O perfil do investidor de hoje difere muito do investidor de 2002, quando a Bolsa de Lisboa foi adquirida pela Euronext?
Sim, o perfil do investidor alterou-se desde o início do século XXI, com a integração da bolsa portuguesa no grupo Euronext e com a introdução da moeda única, que facilitou e permitiu uma muito maior circulação de capitais na Europa.
Aliás, a ideia do mercado único de capitais vem sendo consolidada desde essa altura. Portanto, as empresas cotadas que, na altura, tinham como acionistas, maioritariamente, investidores nacionais, foram passando progressivamente a ter mais investidores internacionais.
Isso foi um processo bastante progressivo, porque não só os investidores portugueses passaram a investir de forma muito mais diversificada, não apenas em títulos nacionais, mas também em títulos internacionais, e o movimento contrário também ocorreu. A percentagem de investidores internacionais que investem nas empresas portuguesas rondará os 80 por cento.
Como sabem isso?
Não temos informação do investidor final, porque o investidor final não transaciona diretamente na nossa plataforma. As ordens vêm através de intermediários financeiros.
Portanto, estes 80% correspondem aos negócios intermediados por instituições financeiras que nem sequer têm a presença física em Portugal. Daí, inferimos, com boa probabilidade, que a maior parte, não a totalidade, dessas transações são de investidores financeiros internacionais.
Se olhar para a estrutura acionista das empresas cotadas, que é pública, nos respetivos sites, verifica que a maior parte dos investidores identificados, tirando alguns investidores de referência, são internacionais.
O mercado tornou-se completamente aberto, integrado, internacional, global. Dito isto, temos uma outra característica interessante, que é a participação do investidor de retalho.
Qual é o peso do investidor de retalho no mercado de capitais nacional?
Portugal é dos países da Europa onde o investidor individual tem maior peso na negociação. É, sensivelmente, três vezes a média europeia. Nos outros países da Euronext, a percentagem de retalho da negociação ronda os 4% ou 6 por cento.
Em Portugal, cerca de 15%, dependendo dos meses. É um número bastante interessante e que aumentou nos últimos anos devido, sobretudo, a dois fenómenos. O primeiro foi a pandemia da covid-19, que obrigou as pessoas a ficarem em casa, sobretudo os jovens, literatos, tecnológica e financeiramente, que começaram a pensar na sua vida financeira.
Muitas pessoas passaram a ser mais ativas nos investimentos que fazem. Um segundo fenómeno tem sido a vinda de estrangeiros para Portugal. Nós acolhemos cerca de um milhão de estrangeiros, uns residentes a tempo inteiro, outros residentes a meio tempo, alguns dos quais com níveis de riqueza elevada e que estão a investir, através do sistema financeiro português, uma parte da sua riqueza em ativos financeiros que estão cotados na Euronext Lisboa.
Significa que os residentes estrangeiros a residir em Portugal transacionam no mercado português?
Transacionam através dos intermediários financeiros portugueses, que estão ligados à Euronext, e transacionam os títulos computados na Euronext, sejam portugueses, franceses, ou italianos, etc. Mais recentemente, há um outro movimento interessante que é a apetência pelo mundo das criptomoedas, que tem levado muitos jovens a entrarem neste mundo do investimento.
Tenho um exemplo em casa, um filho com 21 anos que me disse, da primeira vez que conversámos sobre investimentos, que conhecia bem essa coisa das criptomoedas. E eu pensei, “pois, mas vais ter que conhecer outras coisas, não só criptomoedas”. Isto é só para exemplificar a forma como muitas vezes os jovens se iniciam hoje em dia nos investimentos.
Há falta de literacia nas escolas, nas universidades, mas na internet há muita informação e, muitos destes jovens começam por comprar umas criptomoedas, às vezes para testar e perceber um bocadinho do mundo do investimento. Mas há muito mais no mundo do investimento do que de criptomoedas.
Depois começam também a investir em ações, em fundos, ou seja, é um caminho de aprendizagem. O mundo financeiro está, portanto, a alargar-se também para os mais jovens.
O perfil é menos conservador?
Não temos estudos de perfil em Portugal. Por isso, não sou capaz de lhe dizer se é um perfil mais arriscado ou não. Mas os casos pontuais que vou observando apontam para cripto e depois ações, instrumentos com mais risco.
Só depois olham para os ETF, para os fundos ou obrigações. Muito poucos sabem o que são obrigações, um instrumento com menos risco.
Um instrumento com menos risco e também com muito pouca tradição em Portugal. As emissões feitas para o retalho são poucas.
Podiam ser mais, efetivamente, mas, no último ano e meio, houve um aumento significativo. Se olhar para os números e para os exemplos, tivemos, em 2024, a Mota Engil, a Cuf, que nunca tinha entrado neste mercado, a Vista Alegre, que nunca tinha entrado neste segmento, a Mendes Gonçalves, uma obrigação social, a Greenvolt, na energia, a SIC, na área dos media.
Portanto, tem havido um aumento progressivo de emissões para o retalho, o que é uma tendência também interessante, porque há procura. Quando falamos com os bancos e intermediários financeiros, eles dizem-nos que há, de facto, procura por instrumentos de dívida, assim houvesse mais empresas a ir ao encontro dessa procura.
Que conselhos daria a esses jovens investidores?
O primeiro aspeto importante é saber bem o que se está a fazer. Ou seja, aprender sobre investimentos, princípios e instrumentos básicos, nível de risco e rendibilidade esperada. Olhar para o mercado de uma perspetiva histórica, ver o que aconteceu no passado e como os ciclos económicos se repetem.
Os ciclos de mercado também se repetem, o que é uma enorme aprendizagem. Nunca mais esqueço a surpresa com que muitas pessoas viram as quedas de mercado em 1987, 2000 ou 2008. É muito importante perceber esses elementos para que os investidores não sejam apanhados de surpresa num ciclo negativo.
Quando fazia aqui sessões de receção a jovens universitários, académicos, etc., um dos primeiros gráficos que lhes mostrava era a evolução das cotações desde o início do século passado. Os ciclos, para cima, para baixo, a tendência, para perceberem que podem ser apanhados a comprar quando os preços estão em cima e depois terem que vender quando os preços estão em baixo.
É preciso que percebam bem os riscos do mercado e, depois, os riscos individuais de cada um dos instrumentos. Portanto, o primeiro conselho é estudar, aprender, perceber e, sobretudo, não investir em algo que não se percebe o que é. Esse é outro conselho fundamental.
E depois, claro, a diversificação, que depende muito também do montante que se tem para investir, o horizonte e os objetivos do investimento. Se eu poupar para comprar um carro daqui a seis meses, a forma como irei aplicar a minha poupança tem que ser completamente diferente se eu estiver a poupar para comprar uma casa daqui por cinco anos, ou para a minha reforma daqui por 30, ou 20, ou 15 anos.
Em resumo, a forma como constituímos a poupança depende do objetivo para o qual estamos a constituí-la, e está relacionado com o horizonte temporal. Estes são, resumidamente, os princípios básicos.
Atualmente, os mercados são mais voláteis, reagem mais rapidamente a notícias, relegando, às vezes, para segundo plano os elementos fundamentais das empresas. Isso não põe em causa estes ensinamentos de mercados?
Tenho a convicção que, embora possamos ver, às vezes, alguma volatilidade adicional resultante de algumas afirmações pontuais de certas pessoas muito específicas, observamos que, no dia seguinte ou três dias depois, movimentos de correção dessas afirmações.
Porque, no final do dia, o que conta na valorização são os fundamentais da empresa. Mais tarde ou mais cedo, tem que se fazer ouvir.
Mas, com os protagonistas que hoje temos na maior economia do mundo, já nada me surpreende. Vimos recentemente a criação de uma memecoin Trump e uma memecoin Melanie. Em face disto, muito pouca coisa me pode surpreender.
Têm alguma iniciativa de literacia financeira para jovens?
Em outubro, vamos lançar o Euronext Trading Game, para universitários que queiram registar-se e constituir uma carteira de ações e ETF durante um determinado tempo.
O objetivo é ser uma experiência muito didática, educacional. Este instrumento de literacia financeira tem uma série de informações sobre investimento, arquivos educacionais, que permitem testar, experimentar os mercados financeiros.
Qualquer estudante universitário pode participar a título individual ou em grupo, pode até constituir uma equipa. Em março, faremos testes com um grupo muito restrito de estudantes e de pessoas da Euronext, para ver se é necessário ajustar alguma coisa. Já estão a ser feitos contactos com universidades, com vista a arranjar participantes para outubro.
O desafio decorre durante quanto tempo?
Até maio de 2026, nos sete mercados Euronext. Haverá um campeão nacional, alguém que chegou ao final com mais rendimento, maiores ganhos, que disputará depois a final europeia com os restante seis finalistas.
O vencedor receberá um prémio monetário, que ainda falta definir. Durante muito tempo apoiámos o Investment Challenge, mas teve as suas vicissitudes, e fizemos um interregno. Agora surgiu a oportunidade de lançarmos um instrumento didático, com estas características. Estamos muito satisfeitos por termos esta oportunidade.
Não é apenas o investidor de retalho que carece literacia financeira. Com vista a colmatar a falta de literacia das empresas, a Euronext lançou a 10ª edição do programa IPO Ready. Em que consiste?
Nós fazemos muito trabalho de literacia de mercado ou capacitação às empresas. O tema de abrir o capital em mercado, emitir obrigações, o que significa estar cotado, é um trabalho que nós fazemos há muito tempo.
O IPO Ready é um dos exemplos desse trabalho. É um programa, com duração de seis meses, sensivelmente, que consiste em, durante várias sessões com vários parceiros, explicar de A a Z o porquê de ir para o mercado, como se faz, a vertente das ações, do capital, da dívida, quanto custa, desafios, etc. Passamos de A a Z e chamamos-lhe um PREC horizonte para fazer um IPO, de 1 a 3 anos.
Algumas empresas participam, mesmo não tendo esse horizonte muito definido, porque entendem que isso faz parte da formação financeira dos seus colaboradores, dos seus dirigentes.
Este ano, temos um número de empresas participantes um pouco acima da média: 18 empresas portuguesas, algumas das quais com dimensão, outras mais pequenas, e bastante diversificadas em termos de setores: tecnológico, IT, industrial, saúde, energia, construção, imobiliário, o que significa que o tema está a suscitar interesse.
Que tipos de parceiros colaboram neste programa?
São entidades a que, por norma, a empresa precisa de recorrer quando faz um IPO. Tipicamente um banco de investimento, para apoiar a construção do business case e o processo de colocação dos títulos.
Uma agência de comunicação, porque é preciso, às vezes, aprender e controlar a comunicação com os investidores. Uma empresa de auditoria, porque é preciso auditar as contas e os relatórios de informação e outro tipo de informação que as empresas têm que publicar quando estão cotadas, e, por fim, um escritório de advogados porque há um prospeto que é preciso rever.
Temos também um outro programa que lançámos em Portugal, no final de 2023, que se chama Elite. Nasceu porque constatámos que, para muitas empresas, o mercado de capitais não é um caminho. Têm outras questões para endereçar e resolver antes de estarem preparadas para a bolsa. Por essa razão, ajudamos essas empresas a progredirem.
Muitas vezes são desafios de crescimento, que podem ter a ver com a governance da empresa, como se organizam em termos da sua estrutura de direção e organização, inovação, investigação e desenvolvimento, novos produtos, ou pode ser um desafio de internacionalização.
Portanto, é um programa de um ano, com três grandes vetores: capital de conhecimento, capital de networking e capital financeiro.
Em que consistem?
O capital de conhecimento é feito em parceria com universidades. Neste momento, estamos a trabalhar com a Nova School of Business and Economics, em Lisboa, e com a Católica School of Business and Economics, no Porto. No grupo de Lisboa, temos também uma parceria com o World Trade Center, porque tem um foco muito grande em internacionalização.
Passada esta primeira fase, cada uma das empresas faz uma autoavaliação e reflexão com a equipa do Elite, revisitam os seus planos de negócios e avaliam as áreas em que querem efetivamente progredir.
Vamos supor que a empresa decide querer expandir para um determinado país, ou fazer uma emissão de obrigações. A equipa do Elite tem uma série de parceiros associados ao programa que ajudará a concretizar esse objetivo.
Portanto, pode ser qualquer coisa dentro deste espetro que acabei de referir. Desde uma operação de M&A a um private equity, a um capital de risco, a uma emissão de obrigações... 29 empresas já fizeram ou estão a fazer o Elite em Portugal. Algumas estão agora a fazer o IPO Ready.
Relativamente ao IPO Ready, apenas uma empresa, a Raize, entrou no mercado. Quais eram as vossas expectativas em termos de resultado?
Neste momento, estamos num contexto de wake up call. A economia europeia tem que repensar a sua competitividade. O pilar do financiamento, ou seja, da canalização da poupança para investir em capitais permanentes, tem que sofrer, também, alguma alteração.
Passámos, de facto, 10 anos difíceis, desse ponto de vista, mas sempre convencidos de que temos uma proposta de valor, que, de alguma maneira, será reconhecido. Temos tido mais sucesso no mercado de obrigações, claramente, e isto é um trabalho que se vai fazendo em contínuo.
Ao reconhecermos que o mercado de capitais é mais uma solução para grandes empresas do que para mais pequenas, lançámos o programa Elite. Portanto, hoje temos uma oferta mais diversificada. Esta evolução natural não é específica do mercado português, é uma realidade em toda a Europa.
O peso da capitalização bolsista da bolsa portuguesa representa hoje menos de 30% do PIB. Houve grandes empresas que saíram da bolsa portuguesa e não houve entradas correspondentes.
Há um movimento internacional, estrutural, mesmo nas bolsas americanas, de redução de empresas cotadas. Atualmente, há metade do número de empresas cotadas que havia há 20 ou 30 anos. Há menos empresas, entram menos empresas, porque há muito mais fusões e aquisições. As empresas entram, também, mais tarde.
Tem sido um movimento que temos observado internacionalmente, sempre, obviamente, notando uma diferença de dinamismo entre os Estados Unidos e a Europa. É um facto. Portanto, é uma tendência estrutural a que economia portuguesa não é alheia, nem imune.
Portugal passou por algumas dificuldades específicas, que outros países não passaram e que conhecemos bem. Por exemplo, a crise da dívida soberana. Isso deixou as suas marcas, há que reconhecê-lo. Dito isto, 30% não é assim tão pouco comparativamente em termos internacionais.
Temos algumas empresas e alguns setores onde tem havido financiamento intenso em mercado. No setor da energia, a EDP, a EDP Renováveis, a REN e a Greenvolt fizeram aumentos de capital muito significativos. Se somarmos os últimos cinco anos, foram, provavelmente, em capital 2,5 mil milhões de euros, o que é um valor muito significativo.
Em emissões de dívida, passaram os 10 mil milhões, na sua totalidade. Portanto, a transição energética em Portugal está a ser feita com financiamento do mercado de capitais, que é uma das mudanças estruturais mais importantes na economia portuguesa.
E não só em Portugal, porque a EDP, à semelhança da Greenvolt, tem grande parte da sua operação no estrangeiro. Por exemplo, esta semana [primeira semana de janeiro] houve o anúncio de que a EDP ganhou o concurso de um enorme parque eólico no Japão, em Fukushima, onde houve o problema com a central nuclear.
Este é apenas um exemplo de como o mercado de capitais não só está a financiar a nossa transição energética, mas também está a financiar a transição energética um pouco também por todo o mundo.
Portanto, se me disser que devia haver mais empresas portuguesas a usar esta oportunidade, devia, claramente, haveria mais benefício. Mas temos tido algumas, e em setores estratégicos e em setores-chave têm a utilidade.
Também houve alguns acontecimentos que fizeram história e deixaram mossa nos investidores, em certos aspetos.
Eu diria não só as quedas de mercado, mas também alguns acontecimentos ao nível da governação das empresas, que também foram muito negativos e deixaram alguns danos nos investidores.
Poderíamos ter uma base de investidores institucionais muito mais sólida se fosse estimulado o terceiro pilar da Segurança Social, o pilar privado de poupança, com incentivos, designadamente fiscais? Aquilo que observamos noutras economias, onde o mercado de capitais é mais forte, onde há mais investimento e crescimento, é exatamente nos países onde existe uma base de investimento institucional forte.
Penso que também o segundo pilar, que é o dos fundos de pensões, é um pilar muito importante, porque, como disse, os fundos de pensões são os grandes investidores institucionais nos mercados financeiros. Todavia, este pilar é praticamente inexistente em Portugal, tem um peso muito reduzido, porque não foi incentivado.
A gestão de um fundo de pensões é uma tarefa difícil, administrativa pesada e com risco. Eu passo muito tempo a garantir que o dinheiro do fundo dos nossos colaboradores está a ser bem investido.
Se queremos desenvolver este pilar, temos que o incentivar de alguma maneira. Porque é muito mais fácil pagar salário e dar um carro do que gerir um fundo de pensões para os colaboradores.
Portanto, temos que ter essa visão e essa perceção e eu estou completamente de acordo acho que é um pilar que devia ser desenvolvido mas para isso tem que ser apoiado, incentivado, mais incentivado a nível também de benefícios talvez, de qualidade para as empresas e para os colaboradores.
Houve quem sugerisse no passado retirar, por exemplo, um ponto percentual à TSU que as empresas pagam...
Claro que há opiniões divergentes. Mas isso é o que nós observamos nos países onde, de facto, o mercado de capitais, o investimento, o crescimento económico é mais intenso.
Tenho usado recentemente um exemplo de que gosto muito, que é o exemplo da Suécia. Está a ser, aliás, analisado por muitos outros países. Eles criaram o regime em 2012, com os vários pilares, o da segurança social, da poupança para financiar as pensões, e o pilar dos benefícios fiscais para investidores individuais, que investem naquelas contas que só podem ser aplicadas em ações, obrigações e outros instrumentos de mercado.
Depois tem uma simplificação enorme, porque como a tributação incide sobre o valor da carteira e não sobre os dividendos, os juros, as mais-valias, etc., os bancos de custódia, que têm os títulos, chegam ao fim do trimestre, fazem a continha, aplicam aquela taxa, que é uma taxa única, sobre o valor da carteira, entregam o imposto ao Estado e o investidor, o contribuinte, nem tem que fazer nenhuma declaração. Isto é extraordinário!
Passaram de 120 mil investidores, em 2012, para 4 milhões hoje em dia, um país que tem exatamente o mesmo número de habitantes que Portugal, 10 milhões. Às vezes, não é preciso inventar a roda, é só copiar os bons exemplos.
A Euronext já tem sete mercados. Pensam atrair o maior mercado da União Europeia, o de Frankfurt?
A Euronext tem feito um caminho de integração de várias bolsas numa única plataforma de negociação e também de post-trade, de cleaning. E agora estamos a trabalhar para integrar a área de liquidação e de custódia de títulos, onde temos presença, naturalmente.
Esta trajetória tem trazido enormes benefícios, não só sinergias enquanto empresa, mas para os investidores, intermediários financeiros e empresas cotadas, porque tem um potencial de atrair muito mais liquidez, muito mais investimento. Portanto, esta é a nossa proposta de valor. Se integrarmos mais, o valor sobe? Claro que sim. São economias de escala.
O mercado de Frankfurt é gigante e temos uma base regulatória comum. Uma das grandes vantagens da integração europeia, no que se refere ao mercado de capitais, foi ter criado uma legislação completamente harmonizada no espaço da União Europeia, sem a qual, aliás, não teria sido possível construirmos esta plataforma única.
Imagine o que seria se cada país tivesse as suas regras de negociação e de listing? Impossível! No fundo, a Euronext não é mais do que a materialização, em termos de infraestrutura, da visão que existia e que existe relativamente à utilidade de termos um mercado de capitais único, através também de uma plataforma de infraestrutura de mercado, que não é única, mas que já integra muitas empresas, muitos investidores e intermediários financeiros.
Dito isto, há um limite para além do qual há muitas dúvidas de que consigamos ir, que é o limite das regras da concorrência europeia. Ou seja, os reguladores e os políticos concordam em geral que um mercado europeu mais integrado traz mais benefício, mas não querem eliminar completamente a concorrência.
E, portanto, a nossa evolução, ou o nosso crescimento, ou o ponto até o qual nós nos vamos conseguir integrar outras praças, é um bocadinho o equilíbrio entre a oportunidade que surgir, porque, para alguém comprar é preciso que alguém queira vender, e as leis da concorrência.
Stéphane Boujnah, CEO do grupo Euronext, disse, recentemente, que o objetivo é serem “campeões globais” dos mercados financeiros.
Essa fusão com a Frankfurt está fora dos planos, digamos, para já. Não posso dizer que alguma coisa esteja fora de plano. Entendemos que ainda há margem para aproveitarmos outras oportunidades de consolidação, e que a economia europeia beneficiaria se nós integrássemos, talvez, um pouco mais.
Até onde podemos ir, como referi, depende sempre da oportunidade que nos aparecer e depois de testarmos se ela é viável ou não em termos do enquadramento legislativo.
Neste momento, quantas empresas a Euronext tem cotadas?
Temos 1800 empresas, que correspondem a cerca de 6 triliões de euros de capitalização bolsista. É mais ou menos o dobro da Bolsa de Londres e três vezes a Bolsa de Frankfurt. Portanto, a Euronext é, claramente, a infraestrutura de mercado maior da Europa neste momento.
Tentaram a Bolsa de Madrid, mas não conseguiram.
Não foi possível chegar a um acordo, e a empresa acabou por ser vendida à Bolsa suíça. Foi uma questão de preço. Entendemos, na altura, que não era compatível com as atividades financeiras.
O grupo tem, também, vindo também a aumentar o portfólio de serviços com a integração de negócios complementares. Quais são?
Com algumas aquisições que fomos fazendo, fomos introduzindo, de facto, alguns ativos adicionais. Em 2018, o FastMatch, uma plataforma de negociação de moedas, de currencies, que hoje se chama Euronext Forex. É um mercado por grosso, que está centrado nos Estados Unidos, mas também tem clientes globais.
Pouco depois comprámos a Nord Pool, uma plataforma que negocia contratos de energia, energia elétrica, muito centrada nos países nórdicos, mas também já está a expandir a sua atividade para o resto da Europa.
Esta semana [última de janeiro de 2025] anunciámos a aquisição dos contratos de futuros, de derivados, também de energia. Portanto, agora ficámos com o mercado de cash e o mercado de derivados do mesmo subjacente, que são contratos de energia elétrica.
Já tínhamos o spot e agora passamos a ter os derivados, que, aliás, também já vão integrar um portfólio que estávamos a desenvolver para os nossos clientes. Esta aquisição vai, assim, complementar aquilo que já tinha.
E o mercado de obrigações?
O mercado de obrigações é muito complexo e tem, porque há vários clientes, tipos de clientes de obrigações e várias formas de negociar obrigações. O mercado de equity é mais simples desse ponto de vista, onde existe essencialmente bolsa e fora de bolsa. Na dívida não é bem assim.
Com a aquisição da bolsa italiana, temos agora quatro plataformas de negociação de dívida, com diferentes tipos de instrumentos, de clientes e de formas de formação de preço. Essa também foi uma evolução face àquilo que era a nossa oferta antes de 2021, quando comprámos a bolsa Italiana.
Só para dar três exemplos de outros ativos que agora existem: temos muito mais ETF, muito mais ações, maior diversidade e estamos a desenvolver mais instrumentos derivados. Em 2024, lançámos mais contratos de opções sobre empresas de vários países, incluindo quatro empresas portuguesas.
Quais são?
A Galp, a EDP, a Jerónimo Martins e a EDP Renováveis. Relativamente aos novos instrumentos que estamos a desenvolver irão ser apresentados progressivamente ao longo deste e do próximo ano. Há dois ou três que já estão bem identificados.
São, por exemplo, aqueles a que nós chamamos de mini-futures, ou contratos de futuros para retalho, sobre índices de taxa de juros. Lá está, integrámos mais mercados de obrigações, instrumentos de dívida, designadamente aquele que é o mercado mais líquido de transação de dívida soberana, a plataforma MTS, onde também é transacionada a dívida portuguesa.
O MTS é um mercado por grosso, onde os especialistas de mercado - em português, chamam-se os OEVTs -, que são os primary dealers dos vários mercados da dívida soberana, negoceiam a dívida soberana de praticamente todos os países europeus. Portanto, negociam-se grandes montantes.
Os preços que são formados nesse mercado têm uma enorme qualidade, porque é um mercado extraordinariamente líquido. Com base nesses preços, nós construímos índices que incluem vários países, grupos mais pequenos, grupos maiores.
Portanto, temos vários índices e sobre esses índices vamos lançar esses contratos de futuros, mini futures, que é um produto essencialmente para retalho. No início, esse é o nosso objetivo. Depois, será adaptar o contrato para investidores institucionais, ou seja, para montantes mais elevados.
Há um timing para isso?
Este instrumento deverá ser apresentado em detalhe ainda este ano. A informação que eu tenho sobre o mercado da dívida italiano é que eles gostam de obrigações, depois gostam de obrigações e depois ainda gostam mais de obrigações. É um mercado enorme, investem muito em obrigações.
A dívida pública italiana é a maior da Europa e tem sido comprada ou vendida, se quiserem, ao longo dos anos, aos seus próprios cidadãos, que estão habituados a aplicar as suas poupanças na dívida pública do país. Isso gera muita negociação.
É um mercado muito líquido também desse ponto de vista, quer em termos de operadores profissionais, quer em termos de operadores de retalho. Por isso, há várias plataformas. Há as plataformas dos profissionais, depois há a plataforma que liga estes profissionais aos institucionais que também são profissionais, há também uma plataforma para retalho.
Referia-me também a outros negócios da Euronext...
Como dizia, a Euronext tem 1800 empresas, além dos intermediários financeiros, ou seja, dos bancos que estão ligados diretamente à nossa plataforma, que são cerca de 500.
Estas entidades precisam de serviços financeiros de ordem muito variada. Portanto, há todo um mundo de oportunidades novas de trazermos serviços a estas entidades, de preencher necessidades que não estão a ser satisfeitas da melhor forma.
Temos uma área a que chamamos de Corporate services, que consiste em prestar serviços às empresas, sobretudo, empresas cotadas, e temos uma área de Investor services, que tem menos relevância no cômputo dos nossos negócios mas está a fazer o seu caminho.
Na área de Corporate services temos um serviço de Investor relations, uma plataforma que as empresas cotadas podem utilizar, por exemplo, para comunicar com os investidores. É uma espécie de CRM, onde se registam os contactos, as reuniões, informação... tudo muito focado em plataformas digitais, em automatização de processos, que é um pouco a nossa especialidade.
Também acrescentámos um serviço de ESG Advisory, de consultoria em matéria de sustentabilidade. Para as empresas, temos uma área de Compliance, que permite-lhes, por exemplo, gerir informação privilegiada.
Temos ainda um portal para a gestão das reuniões de administrações, a que chamamos de Board portal, para que fique tudo documentado e se possa consultar facilmente.
Sobretudo em setores muito regulamentados, como a banca, isto é particularmente importante. Temos muitos clientes desta plataforma também na área financeira e na administração pública, não em Portugal, mas noutros países, que usam esta plataforma para registar as suas decisões e as reuniões dos órgãos de administração e fiscalização.
Portanto, esta é também uma área em que a Euronext tem vindo a investir significativamente e que agora está a passar muito por Portugal. O nosso centro tecnológico está a tornar-se cada vez mais um centro de serviços.
Uma das áreas que está a crescer muito no grupo é precisamente a de Corporate services e está a ser contratada aqui em Portugal, em particular no Porto. Começámos com 70 pessoas, em março de 2017, e este mês ultrapassámos as 400. A expectativa, com a mudança de instalações em agosto, será ultrapassar as 600 pessoas, no próximo ano.
Em janeiro, o Governo francês enviou à Comissão Europeia um documento no qual solicita a simplificação das regras em torno do ESG. Concorda com esta simplificação?
A posição da Euronext sobre esse tema é muito clara. A regulamentação da sustentabilidade, e quando estamos a falar de regulamentação estamos a falar de uma panóplia muito significativa de instrumentos, dos quais os três mais visíveis, atualmente, são a CSDR, a diretiva de report de sustentabilidade, a CS3D e a taxonomia que estão, enfim, a tentar simplificar numa só - chama-se agora Omnibus Directive.
Somos uma das entidades que mais tem defendido que a legislação, a regulamentação, foi claramente longe de mais. Nós próprios somos alvo dessa regulamentação, tivemos que aplicá-la este ano, pela primeira vez, num report de sustentabilidade, porque somos uma empresa cotada com qualquer outra.
A conclusão clara no que nos diz respeito é que é um exercício que, na sua esmagadora maioria, não traz nenhum impacto positivo. Só temos custo, trabalho e nenhum benefício correspondente.
Dito isto, somos completamente favoráveis à simplificação. E até fizemos um documento que entregámos à Comissão Europeia esta semana, exatamente com uma série de ideias sobre como se deve proceder a esta simplificação, ou seja, o que é que deve ficar dentro da Omnibus Directive e o que devemos, efetivamente, simplificar. A componente ambiental está regulada em detalhe. É essa que tem que ser simplificada.
Se vir o plano estratégico da Euronext, temos três pilares de desenvolvimento de negócio e três pilares transversais. E um dos pilares transversais é exatamente continuar a apoiar o desenvolvimento das finanças sustentáveis.
Ou seja, tudo o que possamos fazer para canalizar poupança, melhorar a sustentabilidade do planeta, para as próximas gerações, continuaremos a fazê-lo, independentemente de alguns reveses políticos ou vozes políticas que possam andar para trás ou para a frente sobre esse tema.
A Euronext, enquanto empresa, continua convicta que esses temas são críticos, são estruturais e vamos precisar de continuar a fazer progredir essa agenda. Temos que fazer o que tem impacto verdadeiramente e não aquilo que tem muito custo e pouco impacto. É essa a nossa posição muito clara. Aliás, fizemos uma outra proposta também, em dezembro, que é o chamado prospeto único.
A Euronext foi a primeira entidade a propor a utilização do mecanismo 28, um template único de prospeto para as emissões de ações simplificado e igual para todos os países onde estamos presentes. Este foi o nosso contributo nessa agenda da simplificação, e estamos a trabalhar para dar outros contributos.
O que nós, de facto, entendemos, e felizmente que os líderes europeus também entenderam, é que temos que ter uma Europa mais competitiva e a regulação não está a ajudar. Mas a regulação também é aquilo que nós quisermos que seja.
E, portanto, temos todos que nos empenhar mais para que a regulação seja um contributo para a competitividade e não um impedimento e um desafio à competitividade. Eu, por exemplo, noto uma mudança de discurso e uma maior abertura.
A comissária Maria Luísa Albuquerque mencionou, relativamente ao mercado único de capitais, que a Comissão pretende avançar mesmo que não haja acordo entre os 27 estados-membros.
A comissária referiu o mecanismo 28 precisamente na entrevista recente que deu. Referiu que seria melhor estarem todos de acordo, mas, se não estiverem, avançam os que estiverem, porque, de facto, não podemos continuar mais neste registo. Um dos benefícios dos relatórios que foram produzidos e agora do programa de ação da Comissão, esta bússola que foi apresentada anteontem [29 de janeiro à Bloomberg TV], é exatamente esse.
O primeiro grande benefício é uma assunção clara que as coisas não estavam no bom caminho. Agora, vamos ter que recuar, revisitar, simplificar. Vamos ver o que é que esse exercício vai dar, mas o simples facto de se ter constatado e de haver objetivos, numéricos e quantitativos - reduzir em 25% o custo e mais 37% para as pequenas e médias empresas - é muito revelador do estado de espírito e do rumo que estes temas vão ter.
Maria Luís Albuquerque, também, mencionou que não é possível desenvolver um mercado de capitais se não houver liquidez suficiente, se não houver participantes no mercado. Todavia, os prognósticos para os próximos tempos não são muito favoráveis.
A economia portuguesa, aliás a Península Ibérica, felizmente, tem mostrado resiliência. Não teve o problema energético que o resto da Europa teve. Fomos poupados de alguns desses desafios, é verdade, e também há aqui um elemento de atração, lá está, de investimento internacional, porque, tal como a Euronext está a investir em Portugal, muitas outras empresas multinacionais estão a criar ou a fazer crescer os seus centros de operações em Portugal, por diversas razões, criando empregos qualificados e oportunidades, para os nossos jovens. Isso é muito positivo.
Portanto, não há só um movimento de saída, há um movimento também de entrada e há um movimento de retenção que se começa também a observar. Há toda uma dinâmica que nos deixa numa situação de relativa vantagem. É algo que devemos aproveitar, alavancar e potenciar. E temos que andar rápido porque as oportunidades quando aparecem têm que ser aproveitadas. Às vezes, a água não passa por debaixo da ponte duas vezes.
A Alemanha e a Itália, por exemplo, não têm imposto sobre ganhos de capital para ações detidas há mais de um ano. Outros, como Luxemburgo e Bélgica, não cobram a partir de seis meses. O Governo português fez uma alteração relativamente à taxa de imposto que incide sobre as ações detidas mais tempo. Por exemplo, se se detiver ações mais de 8 anos, a taxa é de 18,6 por cento. Estes benefícios são suficientes?
Até junho do ano passado, quando essa alteração foi introduzida, não havia nenhum benefício ao investimento em mercado de capitais. Zero! Já tinha havido no passado, mas todos os benefícios foram sucessivamente eliminados.
Portanto, este Governo teve e o mérito de inverter esta situação, pôs o tema na agenda, permitiu a discussão e trouxe algum benefício, embora seja relativamente ténue. Podia ser melhor. Tem três escalões, o que obriga a ajustamentos em termos de registo, quer das pessoas, quer dos bancos. É uma complexidade que, provavelmente, não seria necessária.
Mas, como digo, foi uma mudança de paradigma, ou, pelo menos, começou por ser uma mudança de paradigma. Hoje [29 de janeiro] houve um anúncio de uma simplificação também interessante, que também vai no bom sentido. Há uma comissão a trabalhar na revisão geral de todos os benefícios fiscais. Veremos o que traz.
Portanto, estão a ser dados passos. Se me perguntarem se eu gostava que fossem mais ousados, sim, claramente gostava, mas acho que, pelo menos, estamos a fazer alguma coisa no bom sentido.
Entrevista de Myriam Gaspar e João Sousa
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