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“Ter retorno sem risco é como ganhar a lotaria”

Entrevista Luis Sousa presidente da CMVM

Mais de metade da riqueza financeira do País está concentrada em depósitos e a falta de literacia financeira também não ajuda.

Publicado em: 18 julho 2024
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Entrevista Luis Sousa presidente da CMVM

Mais de metade da riqueza financeira do País está concentrada em depósitos e a falta de literacia financeira também não ajuda.

Luís Laginha de Sousa, presidente da CMVM, falou com a DECO PROteste Investe sobre a necessidade de atrair mais investidores para o mercado de capitais.

O mercado de capitais é fundamental para o financiamento das empresas, mas tem vindo a perder importância. Na última conferência anual da CMVM, o vice-presidente executivo da Bolsa da Tailândia explicou que, durante dois anos, visitou dezenas de empresas, para convencê-las a abrirem o capital na bolsa. O que está a CMVM a fazer para atrair mais empresas para o mercado? 


Recordo que, em funções passadas, costumava dizer que, para ser um supervisor do mercado, é preciso ter um mercado para supervisionar. Fiz essa mesma afirmação no momento em que assumi funções na CMVM. É uma convicção profunda, que pode ser demonstrada com base naquilo que são exemplos à escala internacional, do papel fundamental do mercado de capitais na criação de valor, de bem-estar, tornar mais eficiente a alocação das poupanças e possibilitar maior retorno.

O papel e as funções do supervisor não são de forma nenhuma indiferentes para esse desenvolvimento, mas este depende muito de outros instrumentos de policy. É com eles que se pode influenciar mais decisivamente o comportamento dos agentes económicos, sejam eles empresas ou investidores. Nós procuramos fazer aquilo que está dentro da nossa capacidade, com um conjunto de ações que levamos a cabo autonomamente, mas também muito em parceria, no sentido de desmistificar o mercado. 

O Governo aprovou recentemente incentivos fiscais, para empresas e investidores. São suficientes para atraí-los para a bolsa? 


Se assumirmos como desejável um modelo de financiamento e de funcionamento da nossa economia que possa tirar o melhor partido possível do mercado de capitais, estas medidas parecem estar alinhadas com os passos na direção certa. No entanto, é ainda prematuro avaliar o seu impacto que, naturalmente, vai depender da forma como os agentes económicos as incorporarem nas suas decisões.

Por outro lado, e no que ao mercado de capitais diz respeito, não desvalorizando a importância que as medidas apresentadas como “incentivos” podem assumir, ainda estamos longe de atingir a “neutralidade” fiscal entre formas alternativas de financiamento dos agentes económicos. Um nível adequado e estável de fiscalidade é um fator essencial para que as empresas se tornem mais transparentes, mais focadas no crescimento, na maximização de valor e que, por tudo isso, se tornem também maiores contribuintes para a arrecadação de impostos. 

O antigo vice-presidente da Bolsa de Capitais de Tailândia mencionou na conferência da CMVM que o governo, na altura, deu incentivos de 5% e 10% às empresas que entraram no mercado de capitais. 


Penso que a mensagem que o nosso convidado passou, independentemente da distância geográfica, é muito forte no sentido de promover o acesso das empresas ao mercado de capitais. Primeiro, há que acautelar o lado da oferta, ou seja, temos que criar condições para que haja oferta, no sentido de existirem mais emitentes. Depois, para que haja procura. A mensagem muito clara que deixou é que criar condições para que mais empresas e investidores vão ao mercado é um caminho que, ainda que possa ser estimulado pela via fiscal, traduz-se num resultado muito positivo para a própria autoridade tributária. Segundo as palavras dele, o mercado de capitais é o melhor amigo da autoridade fiscal.

Às vezes, pensa-se que esses benefícios fiscais podem traduzir-se numa pequena queda de receita fiscal do IRC, mas isso acaba por não acontecer, porque as empresas crescem, passam a preocupar-se, sobretudo, com o crescimento. E, quando está no mercado, é escrutinada, tem que ser auditada, e todo o leque de relações com clientes, fornecedores e outros agentes, também ele está sujeito a esse escrutínio. Portanto, esta transparência é positiva, não apenas do lado do IRC, mas do lado do IVA, do lado do IRS. Em vez de ser uma preocupação da otimização fiscal, passa a ser uma preocupação de como criar valor. Essa é uma discussão completamente diferente. Está centrada, sobretudo, no crescimento, no desenvolvimento, e é muito mais positiva. Portanto, é uma mensagem muito poderosa que foi passada e que se aplica não apenas a 11 mil quilómetros de distância, mas a qualquer país. 

Os criptoativos continuam a ter um regime fiscal mais benéfico do que outros produtos financeiros, como ações. Faz sentido privilegiar estes ativos especulativos? 


Não identificamos motivos para uma discriminação positiva dos instrumentos que refere face a outros instrumentos mais diretamente relacionados com o financiamento e funcionamento da economia. 

Falou na oferta (mais empresas cotadas), mas a procura também é importante. Uma não existe sem a outra. Como atrair mais investidores para o mercado? 


Não podemos esquecer que vivemos num país em que mais de 60% da riqueza financeira está concentrada em depósitos. Se pensarmos no que isto significa em termos de verdadeira perda de valor real para quem tem não só uma remuneração nula ou, por vezes, negativa, devido aos custos associados, mas também pela via da inflação, facilmente concluímos que há uma perda líquida para os detentores dessa poupança.

Naturalmente, ter a liquidez de depósitos é fundamental. A questão é qual é a proporção adequada entre ter tudo aplicado num produto que proporciona menor rendimento, mas também sofre uma perda líquida de valor, face à alternativa de ter uma distribuição mais equilibrada, ainda que com riscos de perda.

Temos de ser claros. O mercado não é uma garantia da ausência de riscos. Mas, como em tudo na vida, o retorno está sempre associado ao risco. Ter retorno sem risco é o equivalente a ganhar a lotaria. É possível, mas a probabilidade é muito baixa. 

As pessoas preferem os depósitos a prazo por serem muito simples. O excessivo conservadorismo dos portugueses nos seus hábitos de poupança deve-se a um nível de literacia financeira muito baixo? O Conselho Europeu propôs que esta seja introduzida no currículo escolar desde o primeiro ano. Uma recomendação que nos parece adequada e necessária, concorda? 


Temos sinalizado muito a importância de a literacia financeira ser introduzida numa fase tão precoce quanto possível. É um tema que nunca se esgota. Mesmo nos países que atingem melhores níveis de literacia, há um investimento contínuo. Em Portugal, é particularmente relevante, pelo que subscrevemos inteiramente que é algo que deveria fazer parte de uma fase tão inicial quanto possível no percurso escolar, porque, desde muito cedo, todos nós temos de tomar decisões cujos princípios deveríamos dominar, seja para montantes pequenos ou grandes, seja para produtos mais simples ou mais complexos.

A literacia financeira é, provavelmente, a melhor linha de defesa de qualquer consumidor ou investidor de capaz de ler e perceber bem os riscos das decisões que toma. Estamos também totalmente alinhados com a necessidade de estender a literacia financeira a empresas e outros públicos. Nesse sentido, temos procurado estabelecer um conjunto de parcerias com entidades que têm essa capacidade de proximidade com as empresas. Estamos inseridos no Plano Nacional de Formação Financeira, com os outros supervisores e um conjunto de entidades.

Mais recentemente, fizemos protocolos com o IAPMEI, a ISEP, o Turismo de Portugal, para que este tema possa chegar junto dos empresários. Temos ainda o portal do investidor, que lançámos em setembro. Há pouco disse que esta ausência de literacia leva a que os agentes possam ter menor apetência pelo mercado, mas a perspetiva de retorno associada aos investimentos é fundamental. Há seguramente um caminho a percorrer para tornar mais atrativo o investimento aplicado em estratégias de médio e longo prazo, mais ligadas à economia. A literacia é importante, mas os agentes económicos são muito sensíveis a esses estímulos.  

Um pouco antes e também depois da Troika, houve um agravamento fiscal dos produtos financeiros, que ainda não foi revertido...


Quando olhamos em retrospetiva, de facto, quer no plano fiscal, quer no plano da complexidade de acesso ao mercado, tem sido feito um caminho que tem muitos elementos que desincentivam o crescimento do mercado. E, portanto, é importante olhar para eles e ver o que é possível corrigir.

Claramente, a fiscalidade é uma área, mas a própria regulação europeia tem sido, por vezes, excessiva. É claro que dá maior proteção ao investidor, mas também exige muito mais daqueles que são intermediários financeiros. Exige, por exemplo, que os próprios investidores disponibilizem mais informação para que se conheça o seu perfil, a adequação do seu conhecimento para estar no mercado.

Tudo isso é feito com a melhor das intenções, com o objetivo de proteção, mas essa proteção, em alguns casos, tem funcionado como uma barreira de acesso ao mercado. É, claramente, um tema que requer atenção.

Os agentes económicos são racionais. Portanto, se existe uma área regulamentada, protegida, mas que cria dificuldades de acesso, os agentes económicos acabam por, mais facilmente, ir para áreas que não tem esses requisitos, ainda que possam ficar mais desprotegidos. 

O economista Sandro Mendonça dizia precisamente na conferência da CMVM que há excesso de legislação na Europa. Significa que os decisores atuam no PowerPoint e estão longe da prática? 


A regulamentação é necessária. Quando é criada, pretende-se que seja virtuosa nos seus ideais, mas, às vezes, muita virtude junta, acaba por ter um efeito contrário. 

A estabilidade regulatória é essencial? 


É essencial. Muitas vezes ouvimos falar na necessidade de simplificação regulatória. Não é difícil ter simpatia pela palavra simplificação. Quando houver margem para o fazer, estaremos lá para emprestar a nossa voz, porque se simplifica a vida dos supervisionados, em princípio, também traz benefícios para os supervisores. Todavia, temos que ter a certeza que há benefícios, porque mesmo uma simplificação, antes de produzir resultados, produz custos, dado requerer adaptação. Daí que, às vezes, só faz sentido avançar para a simplificação se o benefício da simplificação for muito maior do que o benefício da própria estabilidade.

Os agentes económicos, em muitas circunstâncias, tomam decisões que não são apenas de curto prazo, mas que são válidas para horizontes temporais muito mais largos. E a estabilidade regulatória é um elemento essencial. Por isso, acredito que, em termos teóricos, se for dada a possibilidade de garantia de estabilidade, face à alternativa de alguns ajustamentos, ainda que com uma perspetiva de melhoria, provavelmente, muitos dirão que preferem a estabilidade. É a minha perceção. 

Em novembro do ano passado, a CMVM lançou a sandbox Market for Growth. Está a correr bem?  


É a primeira vez que se faz algo do género, mesmo a nível das congéneres. Tivemos 25 empresas que manifestaram interesse em participar nesta sandbox, cuja seleção apurou 16. A partir daí, seguiu-se um trabalho de colocação das empresas em função dos interesses que tinham. Por exemplo, a sandbox está concebida de forma a olhar para o mercado de capitais nas suas várias vertentes, seja capital de risco, dívida e equity. Portanto, não temos apenas uma porta de entrada, mas diferentes portas. Os processos estão a decorrer.

Não tem sido fácil, o que é normal num processo que se faz pela primeira vez. Como supervisor, temos que assegurar uma isenção total em relação a esta matéria. Nós não somos advisors e, em cada etapa do processo, isso tem que estar perfeitamente acautelado. É um princípio sagrado preservado ao longo de todo o processo.

Em resumo, as 16 empresas já estão alocadas aos respetivos parceiros, seguindo-se agora uma fase dos trabalhos entre essas entidades e os parceiros. Esta é uma iniciativa que não está isenta de riscos, mas até ao limite deste mandato, faremos tudo o que está ao nosso alcance para contribuir para o desenvolvimento do mercado. 

Recentemente, têm surgido novas emissões de obrigações em que as empresas se comprometem a cumprir determinados critérios de sustentabilidade. Em teoria, no final do prazo, os investidores têm um adicional de rendimento. Na prática, contudo, essa remuneração adicional não corresponde sequer a um centésimo da remuneração final. Parece apenas um argumento de marketing. Não deveria haver mais “rigor”, no sentido de obrigar a que essa remuneração tivesse algum significado quer para a remuneração do investidor quer para reforçar a importância de o emitente da obrigação cumprir de facto os critérios de sustentabilidade com que se comprometeu? 


Uma preocupação que é transversal aos supervisores é assegurar que não há o chamado greenwashing, isto é, dizer que uma coisa é sustentável e, afinal, não o é. Os investidores devem ter acesso a informação suficiente para que possam exercer a sua opção legítima de dizer se estão interessados ou não, face à alternativa de termos aqui uma forma mais prescritiva de dizer que só qualifica se puder ser isto ou der aquela noção.

Temos que ter a noção clara que a função da CMVM é, por um lado, assegurar que o que se diz está a ser feito, e o que se está a propor - produto, remuneração, condições associadas... - reúne toda a informação que permite ao investidor decidir. As empresas de uma maneira geral têm noção da sensibilidade que existe por parte dos investidores em relação a estas matérias da sustentabilidade e está cada mais a ser incorporado na sua forma de atuar. Na relação com os mercados, as empresas reconhecem a importância de incorporarem isso na sua forma de atuar.

Em dezembro, vai entrar em vigor o Regulamento do Mercado dos Criptoativos. Quais são os principais desafios para a CMVM na implementação do chamado MiCA? 


Este é mais um tema cujo livro não está escrito. Há uma aprendizagem grande a fazer, no sentido de perceber bem o funcionamento dessas novas realidades. É um caminho que não é feito de forma isolada, mas em grande articulação com as nossas congéneres europeias, que envolve muita discussão no âmbito da ESMA e, também, em articulação com o que são as autoridades nacionais, o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros.

São os desafios inerentes a identificar os riscos, diretos e indiretos, saber quais são aqueles que podem e devem ser mitigados, e aqueles que fazem parte do próprio funcionamento do sistema, partilhando a informação com os agentes, com os investidores. Há também uma preocupação em deixarmos a inovação trilhar o seu caminho, naquilo que possa ter de positivo e ser aproveitado para benefício de todos.

Que benefícios espera que o MiCA traga para os emissores e investidores? 


Neste momento, é prematuro falar em benefícios. Os próprios agentes, às vezes, têm de ter a capacidade de inovar e de poder extrair, aproveitar aquilo que possa ser o benefício de novas tecnologias, de novas formas de comercialização, desde que isso esteja dentro dos critérios que são aceitáveis à luz da regulação existente.

A CMVM está preparada, tem meios financeiros, tecnológicos, humanos? 


Nenhuma entidade pode dizer que tem tudo aquilo que gostaria de ter. Nós também não somos exceção. Apesar de sermos uma entidade independente, o nível de dependência tem, ainda, algumas fragilidades do ponto de vista daquilo que são os recursos que a CMVM dispõe.

Isso tem que ser gerido de uma forma a não deixarmos de cumprir todas as obrigações que temos em função do quadro regulatório. Isso não significa que não tenham de ser feitas escolhas e estabelecer prioridades, se, porventura, as limitações que temos do ponto de vista dos recursos se tornarem mais ativas em função desta nova realidade. É também importante sensibilizar quem de direito sobre algumas das limitações que o conceito de independência ainda tem para ser cumprido a 100 por cento.

E já “sensibilizaram” as autoridades para o problema? 


É um processo recorrente. É importante referir que a palavra independência, por vezes, é uma palavra muito mal-entendida. A palavra independência significa que as entidades às quais se aplica e que têm condições para a exercer plenamente, é a melhor garantia de um tratamento justo para aqueles que são supervisionados, sejam investidores ou emitentes, e não de privilégio para aqueles que estão nessas entidades.

Não precisamos de recuar muito no tempo para ver situações, até bastante recentes, em que haver um supervisor independente, que não está sujeito às pressões daquilo que está no foco mediático, toma as suas decisões em função daquilo que é o seu mandato e tem autonomia para analisar os temas, é de uma enorme valia para todos aqueles que são supervisionados ou abrangidos pela supervisão. E, por isso, reforçar essa independência não é de forma alguma despiciente, nem é gastar dinheiro, mas criar condições para que o mercado funcione melhor.

Infelizmente, conhecemos bastantes casos em que a independência, incluindo durante a crise financeira, a própria supervisão prudencial se impôs à supervisão comportamental. 


Independência não é nem pode ser também confundida com ausência de prestação de contas. Porque se há entidade que presta, também, contas é a CMVM. Somos auditados, temos uma comissão de fiscalização, apresentamos contas e prestamos contas à Assembleia da República.

Portanto, independência não é ausência de prestação de contas. Antes pelo contrário. É assegurar que elas são prestadas, mas é ter os meios necessários para poder exercer a função. Esses meios, inclusive, não são do Orçamento do Estado. Quando falamos de meios financeiros, referimo-nos a receitas próprias.

Têm aumentado os infuencers digitais. Alguns até recomendam produtos financeiros e outros são financiados por instituições. Está prevista haver uma regulação para esta atividade? Isso é um desafio para a CMVM? 


É uma realidade que acompanhamos e é motivo de preocupação. É fruto dos novos tempos, das novas plataformas e formas de interagir. Temos de olhar para ela no sentido de perceber o que é resultado de uma atitude incorreta, a todos os títulos sancionável, ou o que é resultado de um mero desconhecimento. Perceber o que está por detrás dessas atitudes e atuar no sentido de sensibilizar os cidadãos para esses riscos.

Continuaremos a atuar junto daqueles que atuam de uma forma lesiva para o bom funcionamento do mercado. É importante que os investidores, os cidadãos tenham a noção dos riscos que correm quando seguem determinado tipo de conselhos de quem procura transmitir uma imagem que, na maior parte das vezes, não corresponde à realidade.

É muito tentador acreditar na possibilidade do retorno fácil. Isso não existe. Mas, por muito que se avise, há sempre quem queira acreditar. Por vezes, as pessoas passam por variadíssimas situações de dificuldade e querem acreditar que há uma solução fácil e rápida. Normalmente, o que acontece é que, na expectativa de solucionar um problema, ficam com um ainda maior.

Em 2022, a CMVM fez uma proposta para incentivar a poupança dos portugueses, que continua muito abaixo da média da zona euro. Obtiveram resposta? 


Este tema da poupança é absolutamente central para Portugal. Não há soluções fáceis, rápidas, milagrosas, mas há caminhos que podem e devem ser percorridos. É preciso tornar absolutamente claro para os cidadãos o que lhes vai acontecer daqui por uns anos relativamente às reformas. Têm que estar bem conscientes de que a taxa de substituição do último salário pode descer para níveis de cerca de 40 por cento.

Acreditar que, daqui a 20 ou 30 anos, quando se reformarem, conseguirão o mesmo de hoje, não é verdade. Isso significa que alguém tem de pagar a conta. Com o nível de fiscalidade que temos, não vejo como é possível. Parece-me absolutamente inquestionável, sendo importante quebrar as barreiras ideológicas à volta deste tema, que uma parte da solução passe pelo segundo e terceiro pilares da Segurança Social, incentivando a poupança.

No passado, o rendimento disponível era muito menor, mas as pessoas poupavam 30% desse rendimento, privando-se de coisas que, nos dias de hoje, seriam impensáveis abdicarmos delas, porque tinham a noção de que não tinham a Segurança Social para lhes pagar a reforma. Quando falamos de incentivar a poupança de longo prazo, significa que as pessoas têm que pôr de parte verbas que serão utilizadas daqui a 30 anos. Ora, o tipo de incentivos que se dá tem que ser também adequado a esse horizonte temporal.

Não só é importante para este tema, mas também para contribuir para o outro problema crónico de Portugal, que é o da falta de capital. Quando olhamos, mais uma vez, para os bons exemplos do exterior, os países que têm capital disponível para investir na economia são aqueles que têm este mecanismo de pensões, de verbas para fazer face à reforma, porque esse capital não fica parado, fica disponível para ser aplicado na economia, para gerar retorno. Portanto, é um caminho que pode dar contributos relevantes para dois problemas.

Tem havido alguma inércia nesse sentido... 


Não é fácil e não tem havido, de facto, discussões construtivas nessa matéria, mas isto tem todo o aspeto de ser um daqueles casos em que, aliás, eu disse isso na conferência da CMVM, em que nós estamos a ver a parede, temos possibilidade de nos desviarmos, mas só quando estivermos mesmo a bater na parede, é que teremos de lidar com ela.

Neste caso, com um custo maior, que é o custo de ter menos opções para fazer. Se nós pudermos evitar a dureza da realidade, devemos evitá-la, mas ignorá-la ou tentar escondê-la, é que não.

O fosso salarial entre os presidentes das empresas cotadas e a média dos restantes trabalhadores têm aumentado ano, após ano. Na nossa opinião, as comissões de vencimento deveriam ser constituídas apenas por membros independentes das administrações. Ao invés de uma mera recomendação essa orientação deveria ter um carácter mandatório. Concorda? 


Introduzir mais obrigatoriedades num leque de entidades, que já é reduzido, face a um leque muito mais abrangente, que não esteja sujeito, é criar uma distorção no mercado.

A digitalização nos mercados é um desafio crescente para a CMVM em termos de coordenação com outras entidades? 


A crescente digitalização, a facilidade de operações à escala global coloca desafios acrescidos. Temos que assegurar que os agentes sujeitos à supervisão atuam de modo a serem eles próprios elementos de prevenção.

Evitar, por exemplo, que Portugal e as próprias empresas possam ser utilizadas para branqueamento de capitais.

Há, por exemplo, sociedades corretoras que estão registadas na União Europeia, mas cujas exigências regulatórias em determinadas regiões, como o Chipre, suscitam preocupações. A DECO PROteste Investe detectou alguns casos em que são apresentados aos portugueses produtos que parecem depósitos, mas são produtos complexos. 


Tem havido um aumento de cooperação a nível internacional, com as várias congéneres europeias. Quando se deteta a comercialização de instrumentos que estão sob a supervisão de uma outra jurisdição, há mecanismos de interação, que têm funcionado.

Por falar em cooperação, para quando o mercado único de capitais? 


Poderíamos fazer um paralelismo com aquilo que se passa no próprio sistema bancário, cujo sistema de supervisão é único para os bancos a nível europeu, mas há muitas diferenças. Enquanto entidades, os bancos têm características mais uniformes, ao passo que o mercado de capitais é uma realidade muito mais fragmentada, há muitas entidades diferentes. Por muito que os cidadãos possam ter a ideia contrária, nos períodos de maior crise, os mercados de capitais funcionaram sempre. As pessoas podem não ter conseguido comprar ou vender os ativos mobiliários ao preço que queriam, mas os mercados funcionaram. Todas as entidades aguentaram períodos de stress brutais de volatilidade.

O facto de existirem várias entidades e de haver checks and balances é um dos garantes do próprio bom funcionamento do sistema. Portanto, quando se fala em união dos mercados de capitais, parece que o union banking é totalmente transportável, mas não é. Dito isto, há uma razoabilidade de que possa haver uma maior integração, porque traz mais eficiência, um conjunto de potenciais benefícios, mas há alguns riscos. Este argumento da capital markets union não pode ser um argumento para fazer política industrial. O que é que eu quero dizer com isto? Por trás deste capital union não pode estar a ideia de se concentrar, num ou dois países, todo o mercado e haver essa política industrial de centralização. Se isso acontecer, que aconteça, mas em função da própria racionalidade económica e não por uma decisão política.

Desse ponto de vista, Portugal não leva lições de ninguém. Enquanto País, temos sido daqueles que tem tido uma postura de maior abertura perante este processo de construção. Mesmo havendo um caminho que, indiscutivelmente, pode trazer mais eficiência, quando olhamos para o leque dos países que integram a União Europeia, encontramos situações muito díspares.

Ou seja, países com o mesmo quadro de complexidade, supostamente de eficiência, têm mercados superdesenvolvidos, como é o caso sueco, e outros em que o mercado é uma parcela muito pequena. Em si mesmo, não é um problema. O problema está num conjunto de outros fatores que, se não houver vontade política de os ultrapassar, não é por haver uma decisão de uma capital market union que os mercados vão crescer. Pior, se se criar a convicção que basta haver uma decisão política para criar um capital market, pode desincentivar a adoção de medidas que permitam que cada um dos mercados, individualmente, se desenvolva.

Portanto, estamos disponíveis para que este processo possa fazer o seu caminho e dar todos os benefícios que se espera que ele traz, mas isso não pode funcionar como um desincentivo. No acrónimo capital markets union, union vem no fim. Primeiro têm que existir os capital markets.

Mario Draghi está a preparar um relatório para fomentar ou aumentar a competitividade europeia. Tem alguma expectativa que isto se possa traduzir em resultados, em alterações de policy? 


O mercado de capitais não é uma ilha desligada da economia, ou seja, não podemos querer que o mercado de capitais seja pujante, vibrante, interessante, se o tecido económico que lhe está subjacente não tiver condições para ser competitivo.

Haverá margem para que o mercado de capitais, a nível europeu, e em particular em Portugal, possa ser mais desenvolvido, mais dinâmico, mas, seguramente, existirá muito ainda a fazer ao nível das condições para que as empresas europeias possam ser mais competitivas, rentáveis, melhoradas.

Entrevista de João Sousa e Myriam Gaspar.

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