Voltar

Perdas de água na rede pública: é desta que Portugal arranca?

Estilo de vida

Especialistas

Editores

Perdas de água na rede pública
iStock

Portugal continua a desperdiçar água potável, ano após ano, à razão de milhões de metros cúbicos, e alguns municípios atingem a estratosfera da ineficiência. Em Vila Nova de Cerveira, de toda a água disponível para distribuir às famílias, 84% perderam-se na rede de abastecimento em 2023. Em Tabuaço, o rácio foi de 72%, enquanto em Mourão se fixou nos 70%, no Vimioso atingiu 66% e, no Sabugal, ficou em 64 por cento. Foram estes os cinco municípios que, em 2023, acusaram maiores perdas relativas, ou seja, se considerarmos não o volume em metros cúbicos, mas a proporção entre a água que entrou na rede e a que se dissipou sem aproveitamento.

O quinteto é formado sobretudo por municípios de pequena dimensão, que, apesar de perderem muito, movimentam um volume de água bastante mais modesto. Depois, temos os campeões dos números absolutos, concelhos em que, todos os dias, desaparecem, pelo menos, cerca de 250 litros de cada ramal em toda a rede. O segundo ranking inclui grandes centros urbanos, como Almada, Loures, Odivelas, Setúbal, Seixal e Moita, mas também aqui cabem municípios mais pequenos. Castelo de Paiva, aliás, leva o primeiro lugar da tabela do desperdício absoluto por ramal, com quase 500 litros diários.

A água que se perde na rede não vai alimentar lençóis freáticos – simplesmente evapora, na companhia de milhões de euros em perdas económicas. Temos as barragens cheias, pensamos nisso depois? Encolher os ombros é uma opção, embora inaceitável a todos os títulos. A água disponível ao dia de hoje não nos deve diluir a consciência quanto à gravidade de um problema estrutural.

Conheça o volume das perdas de água no seu concelho

Portugal muito aquém dos objetivos

Do lado das autoridades têm despontado medidas que visam conter o volume de água perdida. Mas os números que traduzem o cumprimento das metas fixadas no Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030 (Pensaarp 2030) mostram que não basta a boa vontade contida no papel para transformar a realidade tangível. Entra ano e sai ano, e Portugal continua estagnado muito aquém dos objetivos.

Até 2030, o País deve cumprir metas com vista à boa gestão da água. A reabilitação anual de condutas é uma. As entidades gestoras devem renovar 1,5% a 4% da rede, para que a média nacional caia também nesse intervalo. Mas, em 2022, era de apenas 0,6% e, em 2023, desceu para 0,5 por cento.

As entidades devem igualmente conhecer a rede que gerem (por exemplo, planta da localização, dimensões, materiais e idade). Este conhecimento é medido por uma escala de 200 pontos. A meta é de 195: em 2022, alcançámos 151 e, em 2023, subimos um solitário ponto.

Outro índice, também medido através de uma escala de 200 pontos, reflete a gestão das infraestruturas, como o planeamento da manutenção e da reabilitação. O valor deve ser de 175, mas ficámos por 71 em 2022 e por 69 no ano seguinte.

A diferença entre o valor atual da rede e o custo da sua substituição num certo ano é dada pelo índice de valor da infraestrutura. Deve ficar entre 0,40 e 0,60. Em 2022, foi de 0,35 e, em 2023, de 0,37. Apesar de baixo, pode ser ainda pior, pois cerca de 30 entidades não reportaram dados à Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR). Uma coisa é certa: este número revela a urgência na reabilitação de condutas envelhecidas, a única medida sustentável a longo prazo para reduzir as perdas.

Avarias em condutas, um cenário comum

Quanto mais envelhecida estiver a rede, maior será a probabilidade de avarias e, logo, de perdas de água. Ainda assim, a relação nem sempre é direta, porque podem ser aplicadas medidas paliativas, que retardam o efetivo investimento em reabilitação, como a monitorização e a reparação pontual de fugas e a redução da pressão da água na rede.

Não obstante estas intervenções, é possível observar uma associação entre rede envelhecida e avarias. Os dez concelhos que registaram mais avarias por cem quilómetros de rede, salvo honrosas exceções, pouco ou nenhum investimento fazem em reabilitação. Os problemas são às centenas, e em crescendo. A estes dez concelhos, somam-se 32, todos negativamente avaliados pela ERSAR no quesito das avarias.

Mas o ranking inclui, digamos, os cumpridores, os que reportaram dados ao regulador. Treze municípios não o fizeram. A lista: Alcácer do Sal, Belmonte, Caminha, Estremoz, Mirandela, Mourão, Penalva do Castelo, Penedono, Portel, Porto de Mós, Sabugal, Tabuaço e Vila Nova de Paiva. O cenário das avarias pode ser bem mais gravoso. E, apesar de as ocorrências comunicadas não terem obrigado à interrupção do serviço, atendendo ao envelhecimento das redes e ao crescimento das avarias, um tal cenário não será improvável.

Rede envelhecida, mais a regra do que a exceção

No lapso temporal de 2019 para 2023, em três por cada quatro concelhos, pouco ou nada foi feito para reabilitar condutas com mais de dez anos. Feitas as contas, em 206 dos 278 municípios continentais, a renovação anual, em 2023, foi inferior a 0,8% da rede, em quilómetros, o que levou a ERSAR a classificá-los com nota insatisfatória. Inclui-se aqui mais um grupo de oito, que não revelou dados ao regulador.

Se olharmos agora para os 125 municípios com a rede envelhecida, 44 revelaram elevadas perdas em 2023 ou nem sequer comunicaram os metros cúbicos desperdiçados – não é possível afastar a sensação de círculo vicioso. Mais ainda? Daqueles 125 municípios, 91 persistiram numa reabilitação de condutas insatisfatória nos últimos cinco anos e três escusaram-se a reportar informação à ERSAR.

Para nos mantermos no círculo vicioso, dentre os 83 concelhos sem reporte do grau de envelhecimento da rede em 2023 – um número muito superior aos 31 do ano anterior –, 55 foram negativamente avaliados na reabilitação de condutas e 26 nas perdas de água diárias por ramal.

Planos com milhões de metros cúbicos de poupança teórica

Pensamento estruturado sobre o setor da água não falta. O País conta, pelo menos, com o Pensaarp 2030, o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030 e a recente proposta Água que Une – Estratégia Nacional de Gestão da Água. As linhas gerais passam, em todos os casos, pelo fomento da gestão e do uso sustentáveis deste bem de primeira necessidade.

Ainda em fase de proposta, o documento Água que Une inclui um extenso rol de medidas. Reduzir as perdas, restaurar ecossistemas e a continuidade fluvial, assegurar a gestão integrada da água, aumentar a capacidade de armazenamento de reservatórios, reabilitar e otimizar infraestruturas, favorecer o uso de água residual tratada em contextos não relacionados com o consumo humano e promover a monitorização das redes estão entre os seus desígnios.

A estratégia para reduzir as perdas de água, sozinha, justifica 49 medidas, ainda que uma maioria de 29 direcionada ao setor agrícola. A agricultura absorve 73% do total de água captada em Portugal, sendo sabido que um quarto do volume acaba por perder-se.

O setor urbano, aquele que diz respeito às famílias e ao controlo das perdas de água pela rede de abastecimento nos municípios, recebeu a atenção do plano sob a forma de 17 medidas. As propostas visam as fases de captação da água e de distribuição ao consumidor doméstico. O plano Água que Une estima que, com as propostas formuladas, pode surgir uma poupança combinada a rondar os 98 milhões de metros cúbicos.

Investimento não deve aumentar o preço para as famílias

Nada disto se leva ao terreno sem financiamento, e a estratégia Água que Une também o prevê. Cinco mil milhões de euros até 2030, entre fundos nacionais e europeus, e empréstimos bancários específicos, foi o número redondo avançado pelo Governo para operacionalizar todas as medidas que pretendem melhorar o setor da água, muitas já em fase de implementação.

As disposições relacionadas com a eficiência da rede, como redução de perdas, promoção do uso de água residual tratada e reabilitação e otimização de condutas, irão absorver 32% do montante previsto, a distribuir pelos setores agrícola, urbano e industrial.

A DECO PROteste aplaude todas as medidas que conduzam à efetiva redução das perdas de água nos municípios, associados às oito regiões hidrográficas do País. Mas não deixa de suscitar as suas críticas construtivas e os seus alertas.

Por exemplo, na primeira versão do documento Água que Une, apresentada em março, não é indicada a forma como serão financiadas as oito medidas traçadas para reduzir as perdas nos sistemas de distribuição dos municípios e que, segundo o plano, serão responsáveis por uma poupança de quase 81 milhões de metros cúbicos nas oito regiões hidrográficas.

Da mesma forma, o documento pauta-se pelo silêncio quanto a possíveis impactos deste pacote de investimentos nos tarifários do serviço de abastecimento imputados às famílias.

Já o Pensaarp 2030, que foi aprovado em 2024, sublinha ser preciso assegurar que os investimentos não conduzem a preços que os consumidores não consigam suportar. Também a DECO PROteste defende que é crucial salvaguardar este princípio nos muitos municípios com elevadas necessidades de investimento.

Para a organização de consumidores, garantir equidade na distribuição dos custos, transparência na definição de tarifas e um modelo de financiamento sustentável são medidas críticas. Só por esta via poderão ser esbatidas as enormes e injustas disparidades de preços ao nível nacional. A DECO PROteste não aceita que os mais vulneráveis do ponto de vista económico sejam sobrecarregados com custos que lhes dificultem a acessibilidade a um bem essencial como a água.

Se ainda não se juntou a nós, registe-se para ter acesso à newsletter com dicas e notícias em primeira mão.

Registe-se gratuitamente

Veja também