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Ricardo Deus: o que podemos esperar das alterações climáticas em Portugal?

Reduzir e reciclar
Ricardo Deus IPMA
José Fernandes

Ondas de calor mais frequentes, que atravessam o Sul da Europa e seguem para paragens menos habituais para este padrão climático, noutras latitudes do Velho Continente. Mas também secas severas e cheias, a erosão costeira e tudo o que o nosso país pode esperar dos efeitos, já sentidos, das alterações climáticas. Como poderemos responder e adaptar-nos? Ricardo Deus, da Divisão de Clima e Alterações Climáticas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) aponta alguns caminhos, numa entrevista que contou, ainda, com o contributo técnico de Célia Gouveia, Vanda Cabrinha e Paulo Pinto, também do IPMA.

A que se deve o aumento da duração e da frequência das ondas de calor no nosso país?

As ondas de calor ocorrem frequentemente na Europa e, de alguma forma, são fenómenos que fazem parte do perfil climático da região na qual Portugal se insere. No entanto, as ondas de calor que têm sido registadas nas últimas duas décadas na Europa têm características diferentes das registadas no século passado. Isto é, estes fenómenos estão cada vez mais frequentes, mais prolongados, intensos e extensos. Atingem regiões do território europeu que não era usual atingir.

Em Portugal, em linha com o que acontece em diversos países, tem-se registado um aumento médio da temperatura do ar à superfície, resultado também da ocorrência de períodos de tempo excecionalmente quente (que podem derivar em episódios de ondas de calor), nos quais valores de temperatura máxima do ar acima de 40°C são cada vez mais frequentes.

O que as causa?

Este aumento da temperatura do ar à superfície está diretamente ligado ao aumento da concentração de gases de efeito de estufa (dióxido de carbono, metano, oxido nitroso, entre outros) essencialmente à superfície, que promovem a retenção da radiação emergente da superfície essencialmente térmica (na gama do infravermelho).

Além desta relação direta entre o aumento da temperatura do ar à superfície e a concentração de gases de efeito de estufa, existem outros fatores que estão relacionados com a dinâmica e circulação da atmosfera, que contribuem para o aumento da frequência de períodos de tempo excecionalmente quente. No nosso território continental, os períodos estão, em regra, associados ao "equilíbrio de forças" e configuração dos centros de ação na região Euro-Atlântica, como por exemplo, o posicionamento da grande região anticiclónica do Atlântico (anticiclone dos Açores), a depressão térmica na Península Ibérica e a circulação dominante no Norte de Africa. O resultado da mudança neste equilíbrio tem implicado o transporte mais frequente e persistente de massas de ar quentes e secas, oriundas do norte de África.

Que consequências poderão ter?

As consequências são de diversas ordens, mas o maior impacto será no setor da saúde, tendo em conta a perda de vidas diretamente relacionada com estes períodos de tempo excecionalmente quente. De acordo com dados do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), a mortalidade triplicou face ao ano 2024 devido ao calor extremo. No setor agrícola ocorrem danos e perdas de produtividade, tendo em conta a ocorrência destes períodos de tempo excecionalmente quentes fora das épocas usuais.

Isso leva, por exemplo, à floração prematura de algumas culturas. A ocorrência de fenómenos como o escaldão, que destrói diversas culturas de época, desde a vinha ao olival e às fruteiras; a inadaptação das culturas existentes a um clima diferente, no qual a temperatura média do ar é mais elevada devido à maior ocorrência destes fenómenos extremos (onda de calor). Maior necessidade de consumo de água tendo em conta que durante estes períodos quentes existirá uma maior evapotranspiração o que implica, para manter as plantas saudáveis e produtivas, termos de disponibilizar-lhes mais água.

No setor da pecuária, temos vindo a constatar o aumento do ”stress” animal em situações de longos períodos em onda de calor. A gestão do setor florestal, bastante sensível aos períodos excecionalmente quentes e secos, tendo em conta que o risco meteorológico de incêndio está diretamente dependente, além de outras variáveis meteorológicas, da temperatura e da humidade relativa do ar.

O que poderá ser feito para nos adaptarmos a elas, sem consequências de maior?

A sensibilização das diversas comunidades é fundamental na prevenção dos diversos impactos relacionados com a ocorrência de ondas de calor. Adaptação, essencialmente em meio urbano, com a criação de zonas mais arborizadas tendencialmente mais frescas e húmidas que funcionem como refúgios climáticos para a população. E a alteração e seleção de espécies mais resistentes e adaptadas ao novo clima, de forma a manter a produtividade em diversas fileiras do sector agrícola.

As secas severas também são cada vez mais frequentes no nosso território. Como se poderá fazer uma gestão adaptada dos recursos no futuro?

Desde que há registos consistentes da precipitação (um dos principais parâmetros meteorológicos que influenciam diretamente a ocorrência de secas) em Portugal Continental, é fácil constatar a existência de eventos de seca meteorológica prolongada com maior expressão na região sul do território continental. Em termos climáticos, tem-se verificado em Portugal continental um decréscimo dos valores anuais de precipitação, cerca de -20 mm/década, tendo os últimos 20 anos sido particularmente pouco chuvosos.

A redução nos valores de precipitação verificou-se em todas as estações do ano, com exceção do outono. Mesmo com esta característica climática do nosso País, tem-se vindo a registar mudanças no padrão deste fenómeno, com a ocorrência de períodos de seca (dias sem precipitação) cada vez mais longos no tempo e a estenderem-se para a região Centro e Norte Interior, bem como mais intensas. Esta constatação é observável nos dados históricos da precipitação e está em sintonia com o clima futuro.

Qual o impacto deste fenómeno?

Verifica-se que nos anos mais recentes tem havido uma maior frequência de episódios de seca severa e extrema e alguns deles têm-se prolongado por mais de um período húmido (outono e inverno) e seco (primavera e verão) e também têm abrangido uma maior percentagem do território. Seca meteorológica é apenas um componente do fenómeno da seca e é aquela que não controlamos.

O que a climatologia evidencia é que a seca meteorológica está cada vez mais presente no nosso território e tem impacto direto na seca agrícola, na seca hídrica e consequentemente na seca socioeconómica. A maior frequência de situações de seca meteorológica que se verifica em Portugal Continental nas últimas décadas é indicativa de um aumento do risco e da vulnerabilidade a este fenómeno, o que poderá obviamente trazer um aumento dos impactos, nomeadamente, ao nível dos setores agrícola e hidrológico e necessariamente social. Face a esta relação entre as três secas, a resposta está mesmo na adaptação ou na criação de novas medidas de gestão hídrica numa sociedade cada vez mais exigente em termos do consumo de água mas também cada vez mais sensibilizada para o tema da água.

Outro fenómeno extremo, no sentido oposto, são as cheias. São de esperar, também, com maior regularidade e frequência?

Fenómenos de inundações e cheias são consequência, em regra, de eventos de precipitação forte, em alguns casos que ocorre num pequeno período de tempo. Apesar de a quantidade média de precipitação ocorrida no território continental ter vindo a diminuir, têm-se registado cada vez mais eventos de precipitação forte que ocorrem em curtos períodos de tempo, o que resulta em inundações e cheias rápidas.

São situações que ameaçam a vida humana, os ecossistemas e impactam de forma incisiva no tecido socioeconómico da nossa sociedade. O contributo dos dias de precipitação intensa para o total de precipitação tem vindo a aumentar, sobretudo no outono e na região Sul. Desta forma, a intensidade e frequência de eventos de precipitação extrema têm vindo a aumentar. De acordo com os resultados dos cenários de clima futuro, apesar do sinal da tendência de decréscimo de precipitação e do número de dias com precipitação, aumentará o número de dias com precipitação forte, indicador do aumento do número de eventos de extremos de precipitação com potencial impacto resultante das inundações e cheias rápidas.

Os incêndios também podem estar relacionados com as alterações climáticas?

Os padrões de ocorrência e de comportamento de um incêndio resultam da interação entre as condições climáticas passadas e as práticas de utilização do solo numa determinada região, definindo assim um regime de fogo. Em anos recentes, têm vindo a ser observadas alterações nos campos da temperatura, humidade relativa e vento que, associados a uma maior frequência de eventos climáticos extremos, como secas prolongadas e ondas de calor muito intensas e longas, têm contribuído para alterações significativas no teor de humidade e quantidade de combustível disponível, induzindo épocas de incêndios mais longas e mais severas nas regiões a Sul da Europa e aumentado o risco de incêndio nas regiões da Europa Central e Norte.

Estas mudanças no regime dos incêndios, claramente associadas às alterações climáticas, estão assim associadas à ocorrência cada vez mais frequente de incêndios muito intensos e severos. Neste cenário, em que estamos a omitir o papel desempenhado pela topografia e pelas ignições (naturais ou antropogénicas), e lembrando que as condições meteorológicas são apenas um dos intervenientes para a ocorrência de incêndios, pode afirmar-me que as alterações observadas e previstas na temperatura, humidade e vento, bem como o aumento de secas prolongadas e ondas de calor intensas, atuando isoladamente ou em conjunto (como aconteceu em 2017), potenciam a ocorrência de incêndios rurais e florestais cada vez mais destruidores.

Fenómenos como “tornados” de fogo foram visíveis nos incêndios mais recentes no nosso país. É também de esperar que sejam mais frequentes?

Os chamados tornados de fogo têm, na sua origem, muitas semelhanças com os fenómenos conhecidos como diabos de poeira - vórtices que, com alguma frequência, se formam um pouco por todo o nosso território, durante a estação mais quente e seca, e sem associação direta a nuvens. Ambos são "primos" bastante mais afastados dos tornados propriamente ditos, associados a nuvens.

No essencial, quer em incêndios em curso, quer sobre áreas recém-ardidas, o solo encontra-se muito quente e o calor que é transmitido ao ar sobrejacente, torna-o bastante mais quente do que o ar das vizinhanças. São, assim, criadas condições de grande instabilidade, suscetíveis de gerar correntes ascendentes muito intensas, em escalas locais. Se, por outro lado, estiver presente vento fraco em níveis baixos e mais forte em altitude ou vice-versa, a corrente ascendente poderá adquirir movimento de rotação, que é, frequentemente de eixo aproximadamente vertical. Este fenómeno pode manter-se por algum tempo, que pode variar entre poucos segundos e alguns minutos. Estando os ingredientes físicos que sustentam este tipo de fenómenos associados à ocorrência de incêndios, é de admitir que em cenários futuros estes fenómenos possam ser, também, mais frequentes.

A erosão costeira portuguesa era outro dos riscos apontados pelos estudos, há alguns anos. É possível antever como poderão reconfigurar a nossa costa?

Quando falamos de aquecimento global estamos, em regra, e de uma forma natural a pensar sempre na atmosfera, na temperatura do ar e na precipitação, mas na realidade o sistema natural integra outra componente, de igual forma importante, como por exemplo a hidrosfera. O aquecimento global também impacta na temperatura dos oceanos, que tem vindo a aumentar, em algumas regiões de forma bastante expressiva, comprovável pelo inegável e sem precedentes recuo dos glaciares, da diminuição da área coberta por gelo (criosfera), com especial destaque para o Ártico, e pela ocorrência de ondas de calor oceânicas um pouco por tudo globo, sendo de destacar o Mediterrâneo e o Atlântico Norte.

Com a diminuição do volume de água no estado sólido e aumento da água no estado líquido, o aumento do nível médio do mar é inevitável. Este aumento impacta diretamente na região costeira, no recuo da linha de costa e consequente aumento da vulnerabilidade das comunidades costeiras, atentando às suas vidas, meios de subsistência, destruição de ecossistemas marinhos e criando condições ambientais para o aparecimento de novas espécies.

Qual será o aumento do nível do mar?

Os últimos estudos relacionados com o clima futuro, no pior cenário de emissões de gases de estufa, apontam para um aumento de até 1,15 metros do nível médio do mar até ao final deste século. A consequência será a perda de área terrestre e o recuo da linha de costa. No pior cenário prevê-se uma perda de até 0,197 km² até 2100, levando a recuos consistentes da linha de costa projetados, até 2100, que poderão atingir os 300 metros ao longo da costa Oeste e os 80 metros na costa Sul.

Além do impacto resultante do aumento do nível médio do mar, a mudança nos regimes de precipitação também poderá ter um impacto significativo no processo de erosão costeira. Apesar de em termos médios, no pior cenário de emissões de gases de estufa, a projeção de clima futuro aponta, até ao final do século, para uma diminuição da quantidade da precipitação, até 30 por cento. Prevê-se que o número de dias com precipitação excecionalmente intensa aumente até quatro dias por ano, o que poderá promover o aumento da erosão e transporte de sedimentos para zonas costeiras.

Que outras consequências poderão advir dessa erosão?

A transformação ou mudança da linha de costa terá impacto nas comunidades que vivem nessas zonas vulneráveis e nas atividades económicas que lhes dão condições de vida e de prosperidade. Poderemos destacar a ameaça à vida das pessoas e infraestruturas e bens das comunidades costeiras. Por outro lado, a perturbação do equilíbrio dos ecossistemas costeiros ou até a sua destruição poderá impactar o modo de subsistência destas comunidades.

Que mecanismos existem para prever e atuar quando ocorrem estes fenómenos climáticos extremos? Como é que as populações se podem preparar face a estes fenómenos?

O Sistema Nacional de Proteção Civil, na prática, é um grupo heterogéneo de entidades: órgãos governativos a nível nacional, regional, distrital e municipal; agentes de proteção civil; entidades públicas e privadas com especial dever de cooperação; instituições de investigação técnica e científica.

Deste grupo, a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil destaca-se pela sua missão de planear, coordenar e executar as políticas de emergência e de proteção civil; articular e coordenar a atuação dos agentes de proteção civil e entidades com ações nesta área; assegurar o planeamento e coordenação das necessidades nacionais de planeamento civil de emergência; e executar a política de cooperação internacional do Estado Português.

O Instituto Português do Mar e da Atmosfera é uma das entidades que, em regime operacional 24/7, integra este sistema, colocando ao seu dispor todos os dados e informações que resultam dos seus serviços e produtos de monitorização, vigilância e previsão meteoclimática. Em termos de mecanismos de resposta, preventivos e reativos, os planos de Proteção Civil são o instrumento oficial e essencial que melhor cumprirão essa função de resposta. Isto porque integram as contribuições de todas as autoridades e organismos que respondem a acidentes graves e catástrofes, abrangendo diferentes níveis territoriais, nos quais se podem integrar as ondas de calor, incêndios, cheias e inundações e tempestades. Estes planos, regulados pela Lei de Bases da Proteção Civil e por diretivas da Comissão Nacional de Proteção Civil, visam minimizar os efeitos de desastres, coordenar meios, informar a população e restaurar a normalidade.

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