
Nada substitui a água. Daí a extrema importância da sua gestão eficiente. Fontes alternativas de água, poupança em casa e nas empresas, sobretudo nas turísticas, e formação sobre novas soluções para os envolvidos nas autarquias são precisas, defende Manuela Moreira da Silva, bióloga, doutorada em Ciências e Tecnologias do Ambiente, docente e coordenadora do Instituto Superior de Engenharia da Universidade do Algarve.
Existe um plano de adaptações climáticas em Portugal. Que medidas estão a ser aplicadas?
A Agência Portuguesa do Ambiente definiu uma estratégia, publicada em legislação em 2020, com um conjunto de objetivos e de ações multissetoriais. No domínio das alterações climáticas e da água, o País até tem estratégias e planos mais ou menos bem definidos. O problema é a implementação, os sistemas burocráticos por trás destas ações. Temos a obrigação de implementar as alterações em termos municipais. Para diminuir as emissões e ajustar o território e as pessoas às diferenças, aos impactos que vamos sentir nos próximos anos, precisamos de ter ações locais que respondam às características de cada município. Estamos a falar de criarmos espaços verdes, dentro das zonas urbanas, que respondam aos picos de precipitação extrema. Cada vez temos mais inundações, porque chove muito em curtos períodos. Precisamos de equipar as zonas urbanas com espaços permeáveis, que permitam à cidade funcionar como uma esponja. E, em paralelo, ajustar isto com abordagens de engenharia tradicional capazes de criar bacias de retenção a montante e ajustá‑las, de forma que chegue menos água à zona urbana. Há um conjunto de adaptações às alterações climáticas, sobretudo nas cidades com climas de características mais mediterrânicas, que são fundamentais e que ainda estão muito atrasados. Mas também podemos falar da adaptação à seca. Da bacia do Tejo para baixo, vivemos um cenário de seca cada vez mais estrutural, e que sempre foi natural no Mediterrâneo.
Devido ao clima...
A questão não é apenas o clima, mas a evolução das ações humanas. A população, nos últimos 50 anos, mais do que duplicou. Cada um de nós gasta cinco vezes mais água do que em 1970. O turismo evoluiu, as low-cost dispararam. Precisamos de cidades que se ajustem melhor às ondas de calor. Mas também precisamos que as cidades sequestrem o carbono que não conseguem evitar emitir. Os espaços urbanos têm de ser desenhados com preocupações paisagísticas, mas também numa lógica de ecologia funcional, de sequestrar carbono, produzir oxigénio, sombrear as cidades e impedir as escorrências superficiais quando há picos de precipitação. As árvores têm uma capacidade para atrasar a água que atinge o solo e diminuir o impacto das cheias, ou mesmo evitar algumas. Há aspetos que têm que ver com gerir espaços verdes, encontrar novas origens de água, armazenar água dentro das cidades, que carecem de uma intervenção em cada município.
Porquê?
Primeiro, porque falta formação aos técnicos. Nos departamentos com competências na gestão da água e na adaptação às alterações climáticas, ainda temos muitos engenheiros e arquitetos da velha guarda que não conhecem grande parte das soluções. Porque estes municípios, e outras entidades ligadas à gestão de água, não abrem possibilidade de formação no exterior, de modo a inspirarem‑se em soluções que resolvem problemas similares noutros locais e saberem ajustá‑las ao seu território. Como não conhecem, são muito renitentes em utilizá‑las. Temos de explicar a estes técnicos, com números, qual é, por exemplo, o papel de uma árvore bem escolhida dentro da cidade, comparando‑a, por exemplo, com um jacarandá, que é tão bonito, mas que, na lógica atual das cidades, suja os carros, não promove grande sombreamento e não retém significativamente a água da chuva em alturas de precipitação extrema. Na maior parte daquelas cabeças, a única solução é construir bacias de drenagem em betão armado. Não veem um panorama misto, de integrar essas bacias com zonas verdes, de modo a dar‑lhes outras valências, nomeadamente nos períodos em que não chove. Podem ser utilizadas, por exemplo, como parques de skate, zonas de lazer, zonas de infiltração de aquíferos, etc. Além disto, precisamos de grandes investimentos em tecnologias de comunicação em tempo real, reabilitação dos sistemas para evitar perdas de água e implementação de mais zonas de medição e controlo.
"Precisamos de espaços verdes, que permitam à cidade funcionar como uma esponja."
É preciso mudar de pessoas para ter sucesso nesta matéria?
Façamos o que fizermos, temos de fazer com as pessoas, conversando e mostrando‑lhes números. Desmistificar, comunicar. Estamos na era do data science. Temos de recolher números, perceber como evoluem, tentar modelar e depois comunicar.
Como se faz essa comunicação?
Primeiro, dentro das organizações, as chefias têm de estar alinhadas com aquilo que deve ser o desenvolvimento sustentável. Se estiverem, vão motivar os colaboradores a atualizarem‑se e premiá‑los. O colaborador, ao ver o seu trabalho reconhecido, quer fazer parte da solução. O problema são as pessoas que se acham mal remuneradas, que trabalham das nove às cinco e que ninguém lhes paga para fazerem coisas que não estudaram. Têm de ter acesso a informação fidedigna, que reconheçam e que percebam. Por um lado, temos técnicos de engenharia com este discurso e, por outro, pessoas que, por exemplo, trabalham numa piscina municipal e não fecham os duches; que veem torneiras abertas e não as fecham; que veem desperdícios de água e não chamam a atenção; e que deixam as mangueiras abertas a lavar as superfícies. Temos de chegar a essas pessoas, porque são fundamentais.
Em relação às perdas de água, muitas não são comunicadas...
Há entidades gestoras que não comunicam os dados à ERSAR [Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos]. Há municípios que entendem que a água é deles, e que não têm de reportar quanta usam ou quanta perdem. Não percebo como isto continua a acontecer, com esta passividade. Normalmente, por trás desta atitude está uma grande ignorância sobre o que deve ser a gestão sustentável. A água não é de ninguém. Intercetamo‑la e devemos utilizá‑la de forma eficiente e reutilizá‑la, se possível, e não impedir que outros seres vivos e outras atividades a utilizem. Em 2022, pagámos 83 milhões de euros em perdas: 255,1 milhões de metros cúbicos de perdas totais. A definição de perda é técnica. É a diferença entre a água que a entidade gestora em baixa compra à entidade gestora em alta e a que fatura aos consumidores. Se fatura menos do que a que comprou, considera uma perda. Pode não ser uma perda real. Pode incluir perda de contagem, por exemplo, contadores antigos ou a funcionar mal, água cedida, mas não contabilizada, ou furtos. Aquilo a que chamamos perdas reais, devidas a um sistema de distribuição muito envelhecido, em 2022, representaram 223,2 milhões de metros cúbicos. Ou seja, nas perdas totais, 73% foram reais. O Algarve, o Litoral Alentejano e o Nordeste Transmontano, apesar de particularmente críticos em termos de escassez de água, continuam a perder muita. No Algarve, tivemos mais de 15 milhões de metros cúbicos de perdas reais, em 2022, em média – 34% da água consumida no setor urbano. E só nos referimos à água tratada para consumo humano, não à agricultura. A maior parte desta não utiliza a água tratada, e ainda bem.
Como se perde água na agricultura? Excesso de rega?
A rega eficiente é aquela que responde às necessidades hídricas das plantas, sendo que, na agricultura, é a que permite que a cultura tenha uma produtividade que seja economicamente viável. Se regar por inundação, temos regos em terra, à volta das plantas, e a água circula. A perda por evaporação é brutal. E há quem diga que essa água volta a infiltrar-se ou chega na mesma aos recursos, por exemplo, às ribeiras. Não é verdade. Grande parte das explorações agrícolas utiliza fertilizantes de síntese e pesticidas. E, portanto, esta água leva consigo resíduos que não tinha quando entrou na propriedade agrícola. E, obviamente, estes resíduos vão ter um impacto ambiental negativo nos recursos de água ou nos aquíferos, se os atingirem. Durante os últimos anos, tem havido um investimento significativo na melhoria dos sistemas de rega no Algarve. Já temos muitas propriedades a regar com sistemas gota-a-gota. Já temos, inclusivamente, propriedades que introduzem a água em profundidade, ao nível da raiz.
A agricultura precisa de fazer um controlo muito mais apertado sobre a água que utiliza. Não se sabe a quantidade de água que muitos produtores utilizam, porque, como as captações estão em terrenos privados, só pagam a energia para a bombar. É este o preço da água. A questão que se põe é se as águas subterrâneas devem ser um recurso privado ou público. As Nações Unidas sugerem que devem ser uma reserva estratégica da humanidade. Na maior parte dos países, assim é. Portugal e, por exemplo, Malta, é um recurso geológico que pertence ao proprietário do terreno.
A que se devem as diferenças entre municípios?
A diferença nas perdas reais está associada ao envelhecimento das infraestruturas enterradas, as condutas, mas também à dispersão da população nos municípios. Alguns têm pequenos aglomerados urbanos, muito afastados dos centros, e há grandes extensões de ramais que facilmente têm ruturas, muito difíceis de detetar. Os municípios têm vindo a identificar as zonas mais críticas, investindo na deteção de fugas e na instalação de sistemas de telemetria (contadores inteligentes), que permitem intervir muito precocemente. Além disso, diminuem a pressão dentro das condutas, para que, quando há uma fuga, não se perca tanta água. Mas a diminuição da pressão tem de ser bem ajustada, caso contrário, se houver fuga, há contaminação do exterior para o interior da conduta.
"Para enfrentarmos a falta de água, temos de ter várias origens."
Não concorda com os cortes, por exemplo, no Algarve?
Os cortes de que se fala para o Algarve colam‑se à eficiência do uso da água. O que está em cima da mesa é que se deve definir a dotação máxima de rega para culturas com determinadas características (por exemplo, citrinos). Parece fazer sentido que, se o produtor exceder a dotação máxima, aí sim, há corte. Significa que tem de investir num melhor sistema de rega. Mas é preciso apoio. A maioria dos produtores não tem capacidade financeira para atualizar sistemas de rega e culturas. O turismo, a nossa principal atividade económica, tem um perfil completamente diferente. Consome a grande parte da água, nas piscinas e nos duches. Depois, nas lavandarias e nas cozinhas. Tem havido um grande investimento das unidades hoteleiras, com medidas que fazem a diferença. Um exemplo são as piscinas. Boa parte dos hotéis do Algarve estão no litoral. A água da piscina não tem de ser doce. Se houver um sistema de dessalinização organizado e bem pensado, a maioria da água pode ser do mar, parcialmente dessalinizada. A seguir, pode servir para lavar as superfícies exteriores dos espaços.
Já há hotéis a fazer isso?
Sim. Já há hotéis no Algarve com sistemas de dessalinização que utilizam a água salobra, e mesmo salgada, nas piscinas. A instalação de sistemas redutores de caudais nos equipamentos é outro exemplo. O hotel que os tenha nos chuveiros pode poupar 30% a 40% da água dos duches. E 30% nas torneiras dos lavatórios e das cozinhas.
E em relação às piscinas, ainda é obrigatório renovar a água?
Nas piscinas públicas, temos de garantir que a oxidabilidade [indicador da quantidade de matéria orgânica na água] não excede um determinado valor. Para isso, é preciso substituir, em média, 3% a 5% da água das piscinas diariamente. Na piscina municipal de Quarteira, em Loulé, 3% representam 50 metros cúbicos diários, que é aquilo que dez pessoas gastam num mês. O Algarve tem 16 municípios e mais de 20 piscinas. A água que desperdiçamos podia ser utilizada para lavar contentores de resíduos municipais, para lavar espaços… Se for armazenada em reservatórios ventilados, o cloro sai, e pode ser usada na rega de espaços verdes. Alguns municípios já adotaram este sistema, e outros estão a implementá-lo.
A dessalinização é uma solução para a falta de água?
Para enfrentarmos a falta de água, temos de ter várias origens. Quando estiver tudo otimizado, cada município vai perceber, em sintonia com as entidades gestoras, qual a quantidade de água que vai buscar a cada origem. Uma ferramenta eletrónica dirá "nesta altura do ano, vamos buscar x água a este lado, x água àquele", e vamos garantir água para os diversos usos urbanos. A dessalinização é uma das origens. Já sabemos captar a água do mar de forma a reduzir a utilização de produtos químicos no pré‑tratamento da osmose inversa, para lhe retirar o sal. A salmoura que a osmose inversa gera, com o dobro da salinidade da água à entrada, pode diluir‑se e lançar‑se de novo ao mar, de forma progressiva, com um impacto ambiental baixíssimo. A dessalinização pode ser uma origem complementar, para que não tenhamos falta de água.
E a reutilização de águas residuais?
O Algarve produz anualmente 40 milhões de metros cúbicos de águas residuais tratadas. As estações de tratamento estão sobretudo no litoral, e grande parte delas tem, ou vai ter, a curto prazo, sistemas tecnológicos que permitem ter um efluente de muito boa qualidade. Este pode ser reutilizado, nomeadamente em campos de golfe e na rega agrícola. Esta água tem nutrientes, nomeadamente azoto e fósforo, que garantem parte das necessidades nutricionais das plantas. Assim, há a menor necessidade de fertilizantes. Ao fazer isto, eles melhoram a rentabilidade e diminuímos a pegada de carbono por quilo de alimento produzido. A APA [Agência Portuguesa do Ambiente] prevê que, dentro de dois anos, conseguiremos regar 18 campos de golfe, cerca de metade dos existentes, com estas águas.
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