
Nasceu em Penacova, tendo vivido em São Pedro de Alva, no mesmo concelho até aos 18 anos. Vive em Coimbra. Tem 47 anos, é biólogo, diretor científico e tecnológico do ForestWISE, o Laboratório Colaborativo para Gestão Integrada da Floresta e do Fogo, e professor na Universidade de Aveiro, onde lecionou e investigou temas ligados à gestão e conservação de recursos silvestres. Em Portugal, poucos se inquietam tanto com a floresta do futuro e a prevenção de incêndios como Carlos Fonseca, com uma vida dedicada ao mundo rural, à investigação em vida selvagem e à valorização dos territórios rurais. Foi um dos 12 peritos das Comissões Técnicas Independentes que analisaram os grandes incêndios de 2017 e viveu o de outubro na primeira pessoa, num combate épico. Esta entrevista pode salvar vidas e ajudar a construir um futuro para a nossa floresta, se for lida e relida por todos com responsabilidades na matéria.
Floresta e prevenção de incêndios
Na floresta, o que mais inquieta os consumidores?
De uma forma geral, os consumidores associam a floresta muito mais ao risco do que ao proveito. Uma parte significativa da sociedade, mais ligada ao meio urbano do que ao meio rural, vê a floresta mais como um espaço de risco do que um espaço de valor. Temos de inverter isto. Se as pessoas que vivem no mundo rural têm uma visão mais real daquilo que é a floresta, é preciso que as pessoas que vivem nas cidades mudem este sentimento. A floresta portuguesa tem de ser mais valorizada por todos. Gostava de explorar o porquê dos cursos de engenharia florestal terem pouca atratividade. Em muitas situações, os cursos não conseguem preencher as vagas e muitos alunos não continuam até ao final do curso. Num país florestal, com uma grande carência de recursos qualificados, se os cursos das áreas florestais não são atrativos para as novas gerações, é porque algo está mal. Queremos perceber qual é o sentimento e a perceção que as novas gerações têm sobre a floresta portuguesa. A floresta tem valor e esta criação de valor faz parte do movimento de transformação que nos envolve a todos e se tornou mais urgente sobretudo após 2017. As questões sociais e comportamentais têm obrigatoriamente espaço nesta transformação. Muitas pessoas pensam na floresta como um espaço de lazer, passeio e de outras atividades que estão na moda. Mas o prisma do proprietário é muito relevante, e a maioria, infelizmente, não vê a floresta como um espaço em que pode ter rentabilidades associadas. O consumidor também deve ser um agente de mudança e tem de ser mais informado. Tem de se apostar mais nas ações de comunicação. A Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF) tem feito um bom trabalho na comunicação de risco, quase diário e com principal incidência nos meses de maior risco. As pessoas olham para a floresta como um conjunto de árvores, mas a floresta é muito mais do que isso: é sequestro de carbono, preservação das nascentes de água, da biodiversidade, com aves, mamíferos, plantas – muitas únicas no mundo inteiro, que estão também em Portugal. As pessoas têm de ser educadas a observar o que as rodeia e a melhor observação do espaço florestal poderá conduzir a uma maior valorização e respeito.
A população está mais alerta?
Creio que sim, sobretudo depois de 2017. Há um antes e um depois desse ano marcante. As imagens que temos na cabeça e as vivências de muitos levaram a uma maior consciencialização, mas revelaram também problemas mais profundos no território. Aquelas catástrofes expuseram as fragilidades de um território imenso, quase dois terços do País, aquilo a que chamamos o Interior, mas que prefiro chamar o Mundo Rural.
Há sinais de mudança?
Sim, há sinais de mudança de uma forma genérica, pois existem situações em que está tudo igual ou até mesmo pior. Todas as semanas estou no Mundo Rural e sinto que as pessoas vão tendo cada vez mais a noção se a casa onde vivem está em segurança ou não. A olhar à sua volta percebem se o mato está muito perto, se a árvore tem de ser cortada, se têm de falar com o vizinho ou mesmo denunciar uma situação irregular. Após 2017 ficou mais presente a perceção do risco, que não existia dessa forma até aí. Também têm ajudado os programas criados nas localidades mais vulneráveis, como as “Aldeias Seguras”, entre outros. Estou convicto de que hoje, no Mundo Rural, há uma maior consciência do risco. A perceção de que muitas vezes é preferível não fugir e não sair do povoado quando decorre um incêndio nas imediações. Os acontecimentos de Pedrógão acabaram por ser uma grande lição que teve reflexo em 15 de outubro [de 2017], onde houve diferenças ao nível do perfil das fatalidades. Houve muito menos mortos na estrada, face a Pedrógão.
O que o marcou mais em 15 de outubro de 2017?
A noção da nossa impotência! Tínhamos entregado o relatório de Pedrógão a 12 de outubro, 5.ª feira. Foram três meses intensos, sem férias. Na 6.ª feira, descansei, e 14 fui ver como estavam os medronheiros. Os medronhos estavam pequenos, duros e secos. A 15 de outubro regressei aos medronhais, sabendo que havia um “incêndio na Lousã a caminho de Poiares”, como vi na televisão durante o almoço. A caminho dos medronhais, já no jipe, percebi o calor exagerado para a época, bem como o vento muito forte… e vejo o fogo a chegar à Serra da Atalhada. Desço para o rio Alva, até que o vale começa a ser invadido por todo aquele fumo, e, de repente, há uma projeção na encosta lateral, depois outra mais adiante e depois outra aos meus pés… Ali deu para perceber porque tanta gente morreu. É um ambiente extremo com fumo, calor, vento, lume. Tinha uma mangueira com água e a noção de que se vir que a coisa está muito má, dou dois saltos e estou dentro de água. Mas… não estamos preparados. Tinha o vizinho a salvar a casa dele e os currais dos animais e lá conseguimos salvar o casario todo da praia fluvial do Vimieiro, inclusive o restaurante. Vivi tudo na primeira pessoa. O fogo chegou lá por volta das 17h00, fiquei até às 22 horas. Depois vim para cima, para São Pedro de Alva, a passar com o jipe por cima de postes e árvores caídas, para salvar a casa dos meus pais e de outros vizinhos, e andei nisto até às 5h00 da madrugada, como tantos outros andaram. Tentei descansar e acordei a pensar “talvez a parcela de medronheiros mais afastada, em São Paio do Mondego, não tenha ardido”… numa tentativa de dar um sentido aos investimentos feitos durante anos no minifúndio. Às 7h00 da manhã já lá estava. Ardeu tudo. Arderam cerca de 20 hectares de medronhal. Aliás, a TSF noticiou “morreu queimado (…) o primeiro medronhal certificado do mundo”.
Ninguém o arrancou dali? Ninguém lhe pediu para sair?
Não. Os que ali estavam eram os que ali tinham casas ou outros pertences. Fiquei lá conscientemente! O meu património e grande parte dos investimentos de uma vida estão ali. Muitas pessoas morreram a defender bens. Também eu estava a defender um bem e resisti até à última, sendo que sempre tive água disponível e tinha a consciência de que a proximidade do rio me daria alguma segurança.
Houve ações de sensibilização junto das populações?
Sim. Após 2017 houve várias campanhas e estratégias de sensibilização das populações com o envolvimento dos agentes de proteção civil e de segurança. Hoje, no Mundo Rural, assiste-se gradualmente a uma mudança de comportamentos com ações de sensibilização e investimentos em locais de abrigo e mais informação. Há também o programa Aldeias Seguras, em que se começaram a criar zonas de proteção à volta das aldeias com espécies não florestais, essencialmente agrícolas, com o objetivo de se criar um anel de segurança. Houve durante estes cinco anos um grande investimento, essencialmente público. Não se consegue ver em todo o lado. Temos muitas aldeias, o território está muito disperso em termos de povoamento e é difícil atuar em todas. Foram definidas as freguesias prioritárias, que apresentam maior risco e vulnerabilidade e é nessas onde o maior investimento está a ser feito.
No Plano de Recuperação e Resiliência, há valores para a floresta?
Sim. A componente 8 do PRR é exclusiva para a floresta, com um investimento de mais de 600 milhões de euros, assente no Programa de Transformação da Paisagem, mas não só. A ideia é que este dinheiro sirva para a gestão agrupada do território com um trabalho de identificação dos proprietários e implementar modelos de gestão florestal com melhor ocupação florestal, mais produção, mais conservação, mais sistemas agrícolas, mais pastorícia, com faixas de gestão de combustível – indo ao encontro da redução do risco. Há, contudo, outras componentes no PRR que irão beneficiar a floresta, como a componente 5 que visa a capitalização e inovação empresarial, onde há uma agenda verde dirigida a toda a cadeia de valor da floresta, coliderada pelo ForestWISE, bem como a componente 12, a da Bioeconomia Sustentável, no âmbito da qual o nosso laboratório colaborativo lidera um consórcio para a valorização da resina natural com investimentos superiores a 27 milhões de euros. A floresta foi identificada por António Costa e Silva e pela sua equipa como uma prioridade. Acho que 2017 foi decisivo para se trazer o tema da floresta para a agenda política e para o quotidiano da sociedade. Hoje, falamos de floresta, toda a gente fala de floresta e da sua relevância para o País, assumindo-se cada vez mais que é um valor, um capital natural que importa valorizar.
O fogo é um problema sem solução?
Num clima mediterrânico, o fogo é um processo natural. Se vivêssemos num ecossistema em que o fogo não era natural, não tínhamos tantas espécies vegetais adaptadas a este fenómeno. Desde logo, o sobreiro, porque tem a cortiça que protege o tronco, protege a espécie e, após um incêndio, de facto, a cortiça fica queimada, mas a planta, a árvore, continua viva. Temos o medronheiro, temos a oliveira, temos os carvalhos, todas autóctones. Depois de o fogo passar, ficam carbonizadas, mas o sistema radicular não morre, na maioria dos casos, e dali brota a nova planta. Há uma capacidade de regeneração enorme nas nossas espécies. Estas coevoluíram com o fogo. E, se formos à Austrália, acontece o mesmo, bem como na Califórnia, entre outras regiões com características mediterrânicas. O importante é evitar incêndios de grandes dimensões. E para isso precisamos de preparar várias componentes, não só a prevenção, mas criar um território mais sustentável, criar a floresta do futuro. Tem de haver transformações ao nível da paisagem e, para que tal aconteça, é necessário haver mudanças desde as plantas mais utilizadas até ao mercado, ditado pela sociedade. Temos três fileiras florestais minimamente organizadas no País: a principal é a do eucalipto, depois a do sobreiro (cortiça) e a do pinho. São os cobertos dominantes, porque, acima de tudo, têm quem os valorize com intervenções e ganhos em toda a cadeia de valor. Contudo, o futuro passa cada vez mais por sistemas agroflorestais e diversificados, naquilo que é a paisagem em mosaico, que temos de promover: a floresta futura, com espaço florestal, zonas de interrupção com agricultura, pastorícia, depois mais floresta… E esta planificação está relacionada com o que vai ser o rendimento para os proprietários, para o território e para o País. E, quando falo em rendimento, não se pode entender apenas económico, mas também ambiental ou ecológico e até social. Se a floresta for rentável, conseguimos maior fixação de pessoas, uma economia local e regional mais dinâmica e sistemas mais sustentáveis ambientalmente.
ForestWISE junta empresas e universidades
Carlos Fonseca desenvolve trabalho de formiguinha todos os dias na floresta e na instituição que lidera com uma equipa de mais de 20 membros. Em 2020, abraçou, como diretor científico e tecnológico o ForestWISE, o Laboratório Colaborativo para Gestão Integrada da Floresta e do Fogo. Hoje, já é uma referência nacional e internacional.
Como nasce o ForestWISE e qual a principal missão?
O conceito de laboratório colaborativo surgiu em 2017/18 pelas mãos de Manuel Heitor, ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior que trouxe para Portugal um modelo que integra indústria, empresas, universidades e o setor público numa mesma instituição. Nessa altura, foi também dada ênfase à criação de um laboratório para a floresta e o fogo. Estas áreas passaram a ser prioridade. E o ForestWISE surgiu porque as maiores empresas dos setores florestal e energético do nosso país (The Navigator Company, Altri Florestal, Amorim Florestal, Sonae Arauco, DS Smith, REN e E-Redes) lideraram o processo, acompanhadas pela academia. Estamos a falar do INESC TEC do Porto, das Universidades de Aveiro, Coimbra, do ISA, em Lisboa, de Évora e da UTAD. E depois juntaram-se duas entidades públicas: a AGIF, criada um pouco antes – e o INIAV (Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária). E foi com este grupo de peso que foi criado o nosso laboratório colaborativo, com o objetivo de se encontrarem soluções para o que foi identificado pelos agentes do setor como os principais problemas e necessidades.
Quantos membros tem a equipa?
Atualmente, somos cerca de 20 e vamos receber mais quatro, em breve. O CoLAB é acompanhado pela Agência Nacional de Inovação (ANI), e financiado de início por programas nacionais e europeus através da CCDR-N, porque a nossa sede é em Vila Real, a par do financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Estes laboratórios colaborativos têm de caminhar para um modelo de sustentabilidade que implica um terço de financiamento público, um terço de financiamento através de projetos de investigação e um terço ao nível das prestações de serviço. O rePLANT é o nosso primeiro grande projeto, em coliderança com a The Navigator Company. Inspira-se na nossa agenda de investigação, desenvolvimento e inovação, que foi criada através de um modelo participativo dos diferentes agentes dos setores – da floresta e do fogo. Primeiro, identificámos as necessidades em conjunto e com base nas mesmas criámos uma agenda de investigação. Este projeto mobilizador conta com 20 parceiros e assenta nos principais pilares da ação do ForestWISE, que são a gestão da floresta e do fogo, do risco e economia circular e cadeias de valor, e cada um liderado por uma empresa, com uma universidade e com outras entidades. Por exemplo, no pilar 1, está a fazer-se o melhoramento genético de pinheiro, para ter melhores produções, entre outras atividades. Sob a liderança da Sonae Arauco estão a ser feitos ensaios no terreno – nas serras do Porto, para perceber também a resposta destas plantas aos vários tipos de solos e condições edafoclimáticas. Por exemplo, no pilar 2, gestão do risco, estão a ser instaladas câmaras de vigilância nos postes da REN, de muito alta tensão, para se perceber a dinâmica da vegetação envolvente, que permitirá a definição de algoritmos para se poder melhor planificar a gestão das faixas debaixo das linhas, mas também a monitorização do espaço sob linhas de modo a obter-se mais informação útil para a prevenção e, eventual, combate dos incêndios. E depois no terceiro pilar, gerido pela Navigator e pelo ForestWISE, está a ser desenvolvida uma máquina, uma alfaia florestal pela Fravizel, que faz a plantação e adubação em simultâneo, entre outras atividades.
Biologia, floresta e vida selvagem
Carlos Fonseca desafia-nos a observar a floresta com outros olhos, conhecendo-a como um espaço de valor e não de risco. “Condena” a desumanização do interior do País. Apela ao consumidor para se assumir como agente de mudança e alerta para a importância de identificar as propriedades no novo sistema de informação cadastral simplificado, eBUPi (Balcão Único do Prédio).
Quando decidiu ser biólogo?
Tem que ver com as minhas origens. Sempre tive uma relação natural com o Mundo Rural, passando muito tempo na natureza. Fiz isso com os meus irmãos, a guardar o gado, a dar mergulhos no rio Alva… Lembro-me de fazer com os meus pais todas as atividades agrícolas, e isso fez com que tivesse um contacto direto e profundo com o meio que me rodeia. Levou-me a ter curiosidade por todo o sistema. Porque existe aqui esta planta e não outra? Porque é que este animal está aqui e não noutro sítio? Foi um processo natural entrar no curso de Biologia.
Se pudesse criar e desenhar a floresta de raiz, como seria?
Mais do que a floresta do presente, interesso-me pela floresta do futuro. Tem de se criar com base no que temos hoje. Não partimos de um deserto. Temos um tipo de coberto vegetal e é a partir desse que temos de construir os ecossistemas florestais do futuro. Há espaço para tudo. Há espaço para áreas florestais de produção, áreas de conservação, com predominância de espécies autóctones, áreas com uma lógica agroflorestal – inserir também as componentes agrárias, a pastorícia… Olho para o território como espaço multiúso, multifuncional, florestal, agrícola, pastorícia, biodiversidade, de onde se consegue, de uma forma diversa, gerir o território, ter ganhos económicos, ambientais e sociais. Esses são os três grandes pilares da sustentabilidade que entroncam nesta visão multifuncional. Se formos ao detalhe das espécies e dos ecossistemas a privilegiar, aí, pela minha formação e visão do território, há que dar maior ênfase às espécies nativas, às espécies autóctones, mas que também precisam de estar associadas a algum tipo de rentabilidade. Sendo, na sua globalidade, espécies de crescimento lento, é difícil pensar numa rentabilidade económica imediata. Todavia, ao nível daquilo que hoje está muito em voga, os ditos serviços de ecossistema podem ser uma via muito relevante. Temos de olhar para estes espaços, não apenas como um conjunto de árvores que vão produzir madeira, que depois terão usos nobres e são esses usos que poderão ser o valor acrescentado para manter aquele tipo de floresta, mas olhar para estes espaços diversos em diferentes estratos, como locais em que há uma série de serviços fornecidos à sociedade que têm de ser remunerados. E também aqui a sustentabilidade começa. Porque é que as pessoas estão a fugir de investir nesse tipo de floresta? Primeiro, muitos percebem que não é uma floresta de onde vão ter um rendimento durante o período de vida. Estamos a falar de florestas de 20, 30, 40, 50 anos e o português tem muito esta visão de lucro rápido. Temos de associar a esta visão de integração e de multifuncionalidade, remunerações através destes serviços de ecossistema. As florestas de produção também os fornecem, mas, em princípio, encontramos mais indicadores e até percentagens maiores de fornecimento de serviços nas florestas de conservação. Para mim, é tudo floresta e faz sentido olhar para o sistema de uma forma macro. Defendo uma floresta, em que possamos ter um pouco de tudo. Um espaço onde possamos ter espécies autóctones, mas também espécies de crescimento rápido, devidamente organizado e gerido. A gestão é central.
Ainda há guardas florestais em Portugal?
Não existe com essa designação, mas existe a função. O SEPNA (Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente), da GNR, está vocacionado para as questões ambientais, floresta, etc. Vigilância, mas, acima de tudo, fiscalização. E existem outros agentes de fiscalização do território associados a outras entidades, como o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). Estamos a falar de tempos muito diferentes. Os guardas florestais eram associados a uma estrutura que se chamava Serviços Florestais, que geriam uma série de áreas – as matas nacionais e não só – que tinham aquelas “casas do guarda florestal” e que viviam nessas casas, sendo responsáveis por aquele cantão, pela sua gestão e fiscalização. Essa figura desapareceu. Porque a estrutura de serviços florestais foi alterada ao longo de décadas. Eu, por exemplo, fui estagiário do chamado Instituto Florestal, em Coimbra, que era a sede regional, em 95. Depois disso, passou às Direções Regionais de Agricultura, depois passou a Direção-Geral das Florestas, depois passou a Direção-Geral dos Recursos Florestais, depois passou a Autoridade Florestal Nacional e depois foi integrada no ICN e, hoje, é ICNF. Portanto, sofreu imensas alterações em quase três décadas. A figura do guarda florestal de há 30 anos não existe. Hoje, os agentes que se encontram no terreno têm funções de fiscalização, de prevenção e até de alguma extensão, dado que prestam informações relevantes às comunidades locais.
Algumas espécies estão mais próximas da população humana. Raposa, javali. Porquê?
Depende da espécie, da região, porque há variáveis macro e variáveis mais locais. O javali começou a provocar os primeiros estragos na agricultura nos anos 80. A espécie estava a iniciar um processo de expansão, de aumento populacional. E a seguir iniciaram-se os primeiros controlos através da caça e foi nessa altura que estagiei nos serviços florestais estudando esta espécie. E não foi a caça que evitou a expansão extraordinária desta espécie. As causas são várias. Primeiro, a biologia da espécie. Uma fêmea pode produzir em média 4-5 bácoros por ano, em locais em que há muito alimento. Por exemplo, no Alentejo, em que há muita bolota, poderá haver três ninhadas em cada dois anos, com uma mortalidade reduzida. E não há muitos predadores. Os caçadores evitam caçar os bácoros; às vezes um cão assilvestrado, um lobo pode ter essa função, mas é muito localizado, no norte e centro do País. Portanto, não há uma forma de controlar estas camadas mais jovens. É uma espécie com uma adaptação muito grande a qualquer ecossistema ou mesmo perturbação. Há espécies mais sensíveis, e quando há uma perturbação, afastam-se. O javali não. Em Coimbra e noutras cidades, já houve acidentes, mas temos casos mais conhecidos de populações urbanas de javali, como em Barcelona, onde, em muitas avenidas, passam javalis durante o dia e a noite. E temos de assumir que, hoje, ainda há muitos restos de comida e eles vão procurar comida mais fácil e entram nas cidades, porque percebem que é um local seguro onde não há caça, não há controlo e onde vão encontrar alimento. Um animal – e estamos a falar de um animal selvagem – carrega um ecossistema e, hoje, há doenças muito preocupantes – nomeadamente a peste suína africana, que já encontra numa boa parte de países europeus. Ainda não terá chegado à Península Ibérica, mas é uma das doenças mais preocupantes sob o ponto de vista ecológico e económico. E, depois, as comunidades mais urbanas, quando encontram um animal destes, veem-no, muitas vezes, como um animal doméstico, e um javali não é um pet. Não é um animal perigoso, mas, se continuam a dar-lhe comida, estes animais começam a habituar-se àquele local e repetem esse comportamento. O mesmo acontece com a raposa, que facilmente se adapta ao fornecimento de comida. Há também um fator que pode ter tido alguma influência no aumento de algumas populações de animais selvagens no espaço rural (e não só), que é a crescente redução de pessoas no meio rural. Com o abandono, a emigração, a ida para o litoral, a atividade agrícola foi, de alguma forma, reduzindo, e os habitats começaram a ser mais favoráveis a determinadas espécies – e aqui entra o javali, o veado, o corço, a raposa, o saca-rabos, a gineta, entre outras. Quando se fala da redução de vida selvagem ao nível global, muitas vezes, ao nível local e em determinados países, vemos um movimento oposto, e a Península Ibérica é um bom exemplo. Hoje, também se fala muito do rewilding, que é um processo de renaturalização dos ecossistemas. Baseia-se em diversas metodologias, e uma delas pode ser a reintrodução de animais – e de plantas – que podem levar à recuperação das populações. O mais relevante em Portugal e Espanha é o processo de recuperação do lince-ibérico. Contudo, quando estudava Biologia em Coimbra, participei desde o primeiro momento na reintrodução de veados e corços na Serra da Lousã, talvez o processo de reintrodução de vida selvagem com maior sucesso ao nível nacional que tive e tenho o privilégio de acompanhar.
Como era a floresta original em Portugal e o que sobra?
Depende do período. Todavia, num passado relativamente recente (cerca de 5000 anos), as espécies mais dominantes em Portugal continental, eram os carvalhos. E existiam muitas espécies de carvalhos de norte a sul. Também existiam pinheiros, principalmente no litoral. Existiam ainda uma série de outras espécies – como o medronheiro, depois tínhamos outras espécies mais associadas às linhas de água, como os amieiros, os salgueiros – os sanguinhos… Mais tarde, o pinhal veio ocupar uma parte significativa do centro e norte do País e, mais recentemente, o eucalipto. Também é importante referir o aumento de algumas espécies exóticas invasoras, como é o caso das mimosas. Onde podemos encontrar a floresta original? Nalgumas áreas protegidas, como o Parque Nacional da Peneda-Gerês, na Mata da Margaraça, na Serra do Açor, onde se mantém essa floresta nativa em pequena escala, e num ou noutro parque como em São Mamede, no Guadiana, com a vegetação nativa daquele local, na Arrábida, com o chamado matagal mediterrânico, entre outros locais. Hoje existem bolsas de vegetação autóctone, não havendo áreas extensas, de milhares de hectares, com coberto vegetal nativo e diverso. Temos estas bolsas com uma relevância sob o ponto de vista paisagístico, ecológico, muito significativa e que importa preservar.
Qual é a percentagem de floresta privada em Portugal? Pode traçar um retrato-tipo dos proprietários?
Portugal é um país muito sui generis, porque cerca de 97% do território é privado. Apenas 3%, ou um pouco menos, é público. Dentro deste território privado, temos 12% de baldios – áreas comunitárias – e o resto (cerca de 85%) é privado, pertencente a proprietários individuais, coletivos e empresas. No sul e parte da Beira Interior, têm uma propriedade média de vários hectares, podendo chegar a mais de 100 hectares (em média), mas depois entrando aqui a norte do Tejo, mais centro e norte, temos pequena propriedade ou mesmo micropropriedade. Resultado: em mil hectares podemos ter milhares de proprietários, muitos deles de idade avançada ou mesmo ausentes. Temos territórios com propriedades muito pequeninas e com desafios de gestão imensos. E a estrutura da propriedade é crucial para o processo de transformação. Nomeadamente, a identificação do proprietário – o chamado cadastro. Estão a ser dados passos. A iniciativa recente eBUPi (Sistema de Informação Cadastral Simplificado e do Balcão Único do Prédio) é muito importante para os consumidores. Muitos concelhos já aderiram. É um gabinete onde podem ir de modo voluntário identificar o terreno, ou, no caso de uma transação, torna-se obrigatório. Começa a haver um mapeamento das parcelas ao nível nacional. É o início de um processo que pode e deve integrar outras ferramentas já existentes, como, por exemplo, o parcelário agrícola.
Estamos a abandonar uma parte incrível do País. Já conseguimos projetar a desertificação?
Não gosto de chamar desertificação. Prefiro chamar-lhe desumanização, pois associo à ausência de pessoas. Basta olhar para os últimos Censos. O fenómeno já tinha sido reportado e estimado. A população ia continuar a reduzir nos territórios rurais e este processo merece análise aprofundada. A falta de recursos humanos tem reflexos na atividade económica e social destes territórios. Para alguns trabalhos relevantes nas áreas florestais não há pessoas para trabalhar. Não há uma pessoa para usar uma motorroçadora. Tem de se contratar uma empresa e já se chega a pagar cerca de 150 euros por dia por pessoa com máquina. A propriedade é pequena; há falta de rendimento; há falta de gente para trabalhar. E, ao somar estas “camadas”, o que faz a maioria das pessoas? Desiste. Acaba por ser o mais fácil, para mal do território e do País.
Como pode a DECO PROteste ajudar os consumidores?
Passar, difundir e divulgar boa informação. Falta informação de qualidade sobre o que está a acontecer e as transformações que se estão a planear e outras que já estão a ser executadas. É a partir da boa informação que as pessoas se podem tornar agentes ativos da mudança. As pessoas têm de estar informadas. Quase todos são proprietários, ou, se não são agora, mais tarde podem vir a ser, por herança. Os proprietários rurais precisam de mais informação para perceber o que está a acontecer, o que pode acontecer. É preciso privilegiar canais de informação. Falta um meio de comunicação especializado acessível a todos. A população está a ficar mais urbana, mas há muitas pessoas que têm vontade de saber mais e equacionam poder viver no Mundo Rural. Para isso, é preciso perceberem o que está a ser feito e que oportunidades existem. Em Portugal, há muita opinião, mas não há muita informação. E precisamos de melhorar a informação. Precisamos de pessoas que ajudem, contribuam para a mudança necessária. Podem contribuir pela compra de produtos destes territórios ou podem vir a fazer parte destas comunidades rurais. A covid-19 demonstra que, hoje, o local onde vivemos acaba por ser menos relevante, se é cidade, se é aldeia. Com uma boa conectividade, estamos a trabalhar e há muita qualidade de vida no Mundo Rural.
A covid-19 teve impacto na floresta?
Estamos [no ForestWISE] prestes a lançar o livro intitulado A Floresta e o Fogo em Tempos de Pandemia com o contributo de mais de cinco dezenas de autores. Dentro da atividade florestal, no terreno, pouco ou nada afetou. É uma atividade ao ar livre. Afetou nos transportes nos quais já não podiam ir muitos trabalhadores numa mesma viatura. Nas fábricas, houve uma série de regras e adaptações. Algumas tiveram de reduzir o número de pessoas, segundo os planos de contingência, e outras optaram pelo chamado “trabalho em espelho”. Comparando com outras atividades, estou em crer que esta pandemia não teve um grande impacto no setor florestal. Provavelmente a instabilidade vivida na Europa devido ao conflito bélico na Ucrânia está a ter mais impacto, sobretudo ao nível dos custos da energia e das matérias-primas, com grandes impactos nas indústrias do papel e da pasta de papel, cortiça, painéis derivados de madeira, entre outras.
Turismo no medronhal e "agrofitness"
Em 2013, criou do zero um projeto familiar sustentável de valorização do seu território de origem, onde faz na prática aquilo que defende na teoria, sempre com as mãos na terra criando a floresta do futuro, diversificada e com espaço para tudo. Terras de Mondalva e o que elas encerram são a maior prova viva do que ensina nas universidades.
Quando teve a ideia do projeto da Medronhalva?
Atualmente, a Medronhalva Lda., uma empresa familiar, gere cerca de 25 hectares de território de minifúndio, sendo que cerca de 20 ha são de medronhal. O que fez a diferença foi os meus pais terem feito as doações em vida, fugindo à tradição nacional. De repente, passei de uma pessoa que opina e dá aulas sobre gestão e conservação do território para proprietário rural. Estamos a falar de 2013, estava na universidade como professor há 12 anos, tinha esta visão do território, da sustentabilidade e de fazer um caminho diferente. Já que ensinava como se fazia ou como achava que se devia fazer, agora, tinha a possibilidade de pôr na prática e demonstrar que é possível fazer de outra forma, mostrando que há alternativas para o nosso território. E decidi: vou regressar às origens. E este regresso levou-me a um trabalho de aumento gradual das áreas. Recebi por doação áreas reduzidas de 5 mil metros quadrados e mais pequenas e fui fazendo emparcelamento. Ao juntar os terrenos dos vizinhos, quase sempre com a ajuda do meu pai, comecei a ter áreas de um hectare e meio aqui, dois hectares acolá… Um trabalho de formiguinha, um autêntico processo épico. Comprar terrenos, fazer transações, os elevados custos associados, a falta de incentivo à aquisição, os registos de propriedade, enfim… Um pequeno terreno de 600 metros quadrados ficava mais barato do que os impostos e taxas a pagar na conservatória. Toda a vida estudei animais. Mas, quando tive de investir, investi em plantas. A zona onde cresci, em São Pedro de Alva, Penacova, tem muito medronhal espontâneo. Recuperámos as áreas de medronhal nativo, com base na regeneração natural, e conduzimos as plantas para produção, mantendo o ecossistema mediterrânico, com cerca de 14 espécies mediterrânicas, árvores, arbustos; e noutras zonas, fizemos uma intervenção mínima para instalação de pomares ou plantações ordenadas de medronheiro. Hoje, temos 10 hectares em várias manchas de plantações ordenadas e outros 10 em áreas de medronhal espontâneo, regenerado. Temos apicultura, turismo com uma casa integrada na rede das Aldeias de Xisto (“Medronheiro – Terras de Mondalva”), dinamizando uma série de atividades que permitem manter um recurso humano a tempo inteiro. E é esse excelente colaborador que faz a diferença. Conseguir fixá-los e mantê-los é o segredo para a viabilidade dos nossos territórios. A sustentabilidade económica, social e ambiental vai crescendo a cada dia que passa. Também estamos a trabalhar na preparação de vários produtos, no sentido de trazer valor acrescentado para o medronho, para resultar em muito mais do que “apenas” um produto alcoólico. Queremos ir mais longe. Ao consumir o nosso fruto fresco, proveniente do primeiro medronhal certificado do Mundo e de um processo de agricultura biológica, o consumidor está a absorver um conceito, um território gerido de uma forma sustentável. Aquele fruto só existe naquele período do ano – dois meses, é raro – não é um fruto que se encontre facilmente, e o consumidor será um privilegiado ao ter acesso ao mesmo. O medronheiro é um arbusto mediterrânico. Portugal é o principal produtor de medronhos, e isso pode fazer a diferença, no caminho da diferenciação e da valorização territorial e nacional.
Ainda faz o que batizou de “agrofitness”?
Nestes projetos diferenciadores, temos de encontrar ideias criativas. O “agrofitness” surge porque este regresso às origens fez com que voltasse a fazer coisas que não fazia desde miúdo/jovem. É uma palavra sexy para dizer aquilo que toda a gente faz no campo, trabalhar de uma forma árdua, na atividade agrícola, fazendo exercício e contribuindo para o bem-estar. No meio desta estratégia do desenvolvimento territorial, temos de encontrar bandeiras que se possam traduzir em produtos. “Agrofitness” é o que fazemos ao fim de semana, é o que o nosso colaborador faz todos os dias, mas a ideia foi criar vários níveis para que todos os interessados possam vir praticar. Por exemplo, estamos a preparar condições para o “Agrofitness acessível”, que é para as pessoas com mobilidade reduzida, temos “medronhais acessíveis” onde estas pessoas podem ir apanhar medronhos; depois temos do nível 1 ao 5. O 5.º é desenvolvido numa encosta íngreme, com medronheiros, onde os turistas são convidados a colher medronhos suspensos com um arnês… É o mais radical. Meio a brincar, mas muito sério. Cultivamos ainda o milho tradicional, o milho branco, com aquele milho rei (vermelho) pelo meio. Em pleno verão regamos à moda antiga e convidamos os hóspedes do “Medronheiro – Terras de Mondalva” a fazê-lo connosco. Corta o rego para a água passar para o outro. Fazemos isto descalços, ao fim do dia, cinco da tarde e depois, às sete, vamos todos para dentro de água tomar um bom banho nas límpidas águas do rio Alva.
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