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Incêndios florestais: “Há um Portugal antes e depois de 2017”

Entrevistámos Carlos Fonseca, o diretor científico e tecnológico do ForestWISE, Laboratório Colaborativo para Gestão Integrada da Floresta e do Fogo. Integrou as duas Comissões Técnicas Independentes que analisaram os grandes incêndios de junho e outubro de 2017 em Portugal. Cinco anos depois, muito mudou.

15 junho 2022
Carlos Fonseca, diretor do ForestWise, Laboratório Colaborativo para Gestão Integrada da Floresta e do Fogo

João Ribeiro

Nasceu em Penacova, tendo vivido em São Pedro de Alva, no mesmo concelho até aos 18 anos. Vive em Coimbra. Tem 47 anos, é biólogo, diretor científico e tecnológico do ForestWISE, o Laboratório Colaborativo para Gestão Integrada da Floresta e do Fogo, e professor na Universidade de Aveiro, onde lecionou e investigou temas ligados à gestão e conservação de recursos silvestres.

Em Portugal, poucos se inquietam tanto com a floresta do futuro e a prevenção de incêndios como Carlos Fonseca, com uma vida dedicada ao mundo rural, à investigação em vida selvagem e à valorização dos territórios rurais. Foi um dos 12 peritos das Comissões Técnicas Independentes que analisaram os grandes incêndios de 2017 e viveu o de outubro na primeira pessoa, num combate épico. Esta entrevista pode salvar vidas e ajudar a construir um futuro para a nossa floresta, se for lida e relida por todos com responsabilidades na matéria.

Outubro de 2017, Penacova, Coimbra. 
Outubro de 2017, Penacova, Coimbra.

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Floresta e prevenção de incêndios

Carlos Fonseca viveu na primeira pessoa o incêndio de 15 de outubro de 2017 e fez parte da equipa de peritos. O desastre de Pedrógão Grande foi o incêndio florestal mais mortífero de sempre da história do País.

Na floresta, o que mais inquieta os consumidores?

De uma forma geral, os consumidores associam a floresta muito mais ao risco do que ao proveito. Uma parte significativa da sociedade, mais ligada ao meio urbano do que ao meio rural, vê a floresta mais como um espaço de risco do que um espaço de valor. Temos de inverter isto. Se as pessoas que vivem no mundo rural têm uma visão mais real daquilo que é a floresta, é preciso que as pessoas que vivem nas cidades mudem este sentimento. A floresta portuguesa tem de ser mais valorizada por todos. Gostava de explorar o porquê dos cursos de engenharia florestal terem pouca atratividade. Em muitas situações, os cursos não conseguem preencher as vagas e muitos alunos não continuam até ao final do curso. Num país florestal, com uma grande carência de recursos qualificados, se os cursos das áreas florestais não são atrativos para as novas gerações, é porque algo está mal. Queremos perceber qual é o sentimento e a perceção que as novas gerações têm sobre a floresta portuguesa. A floresta tem valor e esta criação de valor faz parte do movimento de transformação que nos envolve a todos e se tornou mais urgente sobretudo após 2017. As questões sociais e comportamentais têm obrigatoriamente espaço nesta transformação. Muitas pessoas pensam na floresta como um espaço de lazer, passeio e de outras atividades que estão na moda. Mas o prisma do proprietário é muito relevante, e a maioria, infelizmente, não vê a floresta como um espaço em que pode ter rentabilidades associadas. O consumidor também deve ser um agente de mudança e tem de ser mais informado. Tem de se apostar mais nas ações de comunicação. A Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF) tem feito um bom trabalho na comunicação de risco, quase diário e com principal incidência nos meses de maior risco. As pessoas olham para a floresta como um conjunto de árvores, mas a floresta é muito mais do que isso: é sequestro de carbono, preservação das nascentes de água, da biodiversidade, com aves, mamíferos, plantas – muitas únicas no mundo inteiro, que estão também em Portugal. As pessoas têm de ser educadas a observar o que as rodeia e a melhor observação do espaço florestal poderá conduzir a uma maior valorização e respeito.

 

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“As catástrofes de 2017 expuseram as debilidades de um território que constitui quase dois terços do País, o Mundo Rural”, observa Carlos Fonseca.

 

A população está mais alerta?

Creio que sim, sobretudo depois de 2017. Há um antes e um depois desse ano marcante. As imagens que temos na cabeça e as vivências de muitos levaram a uma maior consciencialização, mas revelaram também problemas mais profundos no território. Aquelas catástrofes expuseram as fragilidades de um território imenso, quase dois terços do País, aquilo a que chamamos o Interior, mas que prefiro chamar o Mundo Rural.

Há sinais de mudança?

Sim, há sinais de mudança de uma forma genérica, pois existem situações em que está tudo igual ou até mesmo pior. Todas as semanas estou no Mundo Rural e sinto que as pessoas vão tendo cada vez mais a noção se a casa onde vivem está em segurança ou não. A olhar à sua volta percebem se o mato está muito perto, se a árvore tem de ser cortada, se têm de falar com o vizinho ou mesmo denunciar uma situação irregular. Após 2017 ficou mais presente a perceção do risco, que não existia dessa forma até aí. Também têm ajudado os programas criados nas localidades mais vulneráveis, como as “Aldeias Seguras”, entre outros. Estou convicto de que hoje, no Mundo Rural, há uma maior consciência do risco. A perceção de que muitas vezes é preferível não fugir e não sair do povoado quando decorre um incêndio nas imediações. Os acontecimentos de Pedrógão acabaram por ser uma grande lição que teve reflexo em 15 de outubro [de 2017], onde houve diferenças ao nível do perfil das fatalidades. Houve muito menos mortos na estrada, face a Pedrógão.

O que o marcou mais em 15 de outubro de 2017?

A noção da nossa impotência! Tínhamos entregado o relatório de Pedrógão a 12 de outubro, 5.ª feira. Foram três meses intensos, sem férias. Na 6.ª feira, descansei, e 14 fui ver como estavam os medronheiros. Os medronhos estavam pequenos, duros e secos. A 15 de outubro regressei aos medronhais, sabendo que havia um “incêndio na Lousã a caminho de Poiares”, como vi na televisão durante o almoço. A caminho dos medronhais, já no jipe, percebi o calor exagerado para a época, bem como o vento muito forte… e vejo o fogo a chegar à Serra da Atalhada. Desço para o rio Alva, até que o vale começa a ser invadido por todo aquele fumo, e, de repente, há uma projeção na encosta lateral, depois outra mais adiante e depois outra aos meus pés… Ali deu para perceber porque tanta gente morreu. É um ambiente extremo com fumo, calor, vento, lume. Tinha uma mangueira com água e a noção de que se vir que a coisa está muito má, dou dois saltos e estou dentro de água. Mas… não estamos preparados. Tinha o vizinho a salvar a casa dele e os currais dos animais e lá conseguimos salvar o casario todo da praia fluvial do Vimieiro, inclusive o restaurante. Vivi tudo na primeira pessoa. O fogo chegou lá por volta das 17h00, fiquei até às 22 horas. Depois vim para cima, para São Pedro de Alva, a passar com o jipe por cima de postes e árvores caídas, para salvar a casa dos meus pais e de outros vizinhos, e andei nisto até às 5h00 da madrugada, como tantos outros andaram. Tentei descansar e acordei a pensar “talvez a parcela de medronheiros mais afastada, em São Paio do Mondego, não tenha ardido”… numa tentativa de dar um sentido aos investimentos feitos durante anos no minifúndio. Às 7h00 da manhã já lá estava. Ardeu tudo. Arderam cerca de 20 hectares de medronhal. Aliás, a TSF noticiou “morreu queimado (…) o primeiro medronhal certificado do mundo”.

Ninguém o arrancou dali? Ninguém lhe pediu para sair?

Não. Os que ali estavam eram os que ali tinham casas ou outros pertences. Fiquei lá conscientemente! O meu património e grande parte dos investimentos de uma vida estão ali. Muitas pessoas morreram a defender bens. Também eu estava a defender um bem e resisti até à última, sendo que sempre tive água disponível e tinha a consciência de que a proximidade do rio me daria alguma segurança.

Houve ações de sensibilização junto das populações?

Sim. Após 2017 houve várias campanhas e estratégias de sensibilização das populações com o envolvimento dos agentes de proteção civil e de segurança. Hoje, no Mundo Rural, assiste-se gradualmente a uma mudança de comportamentos com ações de sensibilização e investimentos em locais de abrigo e mais informação. Há também o programa Aldeias Seguras, em que se começaram a criar zonas de proteção à volta das aldeias com espécies não florestais, essencialmente agrícolas, com o objetivo de se criar um anel de segurança. Houve durante estes cinco anos um grande investimento, essencialmente público. Não se consegue ver em todo o lado. Temos muitas aldeias, o território está muito disperso em termos de povoamento e é difícil atuar em todas. Foram definidas as freguesias prioritárias, que apresentam maior risco e vulnerabilidade e é nessas onde o maior investimento está a ser feito.

No Plano de Recuperação e Resiliência, há valores para a floresta?

Sim. A componente 8 do PRR é exclusiva para a floresta, com um investimento de mais de 600 milhões de euros, assente no Programa de Transformação da Paisagem, mas não só. A ideia é que este dinheiro sirva para a gestão agrupada do território com um trabalho de identificação dos proprietários e implementar modelos de gestão florestal com melhor ocupação florestal, mais produção, mais conservação, mais sistemas agrícolas, mais pastorícia, com faixas de gestão de combustível – indo ao encontro da redução do risco. Há, contudo, outras componentes no PRR que irão beneficiar a floresta, como a componente 5 que visa a capitalização e inovação empresarial, onde há uma agenda verde dirigida a toda a cadeia de valor da floresta, coliderada pelo ForestWISE, bem como a componente 12, a da Bioeconomia Sustentável, no âmbito da qual o nosso laboratório colaborativo lidera um consórcio para a valorização da resina natural com investimentos superiores a 27 milhões de euros. A floresta foi identificada por António Costa e Silva e pela sua equipa como uma prioridade. Acho que 2017 foi decisivo para se trazer o tema da floresta para a agenda política e para o quotidiano da sociedade. Hoje, falamos de floresta, toda a gente fala de floresta e da sua relevância para o País, assumindo-se cada vez mais que é um valor, um capital natural que importa valorizar.

O fogo é um problema sem solução?

Num clima mediterrânico, o fogo é um processo natural. Se vivêssemos num ecossistema em que o fogo não era natural, não tínhamos tantas espécies vegetais adaptadas a este fenómeno. Desde logo, o sobreiro, porque tem a cortiça que protege o tronco, protege a espécie e, após um incêndio, de facto, a cortiça fica queimada, mas a planta, a árvore, continua viva. Temos o medronheiro, temos a oliveira, temos os carvalhos, todas autóctones. Depois de o fogo passar, ficam carbonizadas, mas o sistema radicular não morre, na maioria dos casos, e dali brota a nova planta. Há uma capacidade de regeneração enorme nas nossas espécies. Estas coevoluíram com o fogo. E, se formos à Austrália, acontece o mesmo, bem como na Califórnia, entre outras regiões com características mediterrânicas. O importante é evitar incêndios de grandes dimensões. E para isso precisamos de preparar várias componentes, não só a prevenção, mas criar um território mais sustentável, criar a floresta do futuro. Tem de haver transformações ao nível da paisagem e, para que tal aconteça, é necessário haver mudanças desde as plantas mais utilizadas até ao mercado, ditado pela sociedade. Temos três fileiras florestais minimamente organizadas no País: a principal é a do eucalipto, depois a do sobreiro (cortiça) e a do pinho. São os cobertos dominantes, porque, acima de tudo, têm quem os valorize com intervenções e ganhos em toda a cadeia de valor. Contudo, o futuro passa cada vez mais por sistemas agroflorestais e diversificados, naquilo que é a paisagem em mosaico, que temos de promover: a floresta futura, com espaço florestal, zonas de interrupção com agricultura, pastorícia, depois mais floresta… E esta planificação está relacionada com o que vai ser o rendimento para os proprietários, para o território e para o País. E, quando falo em rendimento, não se pode entender apenas económico, mas também ambiental ou ecológico e até social. Se a floresta for rentável, conseguimos maior fixação de pessoas, uma economia local e regional mais dinâmica e sistemas mais sustentáveis ambientalmente.

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ForestWISE junta empresas e universidades

Carlos Fonseca desenvolve trabalho de formiguinha todos os dias na floresta e na instituição que lidera com uma equipa de mais de 20 membros. Em 2020, abraçou, como diretor científico e tecnológico o ForestWISE, o Laboratório Colaborativo para Gestão Integrada da Floresta e do Fogo. Hoje, já é uma referência nacional e internacional.

Equipa ForestWISE quase completa. Com sede em Vila Real e uma delegação no Porto, faz pontes entre a academia, as empresas e o setor público. Vai marcar o futuro da floresta em Portugal. 
Equipa ForestWISE quase completa. Com sede em Vila Real e uma delegação no Porto, faz pontes entre a academia, as empresas e o setor público. Vai marcar o futuro da floresta em Portugal.

Como nasce o ForestWISE e qual a principal missão?

O conceito de laboratório colaborativo surgiu em 2017/18 pelas mãos de Manuel Heitor, ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior que trouxe para Portugal um modelo que integra indústria, empresas, universidades e o setor público numa mesma instituição. Nessa altura, foi também dada ênfase à criação de um laboratório para a floresta e o fogo. Estas áreas passaram a ser prioridade. E o ForestWISE surgiu porque as maiores empresas dos setores florestal e energético do nosso país (The Navigator Company, Altri Florestal, Amorim Florestal, Sonae Arauco, DS Smith, REN e E-Redes) lideraram o processo, acompanhadas pela academia. Estamos a falar do INESC TEC do Porto, das Universidades de Aveiro, Coimbra, do ISA, em Lisboa, de Évora e da UTAD. E depois juntaram-se duas entidades públicas: a AGIF, criada um pouco antes – e o INIAV (Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária). E foi com este grupo de peso que foi criado o nosso laboratório colaborativo, com o objetivo de se encontrarem soluções para o que foi identificado pelos agentes do setor como os principais problemas e necessidades.

Quantos membros tem a equipa?

Atualmente, somos cerca de 20 e vamos receber mais quatro, em breve. O CoLAB é acompanhado pela Agência Nacional de Inovação (ANI), e financiado de início por programas nacionais e europeus através da CCDR-N, porque a nossa sede é em Vila Real, a par do financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Estes laboratórios colaborativos têm de caminhar para um modelo de sustentabilidade que implica um terço de financiamento público, um terço de financiamento através de projetos de investigação e um terço ao nível das prestações de serviço. O rePLANT é o nosso primeiro grande projeto, em coliderança com a The Navigator Company. Inspira-se na nossa agenda de investigação, desenvolvimento e inovação, que foi criada através de um modelo participativo dos diferentes agentes dos setores – da floresta e do fogo. Primeiro, identificámos as necessidades em conjunto e com base nas mesmas criámos uma agenda de investigação. Este projeto mobilizador conta com 20 parceiros e assenta nos principais pilares da ação do ForestWISE, que são a gestão da floresta e do fogo, do risco e economia circular e cadeias de valor, e cada um liderado por uma empresa, com uma universidade e com outras entidades. Por exemplo, no pilar 1, está a fazer-se o melhoramento genético de pinheiro, para ter melhores produções, entre outras atividades. Sob a liderança da Sonae Arauco estão a ser feitos ensaios no terreno – nas serras do Porto, para perceber também a resposta destas plantas aos vários tipos de solos e condições edafoclimáticas. Por exemplo, no pilar 2, gestão do risco, estão a ser instaladas câmaras de vigilância nos postes da REN, de muito alta tensão, para se perceber a dinâmica da vegetação envolvente, que permitirá a definição de algoritmos para se poder melhor planificar a gestão das faixas debaixo das linhas, mas também a monitorização do espaço sob linhas de modo a obter-se mais informação útil para a prevenção e, eventual, combate dos incêndios. E depois no terceiro pilar, gerido pela Navigator e pelo ForestWISE, está a ser desenvolvida uma máquina, uma alfaia florestal pela Fravizel, que faz a plantação e adubação em simultâneo, entre outras atividades.

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