O que é o MiCA e porque foi criado?
O mundo das criptomoedas entrou numa nova era a partir de 2024 com a entrada em vigor do MiCA (Markets in Crypto-Assets), o primeiro quadro regulamentar abrangente da União Europeia para este setor.
Criado para proteger investidores, reforçar a confiança no mercado e reduzir riscos sistémicos, este regulamento procura uniformizar regras em todos os Estados-membros, colocando ordem num espaço que nasceu justamente para escapar à regulação.
Quando entrou em vigor o MiCA e o que cobre
A aprovação formal do MiCA ocorreu em 2023, após longos debates e adiamentos, tendo sido concluída em maio com a adoção pelo Conselho da União Europeia.
O Parlamento Europeu já tinha dado luz verde, e as regras começaram a ser aplicadas de forma faseada: desde 30 de junho de 2024 entraram em vigor as disposições relativas às stablecoins — tokens referenciados a ativos (ARTs) e tokens de dinheiro eletrónico (EMTs) — e a 30 de dezembro de 2024 o regulamento passou a abranger a generalidade dos prestadores de serviços de criptoativos (CASPs).
Quais os impactos para investidores e empresas?
O objetivo central é regular as empresas que emitem, negoceiam ou guardam criptoativos fungíveis, como criptomoedas e tokens digitais. Ficam de fora, pelo menos por agora, os NFT (tokens não fungíveis).
O regulamento estabelece requisitos de transparência, proteção de dados, governação corporativa, diligência prévia (due diligence) e identificação de clientes, com a finalidade de rastrear transações e prevenir branqueamento de capitais ou financiamento do terrorismo. Também obriga estas entidades a comunicar operações suspeitas às autoridades competentes.
Para operar, as empresas devem obter uma autorização junto da autoridade nacional de cada Estado-membro, cumprindo critérios como requisitos mínimos de capital, políticas robustas de gestão de risco e salvaguardas de cibersegurança. As entidades autorizadas passam a integrar um registo europeu centralizado de prestadores de serviços e ficam sujeitas a supervisão contínua, com auditorias, monitorização e possibilidade de sanções ou medidas corretivas.
Principais desafios e próximos passos
Um dos pontos fortes do MiCA é a eliminação da fragmentação regulatória dentro da UE: uma licença obtida num Estado permite o chamado “passaporte europeu”, isto é, a possibilidade de operar em todos os países do bloco sob as mesmas regras. Contudo, este mecanismo já levanta polémica.
Desde o início de 2025, vários reguladores — em particular França e Itália — manifestaram receios de que alguns países adotem critérios mais brandos, facilitando a chamada “arbitragem regulatória”. Há até ameaças de bloquear o acesso de entidades estrangeiras licenciadas se houver desconfiança quanto ao rigor da supervisão de origem.
Em paralelo, organismos europeus como a ESMA (Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados) e a EBA (Autoridade Bancária Europeia) publicaram normas técnicas e orientações. Entre os temas tratados estão requisitos de segurança informática, gestão de conflitos de interesse, registos operacionais e medidas específicas para stablecoins.
Em janeiro de 2025, a ESMA determinou que os tokens que não estivessem em conformidade deixassem de ser oferecidos ou admitidos em plataformas de negociação, reforçando a necessidade de adaptação dos emissores.
Ao mesmo tempo, vários países aprovaram leis nacionais para designar autoridades competentes e enquadrar regimes de transição. No Luxemburgo, por exemplo, a CSSF ( Commission de Surveillance du Secteur Financier) assumiu essa função. Os prazos para adaptação variam, podendo estender-se até julho de 2026 para empresas que já operavam antes da entrada em vigor do MiCA, embora novos prestadores já só possam atuar sob o novo regime.
Do lado da indústria, a reação é mista. As grandes plataformas globais, como a Binance e a Coinbase, encaram a regulação como um marco histórico que dá legitimidade ao setor e abre caminho à entrada de investidores institucionais. Já algumas startups e empresas menores temem que os custos de conformidade — em termos de capital, auditorias, tecnologia e processos internos — sejam demasiado elevados, limitando a inovação e a concorrência.
Os impactos vão além das plataformas cripto. A autoridade europeia para seguros e pensões propôs requisitos de capital de 100% para seguradoras que detenham criptoativos, mesmo stablecoins, o que pode travar a sua adoção por parte do setor financeiro tradicional. Por outro lado, a regulação pode aumentar a liquidez e atrair bancos e fundos para o mercado europeu, uma vez que reduz a incerteza jurídica e estabelece padrões mínimos de governação.
Apesar de ser pioneiro e reconhecido internacionalmente como modelo, o MiCA não é considerado perfeito. A presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, já admitiu a necessidade de um eventual “MiCA II” para cobrir áreas não abrangidas, como determinados serviços de finanças descentralizadas (DeFi) ou NFTs.
O regulamento também enfrenta desafios de implementação: uniformizar a terminologia e a tradução legal em todos os países, dotar as autoridades nacionais dos recursos técnicos necessários, promover a capacitação dos supervisores e assegurar uma cooperação eficaz entre jurisdições.
MiCA vs EUA e Reino Unido: panorama regulatório após 2025
Enquanto o MiCA consolidou a liderança da UE em regulação cripto com um regime abrangente já em aplicação completa desde dezembro de 2024, os Estados Unidos e o Reino Unido avançaram de forma distinta — especialmente com a promulgação do Genius Act nos EUA em julho de 2025.
Nos EUA, o Genius Act instituiu regras federais para payment stablecoins, obrigando emissores a manter reservas 1:1 com ativos seguros, proibindo stablecoins com rendimento embutido e impondo requisitos rigorosos de transparência. Ele representa o primeiro marco federal nos EUA a regulamentar stablecoins de forma clara, mas a sua aplicação completa dependerá de regulamentações adicionais e prazos estratificados (possivelmente até 2027–2028).
O MiCA já vigora na União Europeia, cobrindo uma ampla gama de criptoativos e prestadores de serviços, com regras harmonizadas, supervisão cruzada e a exigência de presença autorizada para operadores de fora da UE. O modelo europeu destaca-se pela uniformidade e centralização.
No Reino Unido, o regime ainda está em construção, com foco em exchanges e corretoras e previsão de novas regras até o fim de 2025. A proposta concede maior flexibilidade a emissores estrangeiros, tentando equilibrar a integridade regulatória e a competitividade.
Em síntese, a UE já oferece clareza e abrangência, os EUA criaram um quadro específico mas ainda limitado, e o Reino Unido procura um caminho intermédio. A disputa regulatória global acelera, e vencerá quem alinhar segurança com inovação.
O futuro do mercado cripto até 2026 com o MiCA
O sucesso do MiCA dependerá da sua aplicação prática e da capacidade de adaptação às rápidas inovações do setor. Uma regulação demasiado restritiva poderá travar o desenvolvimento, enquanto falhas na supervisão podem pôr em causa a credibilidade do quadro legal.
Até julho de 2026, período final de transição, será testada a eficácia deste regime que procura equilibrar inovação e proteção, num mercado que, até há pouco tempo, se orgulhava de ser livre de regras
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