apela a uma camada demográfica semelhante à que vê e aposta em desportos: 80% dos clientes são homens, com idade média de 37 anos.
Com um interface simples (há quem compare a um jogo móvel), e funcionalidades como permitir comprar frações de ações possibilitando por exemplo investir 100 dólares em ações da Amazon que valem cada uma mais de 2000 dólares, a transição para as bolsas fica muito fácil.
A Robinhood registou um crescimento extraordinário durante a pandemia, ao ponto de “investidor Robinhood” ser quase sinónimo de investidor sem grande experiência e capital.
As peças do puzzle parecem encaixar-se, pois um estudo da firma DataTrek Research revela que, entre as 20 ações mais detidas pelos investidores da Robinhood no final de maio/início de junho, a Nikola chegou a ser a segunda ação mais detida, e a Hertz a quarta.
As restantes ações incluíam empresas vítimas da pandemia, como linhas aéreas e companhias de cruzeiro, e tecnológicas populares, como a Apple, Amazon ou Tesla. Por enquanto, os “Robins dos Bosques” têm feito jus ao nome, pois estas ações têm tido um bom desempenho comparativamente ao mercado.
A situação não vai manter-se para sempre. Voltando à Nikola e à Hertz: a 6 de julho, os dados da Robinhood mostram que estas ações caíram para 51ª e 52ª entre as 100 mais detidas, respetivamente, e os gráficos da popularidade ao longo do tempo mostram que o abrandamento na entrada de novos investidores coincidiu com a inversão da tendência positiva das cotações. Claro que correlação não implica causalidade. Os clientes da Robinhood podem estar a seguir uma estratégia ingénua de comprar o que mais sobe. O certo é que, temporariamente, parece estar a resultar.
Que lições a tirar?
É sempre perigoso tentar explicar os movimentos do mercado com um único dado. Há vários fatores muito mais poderosos que levaram às valorizações atuais, como a falta de alternativas de investimento devido às políticas de juros baixos ou as diversas tendências que favorecem as empresas tecnológicas (a própria pandemia foi benéfica a diversos níveis).
No entanto, há alguns aspetos a levar em conta para a estratégia de investimento de cada um.
Em primeiro lugar, as nossas análises têm vindo a indicar que o mercado americano está a ficar muito sobreavaliado, em concordância com os números do FMI. Ora, é no mercado americano que as tendências que abordámos parecem ser mais fortes, e é crível que percam força com o levantamento do desconfinamento e o regresso das competições desportivas.
Em segundo lugar, os investidores devem ter presente o racional por detrás de cada investimento. Não cometa o erro clássico de transformar um investimento especulativo que corre mal num investimento a longo prazo, para evitar assumir perdas.
- Mantenha-se afastado de situações como a Nikola e especialmente a Hertz. São puramente especulativas e têm tudo para correr mal.
- Cuidado com empresas cujas cotações caíram muito devido à pandemia mas em que o seu negócio foi também muito afetado, como as linhas aéreas ou as empresas de cruzeiros. Podem não estar necessariamente baratas, pois o negócio pode não voltar aos níveis pré-crise, e nalguns casos podem mesmo ocorrer falências. Não inclua demasiados títulos destes na sua carteira, e prefira os que estão financeiramente mais fortes, com menos dívida (consulte por exemplo a autonomia financeira, a proporção do balanço que é financiado pelos capitais próprios) e maior capacidade de fazer face ao pagamento dos juros (monitorize a cobertura dos juros da dívida pelo EBITDA, por exemplo).
- No caso das tecnológicas, como referimos têm muitos pontos fortes. Mas tenha em mente que à medida que passa, por exemplo, de uma Intel (bom crescimento, muito rentável e barata) para uma Apple (grande crescimento e rentabilidade mas não está muito barata), para uma Amazon (grande crescimento mas menos rentável e cara) ou para uma Tesla (crescimento a desacelerar e dificuldade para apresentar lucros mas extremamente cara), o investimento é cada mais suportado nas expectativas e valorizações passadas, e menos na realidade.
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