
A história conta-se em números. Todos os anos, cada português produz uma média de meia tonelada de lixo, e é pouco mais ou menos assim desde 2019. Acontece que apenas uma pequena fatia destes resíduos é reciclada. Em 2023, de todo o lixo gerado no nosso país, a parte de leão – 59% – acabou os seus dias num aterro, segundo dados da Agência Portuguesa do Ambiente. Trata-se também de uma proporção relativamente estável nos últimos anos. Óbvio ululante: varremos para debaixo do aterro materiais com um valor económico elevado e que poderiam ser recuperados para a economia circular por via da reciclagem.
A estratégia de fuga para a frente, adotada em sucessivos contextos políticos e legislativos, não espoleta apenas impactos económicos. Envolve consequências gravosas para o ambiente e para o consumidor, que pagará cada vez mais na fatura a título de taxa de gestão dos resíduos – além de estar a levar o País, em passos seguros, à vizinhança do precipício. Todavia, face aos baixos números da reciclagem, este colapso só será surpresa para quem tenha andado distraído: como dizia alguém, era uma questão de fazer as contas.
Aterros em fim de linha
Portugal tem 35 aterros. Em março de 2025, o Plano de Ação TERRA (Transformação Eficiente de Resíduos em Recursos Ambientais) revelou que as infraestruturas da Azambuja, de Lousada e de Aveiro estão já encerradas ou com a atividade suspensa, por falta de espaço.
No Norte, o colapso é um fado anunciado. Os aterros de Braga e Fafe esgotarão este ano, enquanto os de Vila Real, Valença e Paradela conhecerão idêntica sorte em 2027 ou 2028. No entretanto, em Fafe, contesta-se a criação de mais um aterro.
No Centro, o cenário não é menos crítico: 2025 é o fim da linha para o aterro de Coimbra, ao passo que o do Fundão não se prevê que dure para lá de 2026 ou, na melhor das hipóteses, 2027. Nem mesmo o aterro do Planalto Beirão, com quatro anos de folga, pode respirar de alívio.
Na região de Lisboa e Vale do Tejo, os aterros de Palmela, Seixal e Mato da Cruz podem fechar portas em 2026. Mafra conta com mais um ano, até 2027.
O Alentejo, embora menos atingido pela falta de espaço, prevê expandir a capacidade de três aterros: Ambilital, Gesamb e Resialentejo. O da Valnor tem espaço para seis anos.
No Algarve, a rutura adivinha-se célere: 2026 é a data-limite para Portimão e Loulé.
Ora, em março de 2024, o Governo alargou o prazo, até 1 de janeiro de 2030, da adesão ao PAYT junto do setor doméstico. Este sistema preconiza que quanto menos lixo indiferenciado produzirem as famílias menos deverão pagar na fatura mensal. Protelada tem também sido a recolha seletiva de biorresíduos em muitos municípios.
Ao mesmo tempo, a lei diz que, em 2030, apenas 10% de todos os resíduos produzidos no País podem ser encaminhados para aterro. O objetivo choca de frente com a realidade. Sem contentores para recolha seletiva multimaterial e para biorresíduos, nas proximidades das habitações, teremos fôlego para chegar a 2030?
Expansão dos aterros não passa de balão de oxigénio
O Plano de Ação TERRA concluiu que, dos 35 aterros, 22 já usaram mais de 80% da lotação licenciada. Perante os dados, o Governo considera urgente encontrar um balão de oxigénio: aumentar a capacidade dos aterros existentes até que as recolhas e os tratamentos seletivos ganhem escala. Compreende-se a urgência, mas só o aumento dos números da reciclagem pode conduzir a um cenário sustentável no longo prazo.
E a que se deve esta anémica revalorização de materiais? Às famílias, que não separam os resíduos? Aos municípios, que não disponibilizam contentores para depositá-los? À insuficiência de infraestruturas para reciclar? Por certo, a todos, embora com diferentes pesos na equação. Mas comecemos pelo princípio.
Em 2023, segundo a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), a acessibilidade ao serviço de recolha de biorresíduos, que, em linguagem de comum mortal, se traduz na presença de contentores perto das habitações, era deficitária na maioria dos municípios do Continente. Das 260 entidades gestoras responsáveis que reportaram dados ao regulador, 225 foram por este avaliadas com nota insatisfatória nesse ano. Já a disponibilização de contentores para recolha seletiva multimaterial teve apreciação insatisfatória em 88 municípios. Em mais 54, variou entre insatisfatória, mediana e boa, consoante a entidade responsável pela recolha. E 12 nem sequer transmitiram informação à ERSAR.
O périplo por mais este conjunto de dados permite contemplar uma paisagem em que o número de contentores para vidro, plástico, cartão e papel, com recolha obrigatória desde há anos, nem sempre serve as populações. E, para biorresíduos, os dados obtidos pela DECO PROteste mostram que, no terceiro trimestre de 2024, a recolha era incipiente em muitos municípios, restrita a determinadas áreas, nem sempre nas proximidades das habitações, apesar de ser obrigatória desde 1 de janeiro desse ano.
O que o País perde por não reciclar
A média de resíduos produzidos per capita entre nós, de 502 quilos, é inferior à europeia, que se fixa nos 513, mas trata-se de fraco consolo, longe de poder justificar a inação. Para o aterro, em força, não pode ser o lema de um país que se preocupa com o futuro. E, no entanto, desde 2021 que os números da deposição em aterro continuam a crescer. Depois de uma quebra entre 2020 e 2021, explicável pela pandemia, atingimos os valores que se verificavam nos anos anteriores àquele fenómeno.
Portanto, se queremos cumprir o objetivo de apenas 10% dos resíduos serem encaminhados para aterro, que tem 2030 como limite temporal inicial, o que esperam as entidades gestoras para aderirem em força, isso sim, a sistemas de recolha seletiva? Mais um adiamento de prazo, que deixe tudo na mesma, incluindo as contínuas perdas económicas?
As entidades gestoras pagam cada vez mais pelos resíduos que enviam para os aterros, podendo ascender a 35 euros por tonelada o valor cobrado este ano pela Agência Portuguesa do Ambiente. Na prática, os resíduos produzidos por cada dois portugueses num ano podem custar 35 euros às entidades gestoras, quando poderiam trazer-lhes rendimentos, se fossem encaminhados para reciclagem.
Muitos materiais recicláveis ainda no lixo comum
Vamos a mais números, para compreendermos o que está em causa. Dizem as estatísticas da Agência Portuguesa do Ambiente que, em 2023, os biorresíduos representaram 38% da produção total de resíduos urbanos. Bastante mais atrás, o plástico teve uma quota de 11%, enquanto o agregado de cartão e papel ficou com 9%, e o vidro com 7 por cento.
Vemos, assim, que os biorresíduos têm grande relevância no total daquilo que descartamos a partir das nossas casas. Porém, apenas uns ínfimos 2% destes resíduos foram encaminhados para valorização nesse ano. As cascas de fruta ou de legumes, ou os restos das refeições, podem ser convertidos em composto de elevada riqueza para a agricultura. Na prática, todos os dias, o País desperdiça o retorno económico que daqui poderia advir.
Mas também o cartão, o papel, o plástico e o vidro necessitam de melhorias na recolha seletiva, com o fluxo de cada resíduo depositado num contentor apropriado, e não em contentores de lixo indiferenciado, onde a mistura de materiais leva a contaminações irreparáveis. E, não sendo possível anular o seu efeito, os materiais acabam onde bem se sabe: o aterro.
Os números mostram que muitos destes materiais ainda aparecem no lixo indiferenciado. Um par de exemplos? Em 2023, de todo o plástico descartado pelas famílias, 77% foram recolhidos do lixo comum, e não do ecoponto amarelo. O mesmo sucedeu a 81% do metal. Os dados são, de novo, da Agência Portuguesa do Ambiente. Mesmo o vidro, 56% do qual recolhido seletivamente em 2023, tem grande margem para melhorar. A premissa aplica-se, por óbvia, ao papel e ao cartão, apenas 47% dos quais tendo seguido para reciclagem a partir da recolha seletiva, como os ecopontos, no mesmo ano.
Consumidores chamados a fazerem a sua parte
É aqui que temos de refletir se, enquanto consumidores, não seremos também responsáveis por esta realidade. É certo que a disponibilização de contentores para recolha seletiva falha em muitos municípios. Mas isso explicará todos os materiais com potencial de valorização que aparecem no lixo indiferenciado?
A Agência Portuguesa do Ambiente sublinha que, da correta separação dos resíduos a montante, ou seja, nas nossas casas, por nós, depende a melhoria do desempenho nacional, e advoga, por isso, um forte investimento na sensibilização dos cidadãos.
Mas não deixa de defender soluções acessíveis para deposição de materiais, sejam contentores de proximidade, recolha porta a porta ou outras adequadas à realidade de cada território. Põe o dedo noutra ferida, ao defender que devem existir instalações com capacidade para tratamento de materiais. Tudo em nome da economia circular.
Exigir contentores perto de casa
Contentores para recolha seletiva perto dos consumidores potenciam a sua adesão à separação de resíduos. Devem localizar-se a um máximo de 100 metros das habitações, nas freguesias predominantemente urbanas, ou 200 metros nas restantes.
A DECO PROteste incentiva os consumidores a exigirem das entidades gestoras o cumprimento destas distâncias. Desde 19 de outubro de 2024, existe um regulamento que obriga as entidades gestoras a cumprirem regras mínimas de qualidade. Se os ecopontos e os equipamentos para biorresíduos não satisfizerem as distâncias previstas, reclame por escrito e exija a qualidade do serviço.
Discutir o futuro da gestão dos resíduos é missão para ontem
Espera-se que em breve o Plano de Ação TERRA, apresentado em março deste ano, fique disponível para consulta pública. A DECO PROteste não deixará de fazer as suas contribuições. O investimento nas melhores práticas de separação e tratamento de resíduos tem de ser prioritário. O objetivo é criar valor, e não investir na expansão de aterros, um novo retrocesso no percurso de um país continuamente adiado. Conheça a opinião de Antonieta Duarte, especialista da organização de consumidores em sustentabilidade.
A DECO PROteste apoia todos os consumidores para que exijam a mudança na sua freguesia, no seu município, no seu distrito, na sua região. Há que garantir a acessibilidade aos ecopontos e a recolha dos resíduos orgânicos, em cumprimento da legislação.
A grande maioria dos consumidores quer e sabe que tem de contribuir para os desígnios de redução do lixo, mais separação, mais reciclagem e menos deposição em aterro. As populações e os municípios são, de resto, quem mais se opõe à criação de aterros, pelo elevado impacto ambiental, social e económico para as suas regiões.
Agilizar processos de avaliação de impacto ambiental e de licenciamento, para facilitar a expansão de aterros ou criar mais infraestruturas, é alimentar um sistema enviesado, também ele esgotado nos planos ambiental, social e económico. Apesar de o colapso há muito estar anunciado, não foram tomadas medidas para aliviar os aterros. A DECO PROteste não aceita que esta falta de ação venha agora a ser recompensada com mais do mesmo. Perdemos todos.
Gostou deste artigo?
Partilhe com o mundo: